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Fundação António Quadros
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Este português que conheci

Era um homem bizarro: inquietava-o o enigma do ser, falava de Cristo com admiração, exaltava-se com a Poesia e levava a sério as crianças – tinha o direito de se fascinar mais com ideias do que com automóveis.

Vestia-se como os outros para não dar nas vistas, falava em voz baixa numa língua estranha, contrariava os seus instintos até aos limites e aprendeu tudo o que havia a aprender para experimentar sozinho a dor da limitação humana.

Ao mesmo tempo que se deixou arrebatar pelas pedras e pelas árvores, teve amigos feios, com caspa nos ombros e gravatas amarrotadas. Era tão crédulo e infantil que comovia: alugava a primeira casa que lhe impingiam, subscrevia revistas para ganhar o relógio digital, e passava cheques aos amigos sem qualquer apreensão; no fundo, no fundo, achava o dinheiro um trambolho.

Estava-se a borrifar para que os seus livros não se vendessem, porque não tinha pressa. Não precisava de se ter calado para que a sua voz se ouvisse, mas a culpa foi dele: preferiu sussurrar as suas ideias e cantar alto as dos outros. 

Inflamava-se com Homero e Sófocles, Camões e Shakespeare, Pascoaes e Pessoa, mas não fazia troça dos aspirantes ao Dom - tinha uma bondade disponível para companheiros e discípulos.

Não era desconfiado como os aldrabões e apertava a mão aos adversários porque se esquecia das ofensas.

Acreditava em coisas estranhas: que os contos de fadas não eram mentira, que havia uma transcendência nos homens e na História, que o seu País era eleito e os seus compatriotas homens de bem.

Desgostava-se com a pobreza espiritual desta geração, vestia luto pela Natureza como qualquer de nós, mas tinha uma Fé inquebrantável na fraternidade universal e cósmica.

Arranjou tempo para tudo: ajudar desconhecidos, fundar uma escola, jogar à bola com os netos, dissolver as vaidades. Uns, chamavam-lhe sábio, outros, maçador, mas ele não se ralava porque via «para além do Espelho», como só os poetas, os pensadores e talvez as crianças.

Devia ser bom, porque foi amado pela mulher durante cinquenta anos.

Partiu um dia «num barco em cuja vela branca se via uma cruz vermelha», e o bem mais valioso que deixou à família foi Portugal.

No cais, foi enternecedor encontrar todos os seus amigos e todos os seus inimigos de lenço na mão, a acenarem com a mesma saudade e a mesma vergonha. Apesar do nevoeiro, o nevoeiro mítico onde tantos heróis e poetas se perderam, houve pessoas que juram ter visto uma estrela enorme a piscar-lhe o olho.

Rita Ferro



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