IADE, 22:9/89
Meu prezado Amigo:
Acabo de receber a sua conferência sobre António Ferro, que li emocionadamente, pois a sua memória e a sua saudade permanecem ambas na minha alma desde o dia fatídico de 11 de Novembro de 1956, quando morreu no Hospital de São José — já triste, angustiado e desiludido.
Quando partiu para Berna, em 1950, foi porque já não sentia o mesmo ambiente de apoio. Nunca mo disse explìcitamente, mas eu sei que a sua acção era cada vez mais obstruída, mais objecto de intrigas e de inveja, por parte de alguns maiorais e ministros do regime. Não viam com bons olhos, sobretudo os universitários e catedráticos, que um homem sem curso superior (faltara aos exames finais do 5º ano de Direito para partir arrebatadamente para Fiume, entrevistar Gabriel d’Anúnzio e assistir ao seu momento de glória política) tivesse mais nome, fosse mais considerado do que eles.
Foi-se sentindo cada vez mais só, aqui em Lisboa. Quando vinha a Lisboa, já depois de Ministro em Berna, gostava de ir ao S.N.I., visitar os amigos. Mas o seu sucessor no posto fez-lhe saber por terceiros que não gostava disso, que era inconveniente, que não devia ir porque perturbaria os serviços. Então, de quando em quando, ele ia lá apesar de tudo, mas clandestinamente, pela porta do cavalo (onde era antigamente o turismo). E o S.N.I. não continuou o plano de publicação dos seus textos e conferências, sob a epígrafe de Política do Espírito. Era um antecessor incómodo!
Depois, a vida diplomática não correspondeu às suas expectativas. Pensava poder trabalhar em livros que tinha em mente, mas escreveu afinal os versos melancólicos de Saudades de Mim. Marginalizado afinal, dentro do regime, tendo sido enviado para Berna (quando tinha pedido Paris), desembocando em Roma, onde foi recebido com indiferença, era um homem magoado, que esperava morrer, do que dão sinais as três cartas que deixou: para a minha Mãe, para mim e para Salazar. A minha, li-a uma vez, e nunca mais fui capaz de a voltar a ler...
Acho que tem razão. Fez muita falta ao regime. Não sei se Salazar o terá compreendido. Era, como muito bem diz, a outra face, a estética, a da imaginação, a cosmopolita, a futurista. Se Salazar o tivesse compreendido, teria vencido os preconceitos de classe universitária: um homem sem curso superior não pode ser Ministro e pertencer ao Governo, como não pode ser Embaixador em Paris.
Foi um erro. Com António Ferro no Governo, será que as coisas se precipitariam como sucedeu depois? Ficou só o jurídico e o pragmático. Mas o jurídico e o pragmático não formam gente, não formam Portugueses. A desnacionalização avançou então vertiginosamente, já quase sem barreiras. Salazar, digo-o sem partilhar embora da sua adesão total, era indubitàvelmente um grande homem de Estado. Mas era humano, e todos os humanos erram.
Há dias, recebi a notícia de que, por decreto-lei, fôra extinto o Museu de Arte Popular, que foi o seu último (de António Ferro) empenhamento. Já dei uma entrevista ao Independente a esse respeito. Já escrevi um artigo no Tempo, outras coisas farei — mas chocamo-nos com uma realidade inamovível. Esta gente não entende, não tem sensibilidade e já não sabe o que é ser patriota.
Meu caro Rodrigo Emílio: ao ler a sua conferência, olhei-me como você é capaz de me olhar, como alguém que fez excessivas concessões e que portanto se degradou, pertence ao submundo da “plebe” de todas as classes, que compõe com o inimigo. Você nunca mo diria, mas julgo que será assim que vê uma pessoa como eu.
A verdade é que as nossas concepções encontram-se nalguns pontos e separam-se noutros. Eu sou aristotélico. Vivemos no mundo da geração e da corrupção, num mundo em que nada é estável, em que tudo muda, caiem os regimes porque é da natureza de todos os regimes serem submetidos às leis do tempo e à dialéctica das ideias e dos interesses.
Então, se você, sendo o puro, o incorrupto, o intolerante, tem uma função insubstituível, os homens como eu, são os que ao contrário, tentam tocar por dentro, pelo diálogo, pela aceitação e pelo compromisso, aqueles mesmos com os quais para si não poderia haver o diálogo, mas o duelo.
É possível que a minha atitude seja errada, ingénua e até nociva. E é bem verdade que, depois de todo o meu esforço durante 40 anos, pugnando pelos valores do Espírito e da Pátria através de dois regimes, procurando em cada um deles destruir o joio e enaltecer o trigo, poucos resultados tenho para mostrar. O certo é que não desisto, na esperança de que é capaz de dar algum fruto viver crìticamente no sistema, em vez de totalmente o repudiar.
Julgo que lhe enviei A Ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos últimos 100 Anos, em que lhe dedico um subcapítulo. O Rodrigo Emílio é um grande poeta e os seus versos são lancinantes de verdade portuguesa.
Mando-lhe O Primeiro Modernismo Português — Vanguarda e Tradição (com um capítulo sobre A. Ferro) e A Batalha de Flores, que prefaciei em reedição recente.
Teria o maior prazer em lhe mandar alguns dos meus livros que acaso não possua, se é que tem paciência para os ler. Por ex., A Arte de Continuar Português, os 2 vol. publicados de Portugal, Razão e Mistério, o livro sobre F. Pessoa ou Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista.
Difícil, delicado, tem sido este combate, sobretudo porque vivo na fogueira das ideias e vejo em minha volta cada vez mais destruição. Trabalha-se, no entanto, para o futuro. Outra geração virá. E então, pode ser que a chama da portugalidade se reacenda...
Minha Mãe, que muito o aprecia e admira, continua de cama (há 7 ou 8 anos), mas com uma admirável coragem e total lucidez. Vão agora sair uma antologia dos seus 70 Anos de Poesia (1919-1989), o seu livro de poemas Urgente! e as suas Cartas para Além do Tempo. Vou-lhe ler a sua conferência, mas se puder escreva-lhe, pois precisa de companhia. Já não tem ninguém da sua geração. Vai fazer em Dezembro 89 anos. Mas que exemplo nos dá a todos!
Bem haja, seu admirador e amigo, António Quadros *****
Capítulo IV do livro de António Quadros “A Ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos últimos cem anos” (Edição da Fundação Lusíada, Lisboa, 1989): “As Sátiras Amargas de Rodrigo Emílio” É preciso que se saiba por que morro É preciso que se saiba quem me mata É preciso que se saiba que, no forro
Desta angústia, é da Pátria tão-sòmente que se trata De “Reunião de Ruínas,” 1977
Se Francisco da Cunha Leão ficará como o poeta das lágrimas pela perda de Goa, talvez nenhum outro lírico, como Rodrigo Emílio, tenha reagido com tanta amargura, com tanto desespero, com tanta força de sátira, e de sarcasmo, à viragem do 25 de Abril, sobretudo à viragem do país de além para o país de aquém, sem contudo perder a sua poesia a qualidade lírica de recolhas como “Primeira Colheita” (1973), “A Segunda Cegueira” (1973) ou “Serenata a Meus Umbrais” (1975).
Na verdade, “Reunião de Ruínas”, “Poema-livro d’Exílio e Viagens” (1974-1977), é uma obra sem concessões, duríssima para a revolução ou para a mudança, que testemunhará, goste-se ou não da sua atitude intransigente, de uma insatisfação e de um sentimento de queda, de abandono e de exílio, por muitos Portugueses partilhado, embora muitas vezes silenciado. O tema da perdição nacional surge desde logo nas duas epígrafes: — Como o Camilo Pessanha “Eu vi a luz em um País perdido” E ainda: De povo de missionários a povo demissionário... Desde as primeiras páginas do livro, os Poemas do pátrio pranto, revelam a amargura imensa do poeta, projectando-se em pequenos poemas ácidos e sarcásticos. Por exemplo: Era este um lugar de raíz duradoura. Mas soou a hora de deitar país fora...
ou: Pátria sem porte, quando já chegou a ser pátria sem par.
ou também: É, hoje, um bairro-de-latas. (Quem queira vir ver: retrate-A!) Há, cravadas, quatro patas em cima da nossa Pátria.
“Reunião de Ruínas”. O motivo obsessivo desta obra é efectivamente o da pátria arruinada: Se já hoje longe estou do coração do que sou, e do que venho... Se de mim assim se desgarrou, e em plena cerração se projectou como um estranho, D. Portugal — meu avô, Frei Portugal, o d’antanho... — Não foi senão por que a traição O privou de dimensão: O privou do Seu tamanho!
Quanta desesperança no poema sobre os “Retornados”:
... E ao rés de cada rua arrastam, por desgosto, um permanente impropério — que sempre de face nua arremessam contra o rosto reticente do Império...
Ou ainda no poema intitulado “Edital do Poeta às portas da morte (a afixar em voz alta!)”, que assim principia:
É preciso que se saiba por que morro É preciso que se saiba quem me mata É preciso que se saiba que, no forro Desta angústia, é da Pátria tão-sòmente que se trata.
E assim conclui:
— É preciso que se saiba por que morro No meio deste monte de sucata!...
É preciso que se saiba por que morro — E que és Tu, Pátria ingrata, quem me mata!
Desesperado em sua reunião de ruínas, só na evocação de Camões e dos Lusíadas, encontra o exilado algum bálsamo, porque
(...) à voz desse poder convocatório — que há nos versos adversos que compões — não tardaremos a ser quem fomos Ouve, Camões:
Vai-te à História! Ajunta Povo, em redor desse canto cardial! Brande o gládio da glória, — e, lá das brumas da memória, vê se soergues, de novo, o esplendor de Portugal!...
ANTÓNIO QUADROS *****
A CÔRTE DO REI DAVID, NO SÚBITO ADEUS DE UM SÚBDITO
Balada de luto carregada, tangida por Rodrigo Emílio, na hora da agonia, paixão e morte de David Mourão-Ferreira
Deu à rima um novo rumo e apôs, a tudo, o carimbo do fumo do seu cachimbo.
Era bom vê-lo jogar aos quatro cantos do Tempo, como com as quatro folhas em flor de qualquer trevo, como com as cinco pontas de toda e qualquer estrela. Era bom vê-lo reinar, por fora assim que por dentro, às escondidas com o espaço, e com os seus quatro elementos; dar as cartas, manejar os naipes desse baralho: água, fogo, terra e vento. Era bom sabê-lo à mesa dos reinos da Natureza, a firmar com a beleza um pacto de criação. Havia, nele, a certeza de ir do Tempo ao coração, ao saudar a chama acesa de cada nova estação.
(— ...Sabia lá que o poeta estava, aqui, só de passagem, como o dardo de uma seta descendendo em linha recta não desta, mas d`outra margem mais desperta que esta margem!?...
Celebro-o — agora que acerta já por outra a sua imagem.
E, ao memor$á-lo, recordo toda a gárrula e garrida aleluia de halalis que havia a bordo da Vida, nessas horas de arco-íris, meias-tardes em conjunto, nessas tertúlias sem mácula com seus relentos de Távola, — nesse tempo, vário e uno, de ser ele às de tr(i)unfo e eu o cábula seu aluno.
(O teu limite de idade — traço de desunião... — desabou sem piedade, sem ter comiseração, sobre os ombros da cidade — ombros caídos, na tarde..., sem vontade... Ao delandão... — e já de mágoa a invade, ó mago, amigo, ó irmão, como se um si(g)no a rebate de dilúvio, aluvião, desse com o Carmo e a Trindade em cheio, no meio do chão...
A tempestade nos sabe — tempestade de Verão — o teu limite de idade, ó mago, amigo, ó irmão!
— Por que há-de ser, o poeta, gesto e voz que não reagem, letra morta, dardo — seta que se crava, se projecta, cega, às cegas, na abordagem de senda assim tão selecta como a que, em vôos de névoa, o leva, aos ombros do vento, por tão secreta viagem?!...
Por que há-de ser, tarde ou cedo, o poeta — pista efémera de férias grandes, eternas, etéreas, desertas férias, que nem férteis nem feéricas se antevêem: aéreas férias, apenas, nos aposentos do ermo (do puro ermo e seu termo...) ... e vasos, veias e artérias se lhe hão-de tolher em gelo?!...
Porquê, mais tarde ou mais cedo, ser ária, véu, arvoredo, página em paz, e sem pajem..., moeda cobrada ao medo, areia, aroma e aragem?!...
— Passou, à mão e a limpo, a lição toda de Dante; conferiu-a à media luz do cachimbo fumegante.
... Mas já David não há... e eis mais deserta a paisagem, iniciada que está a secreta viagem.
(Já no templo do tempo, atento, eu te contemplo, como exemplo, e já em vento de advento te converto e reacendo, lentamente, do negrume: chego lume ao resplandecente vulto de caruma que te enfuna em túnica de fumo e espuma, flâmula, nuvem, murta, rama que, de súbito, de súbito se inflama, a pleno contento da arisca e brusca dama que para si te chama: a musa e medeia — a meia-medusa de lenço e blusa que, em silêncio, soluça solos de búzio e bruma, e a si se acompanha ao piano da loucura, tangendo temas de incêndio e hossana; a intrusa e estranha que usa e abusa da paciente partitura do poente, num concerto de música: de música-de-câmara. De câmara-escura. De câmara-ardente...)
... E escrito, inscrito está, o que está dito e escrito. Já o verbo se faz grito de granito, já agora por agora é semente de graal.
Resta, ao poeta, conjugar-se no infinito.
Falta, ao orpheu que nos morreu, para um devir de pedra e cal, flectir o infinito:
o infinito pessoal.
(Soletro o alfa e o beta desse alfabeto galante de poeta enfeitiçante — o alfa, o beta e o gama dessa música de cama..., que é núpcia de sono e lua, liame de lume e lama, viagem ao fim-do-mundo nas volutas da volúpia de um «tour» de fim-de-semana pelo litoral da Úmbria;
cruzeiro de fim-de-curso velejado em Citirama, e evoluindo entre o vulto (outrora azul) do Danúbio e as dunas de Diana; circuito ao túnel da dúvida, sombra lúcida, noite em chama, anúncio de longue haleine, anel e amen de quem ama...
Soletro, sim, e celebro, metro a metro, o alfa e o beta desse alfabeto galante de poeta enfeitiçante...)
— Ouvide, senhores, e lede, se tiverdes fome e sede (ou quereis matar a sede) de fulgores azuis-castores, de esplendores e reflexos, furta-cores, de flores e sexos: abride, senhores, lede, ouvide os versicolores versos de David! Rodrigo Emílio. (Casa de S. José, em Parada de Gonta, aos 18 de Junho de 1996.).
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