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Fundação António Quadros
Biografia Imprimir e-mail

 Autores 
Biografia
1900 - 1915
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1900-1915
 
Filha de Ana Telles de Castro e Quadros e de João Filipe das Dores Quadros, oficial da marinha de guerra, Maria Fernanda Telles de Castro e Quadros nasce em casa dos pais, em Campo de Ourique, num dia duvidoso: a mãe garante que, ao dar à luz, faltavam cinco minutos para a meia-noite; o pai afirma que não, que já passava dessa hora. Resultado: para tudo o que é oficial, ou seja passaporte, bilhete de identidade, etc., ela nasce a 9 de Dezembro; para a família, para os amigos, para a astrologia e sobretudo para a mãe, que era devota, nasce a 8 de Dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, data em que sempre festejaria os anos. Daí que tenha começado as suas Memórias com estas linhas: No dia em que nasci, os meus pais discutiram por minha causa.

Mas, quem melhor do que ela para saber onde nasceu:

Eu sei onde nasci: naquela rua

de árvores mortas e de velhas casas

onde ensaiei os meus primeiros passos

e onde as minhas pueris, tímidas asa

se transformaram lentamente em braços.
   
Da infância, dos primeiros anos, lembra-se de pouca coisa: o terror de um touro tresmalhado, o estrépito das patas dos cavalos no chão empedrado das cocheiras, em Cacilhas, o cheiro a palha fresca, o medo das trovoadas com a ama a gritar Valei-nos Santa Bárbara! a recordação tenebrosa de uma ingestão de quinino, sem mortalha, o alarido em torno do  regicídio, antes da proclamação da República. 

A casa da bisavó Maria Maurícia, e, mais tarde, também a do seu livro Maria da Lua – cor-de-rosa, pombalina, com janelas de sacada e grades verdes, e vasos de sardinheiras na varanda – marcá-la-ia para sempre. E quem a conheceu pode confirmar: tentou reproduzir este modelo em todas as casas que teve. E escreveu um dia: não sei onde me levará este amor às casas velhas, de preferência em ruínas. 

O quarto de dormir da sua tia Mariquinhas tinha uma janela virada ao Tejo, onde ela se habituou a espreitar o vaivém das fragatas no rio – tudo isto influenciaria os seus versos, o seu amor por Lisboa, as suas letras para fado:

Passam varinas com a giga em arco,

Sobre a airosa cabeça sobranceira,

No chão enlameado da Ribeira,

água negra fez um grande charco…

Lembram a quilha de um barco

as tamancas das peixeiras.

Começou a ler com cinco anos, ajudada pela costureira da casa, e a escrever também precocemente em papel de muitas cores (remonta a estes tempos a sua relutância em escrever em papel branco.). E lembra os primeiros anos assim: Vivia uma espécie de sonho sem princípio nem fim, confundindo tudo: dias, anos, Invernos, Primaveras, alegrias e desgostos. 

Ao contrário da ideia que dela fazemos, já adulta, parece que em pequena era magra, débil, demasiado alta para a idade e com uns cabelos pesados, indomáveis, que faziam o desespero da mãe. Dizia que tinha olhos azuis, verdes ou cinzentos, dependendo do estado de espírito. Gostava de se esconder no sótão e de se perder na rua, e aborrecia-a verificar que não conseguia nunca perder-se completamente: 

E quando a minha ama me aconchegou na cama,

não sei dizer se me doía mais

ter-me perdido ou terem-me encontrado!

Detestava ir ao dentista e costumava dizer, a brincar, que a palavra dentista tinha sobre ela o mesmo efeito que a palavra madeleine para Proust.

Chamava-se Maria Fernanda, mas para a família ficou Mariazinha, nome com que, anos mais tarde, baptizaria um dos livros que viria a tornar-se num verdadeiro clássico infanto-juvenil: Mariazinha em África, livro de referência nostálgica que fez as delícias de uma geração.

Da infância recorda ainda a bondade dos quatro irmãos (Francisco, Manuela, João, Afonso), a beleza da irmã, a quem chamavam princesa (pele branca e rosada, cabelos loiros e anelados), os jardins da tia Emiliana, as cautelas brancas do tio António, a marmelada da Guilhermina e a bolsa verde de veludo da avó sempre repleta de libras de oiro que eram, afinal, tostões novos e reluzentes. E a pior recordação dessa época, confessa nos últimos anos, foi a explicação desastrada e desastrosa em que alguém me quis elucidar sobre certas realidades da vida para que ainda não estava preparada. 

Em 1909, o pai é capitão do porto de Portimão – onde Fernanda de Castro estuda, numa escola oficial; mais tarde é transferido para a Figueira da Foz, onde aprende a nadar e conclui a quarta classe com distinção numa escola que não lhe deixa recordações: Lembro-me que ficava dentro de um pequeno jardim onde havia mais pedras de que plantas, mais urtigas que flores.

Mas recordações suas, temos muitas, até do Livro de Português da nossa infância:

Lisboa, Santarém, Porto, Leiria…

(eu sabia de cor toda a Corografia).

O pai regressa a Lisboa e a família instala-se num rés-do-chão alugado na Rua de São Bernardo, mesmo defronte do Jardim da Estrela. Em 1913, o pai parte para a Guiné, desta vez como Capitão de Porto e chefe dos Serviços Marítimos de Bolama, então capital. Fernanda de Castro, com 12 anos cheios de força e alegria, vai ter com ele juntamente com a mãe, de saúde já precária, e o irmão mais novo. A viagem de ida não a impressionou: Foi uma viagem de oito ou nove dias, tranquila e monótona, sem história nem histórias. Em Bolama, que considerou uma pequena vila provinciana que poderia parecer alentejana, não fossem os trajes garridos e os panos coloridos das mulheres, instalam-se numa pequena rua perpendicular ao Cais, no edifício da capitania do Porto, numa casa toda ela rodeada por uma larga varanda de madeira, que era a verdadeira sala de estar.  É aí, nesse mesmo ano, que os pais saem um dia para jantar fora e que ela não volta a ver a mãe: Ajeitou e sacudiu as pregas do mosquiteiro para que nenhum mosquito me incomodasse, e foi essa a última vez que a vi. 

Ana Telles de Castro e Quadros morre nessa noite de febre-amarela, o que obriga Maria Fernanda a regressar a Lisboa acompanhando o irmão mais novo, que chorava copiosamente. Antes de embarcar, uma amiga da família agarra-lhe no braço: Prometes ter coragem? Crescer de repente? Tomar conta do teu irmão como se fosses de facto uma mulher? Setenta anos depois, Fernanda de Castro recordaria esse dia tão nefasto: Ainda sinto na garganta o aperto, a angústia que me invadiu no momento em que me arrancaram dos braços do meu pai e em que, com o Afonso ao colo, entrei no barco que nos levou a Bissau.