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Fundação António Quadros
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 Autores 
Bibliografia Passiva
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Meu caro Amigo,

Não é a primeira vez que se me oferece o ensejo de escrever uma carta aberta a uma pessoa da sua família. Nesse reino – como chamar-lhe? – do esquecimento, não sei – quem sabe? – se há memória deste. Mas, se ao menos as boas lembranças permanecem, talvez recorde, perdoe-me a estultícia, uma que escrevi a sua mãe e que, por benevolência dela e pedido seu, veio a figurar como prefácio às admiráveis Cartas para além do Tempo. Ao lembrar essa carta, é que me decidi escrever-lhe, já liberto também o meu Amigo do tempo e das suas servidões. Não são as cartas, hoje quase uma recordação antiga, a via mais incisiva para um diálogo com quem está longe, tão longe que receamos que, em tão longo e incerto percurso, essas cartas se extraviem?

É da imemorial sabedoria das nações que o tempo, e só ele, minora as dores da alma. As grandes emoções, por sua mesma intensidade, não podem durar sempre.

Tal como um corpo, que, se vivesse em permanente estado febril, não resistiria muito. As dores intensas ou desaparecem ou matam. Para elas o tempo actua como um analgésico. Mas há uma outra dor – uma dor fina, que não rompe em gritos e nos acompanha discreta e surdamente. Julgo que escrevi algures que «as grandes dores são mudas»: não se manifestam por palavras nem por brados e gestos descompostos de carpideiras.

A morte de pessoas caras, por nos unirem a elas laços de sangue e laços, por vezes mais fortes, de espírito (não escreveu, e admiravelmente, sua mãe que os amigos são a família que escolhemos?), a morte dessas pessoas, mesmo que já esperada, abre sempre uma ferida. Com a passagem do tempo, o desgosto dá lugar à saudade.

Que falta nos faz, António Quadros, com toda a sua humanidade e iniciativa. Além de obras truncadas (penso no derradeiro volume de Portugal, Razão e Mistério), que outros livros escreveria quem não se dava tréguas? Com o escritor, sentimos a ausência do homem convivente e cordial, que lançava pontes onde outros parece que fazem gala em cortá-las. Firme nas suas convicções, não recusava a mão a quem pensava de modo diferente do seu.

Sabe uma coisa? A quem tanto publicou, eu atrever-me-ia a pedir, se isso ainda fosse possível!, que escrevesse ao menos mais um livro. E que livro lhe pediria? – Uma autobiografia intelectual, na linha de Berdiaef, autor tão do seu apreço. Lembro-me que, em Ficção e Espírito, escreveu sobre o Essai d’autobiographie spirituelle, uma das tais «autobiografias exemplares», como lhes chama e enumera: as de Ruben A., de André Malraux, de Nikos Kazantzaki e de Jung. E só não inclui nelas as Memórias de um Letrado, de Álvaro Ribeiro, porque ulteriores a Ficção e Espírito.

Como imagino a sua autobiografia? Como a de um homem de cultura, mais interessado nas ideias e no mundo interior que no vazio do mundo exterior. De certo modo, umas outras Memórias de um Letrado, como as de seu mestre Álvaro, e, quem sabe, se também com uma divisão em livros –«Iniciação Filosófica», «A Idade Mimética», «A Idade Poética» –, a que viria juntar-se um último, «Vida Política». Não sendo embora um político, não se alheava do destino colectivo o desassosegado autor da Arte de Continuar Português. Mas ao contrário dele, homem sem vida social, o António Quadros conheceu e cultivou sempre gente do mundo da cultura e gente da sociedade. Por isso, a sua convivência, sobretudo com escritores, pensadores, pintores, e o seu fértil percurso existencial não deixariam de ser contemplados na sua autobiografia. Mas, como Berdiaef, da sua vida exterior falaria «apenas o suficiente para logo partir à descoberta da sua subjectividade». Ou da sua alma. Sem fechar, porém, os olhos para o mundo exterior. Nós imaginamos Berdiaef vivendo, no seu exílio francês, como um eremita, entregue todo à meditação, espiritual, filosófica e estética. Ora o António Quadros descansava dos seus múltiplos escritos, leituras, reflexões, viajando e convivendo. Não vivia isolado, mas gozava da companhia dos outros e do espectáculo do mundo.

Seria pois uma autobiografia, não monótona, mas animada. Homem de gabinete e de tertúlia, gostava de prolongar nela o gosto e o debate das ideias, com mestres que escolhera, companheiros de geração, rapazes mais novos, que procuravam todos as vias do saber, pondo em prática o método socrático. A mesa do café substituía a cátedra universitária e o exercício dialéctico o magister dixit.

Se tivesse escrito a sua autobiografia, sou levado a crer que, não obstante as diferenças, algumas afinidades apresentaria com a de Berdiaef. Identificavam-se com os grandes autores russos, visionários e escatológicos, subjectivos mas não egocêntricos, e no homem provado como Job viam a imagem mesma do Deus humanado. Berdiaef, esse teve a audácia ou o cristão atrevimento de outorgar ao homem um atributo divino: o de criador, que, através da arte, «completa» a obra da Criação. Dante ou Miguel Ângelo, Camões ou Mozart não foram demiurgos, e grandes demiurgos, e como tais «divinos»?

Pressinto o seu júbilo quando no pensador russo encontrou uma filosofia criacionista, tão cara ao espírito do meu Amigo. No Essai d’autobiographie spirituelle de Berdiaef, há essa transposição do que é subjectivo ou, mais amplamente, personalista, para um alto plano de objectividade transcendente. Ou, por outras palavras, do «odioso eu» ao tu, à alteridade ou senso do Outro.

E creio que, na sua também exemplar autobiografia, António Quadros talvez escolhesse para epígrafe aquelas palavras de Berdiaef citadas em Ficção e Espírito: «A vitória sobre o tempo mortífero foi a ideia essencial da minha vida. Este livro é franca e conscientemente egocêntrico, mas aqui o egocentrismo, sempre desagradável, é compensado pelo facto de que de mim e da minha vida faço um objecto de conhecimento filosófico.»

Depois disto, que poderei acrescentar? Apenas palavras afectuosas de despedida, com a esperança de um reencontro não sei onde nem sei quando.  

Seu velho admirador
João Bigotte Chorão 
Lisboa, 9 de Março de 2003



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