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Fundação António Quadros
Biografia Imprimir e-mail

 Autores 
Biografia
1900 - 1915
1915 - 1921
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1936 - 1949
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1957 - 1963
1964 - 1974
1975 - 1984
1985 - 1995
1995 - 1999

1985-1995
Fernanda de Castro começara já algumas páginas das suas memórias. Agora, acamada e quase cega, dita-as alternadamente a uma colaboradora prestável, Teresa Zeverino, e sobretudo à sua grande e fiel amiga Edith Arvelos, poetisa e pianista moçambicana que, hospedada em sua casa, a acompanhará até ao fim com um desvelo inexcedível.  

Fernanda de Castro em nada corresponde ao paradigma de uma figura diminuída e queixosa da assim chamada terceira idade; senhora de uma grande alegria e de um riso fresco e cheio, possui desde sempre um indefinível magnetismo que atrai as pessoas.

E a «Calçada dos Caetanos» é uma casa aberta, sempre foi; tem permanentemente rosas frescas nas jarras, um piano aberto e um bule de chá quente, em prata, para acolher as visitas.

Às quintas-feiras, sem falhar, Fernanda de Castro manda servir chá e torradas a quem aparece. Amália lancha com ela algumas vezes, mas são muitas e variadas as pessoas que a procuram; além   dos irmãos, dos netos, dos bisnetos e dos sobrinhos, numerosos, também as suas amigas Maria Luísa Garin, Margarida Homem de Gouveia, Inês Guerreiro, Manuela Novaes, Mané Lima de Carvalho, Maria Germana Tânger, Heloísa Cid, Eugénia Aurora, Teresa Mayer, Elvira de Freitas e Barbara Benini, com quem joga canasta ou «trivial», e ainda um naipe variado de artistas, estudantes e jornalistas que a procuram para a conhecer e trocar ideias.

Para além destes, o seu filho António Quadros e a sua nora Pó, bem como o seu filho Fernando, de novo a residir em Lisboa, mantêm um convívio diário com a mãe.

Fernando Dacosta é um dos escritores que, já no fim da vida, tem um convívio privilegiado com a poetisa. 

Outro aspecto singular do seu convívio: no dia 8 de Dezembro, dia dos seus anos, prepara anualmente uma grande festa, para a qual não envia um único convite. E todos os anos, a casa se enche para rodear Fernanda de Castro de presentes e de mimos, tradição que se mantém mesmo depois desta adoecer e até ao fim da sua vida.

Em 1986, publicado o I volume de Ao Fim da Memória (1906-1939) pela Editorial Verbo, tendo na capa uma reprodução do seu retrato a óleo, por Sarah Afonso. 

A neta, Rita Ferro, que se oferece esporadicamente para escrever o que a avó dita, é exortada, na obra, a seguir as suas pisadas e a escrever. 

Ao Fim da Memória obtém um grande êxito junto da crítica e do público, esgotando-se rapidamente.

Tanto os estudiosos do Estado Novo como o público em geral, pensavam poder ler nas suas memórias importantes revelações políticas, mas Fernanda de Castro, sempre mais presa à Vida e à Poesia, relata a sua vida cheia num tom optimista e redentor. Afirma que viveu toda aquela época como uma portuguesa qualquer e mulher do seu marido. Conta que uma vez, num banco de Nice onde quis trocar dinheiro, participou que tinha dólares, francos suíços e escudos e que se orgulhou de ouvir formular em bom francês prefiro escudos. Recorda Duarte Pacheco não por pertencer ao Estado Novo, mas ao seu tempo: Trabalhava vinte horas por dia e foi por isso que morreu num desastre de automóvel, quando dizia ao seu chauffeur: «depressa, mais depressa!» E refere o próprio Salazar, sem subterfúgios: Para mim, ele era o homem que acabara com as revoluções, com a desordem, com os assaltos às mercearias, com a propaganda do bacalhau a pataco, o homem que liquidara a dívida externa, que valorizara o escudo, que conseguira que erguêssemos a cabeça, com orgulho, onde quer que estivéssemos. Diz que pensava nele, também, como num grande Português que dedicara inteiramente a sua vida ao País, a ponto de renunciar à tentação de casar e de ter filhos, e acrescenta: Também não podia impedir-me, egoistamente, de pensar nele como no amigo que várias vezes nos demonstrou a sua estima e que, por isso, estará sempre vivo na minha recordação e na minha saudade.

Em 1987, é  publicado o II volume de Ao Fim da Memória (1939-1987) pela mesma editora, reproduzindo na capa outro retrato a óleo seu, desta vez da autoria da pintora brasileira Tarsila do Amaral. Idêntico êxito esgota também este volume, em pouco tempo.  

Começa então a ditar um novo livro, dedicado a amigos desaparecidos, intitulado Cartas Para Além do Tempo.

O nº  100 da revista Colóquio Letras insere dois poemas seus, inéditos, a abrir um conjunto comemorativo deste aniversário: As Dunas Onde Estão? e Quem Pudera, Cecília!, sendo este uma evocação da sua grande amiga Cecília Meireles.

São publicados, em 2ª edição, os dois volumes de Ao Fim da Memória, que Esther de Lemos, na Colóquio/Letras, saúda desta maneira: «(…) longe de ser o superficial contentamento de quem colhe a flor do instante, é a assumida, consciente entrega à vida, com todo o seu peso de alegrias e dores. É a vitória do espírito sobre as contingências do tempo e do destino. Uma profissão de fé na Vida.».

A revista Leonardo, no seu 1º Número, publica duas das suas Cartas Para Além do Tempo dedicadas aos seus saudosos amigos Mircea Eliade e Maurice Maeterlink.

Em 1989, comemora 70 anos de vida literária.  

A Fundação Eng.º António de Almeida publica esta antologia da sua poesia com muitos inéditos. A Guimarães Editores publica o livro, até  aqui também inédito, Urgente! e a Europress publica as Cartas Para Além do Tempo que inclui uma carta sua, pessoal, para o marido.

Por esta ocasião, organiza-se uma grande festa de homenagem em casa de Fernanda de Castro, em que são oradores, entre outros, Natália Correia, David Mourão Ferreira e a sua nora, Paulina Ferro.

O Círculo Eça de Queirós presta-lhe, na sede, uma simbólica homenagem à sua vida e obra, que a autora, impossibilitada de comparecer, segue através de uma gravação directa.

Em 1990, é  galardoada com o Prémio de Literatura Infantil da Fundação Calouste Gulbenkian.

Quatro anos antes de morrer, escreve, também ditando, o seu último romance, em cujo título se pode entrever, apesar da idade avançada, o mesmo estado de espírito de esperança, confiança e juventude: um romance de 400 páginas intitulado Tudo é Princípio; a Ática propõe-se editá-lo, mas é o Círculo de Leitores que, juntamente com as obras completas da autora, se candidata à publicação.

Na mesma data, o seu filho António Quadros, já doente, escreve o romance Uma Frescura de Asas, enquanto a neta Rita Ferro lhe dá a alegria de publicar o seu primeiro romance, O Nó na Garganta, como réplica ao desafio que a avó lhe havia formulado nas Memórias. 

Por Coincidência, mãe, filho e neta escrevem concomitantemente um romance, partilhando entre si essa experiência tão rara.

Em 1991, a jornalista Manuela Gonzaga entrevista Fernanda de Castro numa casa de férias, descrevendo a admiração que lhe causa a poetisa: A sua memória prodigiosa leva-nos através do tempo e do espaço e a sua força é muito mais forte do que todas as tragédias ou todas as misérias, porque Fernanda de Castro é livre na prisão do seu corpo e o seu olhar continua lúcido, compassivo e luminoso, através dos véus da cegueira.

Em 1993, a 16 de Março, morre a sua amiga Natália Correia, de quem a revolução havia separado do convívio, não na cumplicidade que as unia. Fernanda de Castro sofre mais esta perda com a coragem e a filosofia habituais, e quando uma das netas a visita no propósito de a consolar, responde, serena: Já a vi depois de morrer. Esteve cá ontem, passou a tarde comigo…

Dias depois, viria a sofrer novo golpe, desta vez insuperável: o filho António Quadros, que a adora e visita diariamente, responde a todas as suas necessidades, lhe revê os livros e lhe gere as economias, morre, vitimado por um tumor no cérebro, no dia 21 de Março, dia em que começa a Primavera.

Mas para Fernanda de Castro seria o início de um longo e irreversível Inverno: imobilizada numa cama, não pode sequer comparecer às cerimónias fúnebres do filho, impossibilidade já experimentada anteriormente com a morte de alguns dos seus irmãos.

O desgosto é insanável.

Dilacerada por esta perda, nunca chegará a recompor-se animicamente.

Em 1994, no jornal Expresso, a jornalista Luísa Shmidt regista as suas impressões ao entrevistá-la: Recordo nela a falta de veneração íntima pelos poderes, porque o poder estava nela, na fascinada tenacidade com que sempre quis a vida. Os próprios sofrimentos que os tempos lhes foram trazendo nunca desfizeram a misteriosa força desta mulher tão viva…

Fernanda de Castro morre de morte natural no dia 19 de Dezembro de 1994. Apesar da enfermidade que a imobilizou durante 12 anos, e dos graves problemas ósseos e de visão que a atormentavam há décadas, a família nunca a ouviu queixar-se.

Dias depois da sua morte, num artigo de homenagem à sua vida e obra, um jornalista não identificado escreve a síntese:

Tinha a idade do século

e a força interior das mulheres de excepção.

Morreu. Mas era a figura singular

que a sua poesia e a sua prosa

há  muito remeteram para o historial da cultura portuguesa. 

E essa, naturalmente, permanecerá.

E também a sensibilidade de Laurinda Alves registaria n’ O Independente: Morreu há quatro dias, dizem, mas é como se nunca se apagasse a luz daquele quarto. A família impressiona-se ao ler estas linhas, porque é essa a sensação que experimenta sempre que sobe, ou desce, a antiga Calçada dos Caetanos.

No entanto, a sua «partida» já fora anunciada muitos anos antes, por ela mesma, no seu maravilhoso poema biográfico, com o mesmo estofo espiritual e o mesmo sentido de transcendência que a ajudaram a suportar a imobilidade e a dor nos últimos anos de vida:

Depois, depois,

a luz foi-se apagando,

a alma foi subindo,

o corpo foi baixando,

e o cavalo de fogo,

em linha recta,

lá  vai rumo ao Sol,

na direcção da Seta…