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Deus na tradição do pensamento português contemporâneo:
a contribuição de António Quadros

“A razão de Portugal, a razão de ser de Portugal é antes de tudo uma razão teleológica, isto é, uma razão aberta para com um telos ou um fim que é a justificação última do seu movimento no tempo e no destino”.
António Quadros, Portugal – Razão e Mistério, livro I

“Portugal é um balcão sobre o infinito”.
Hermann de Keyserling, Analyse Spéctrale de l’Europe

O pensamento de António Quadros (1923-†1993) acerca de Deus poder-se-á enquadrar, de um ponto de vista estrito, no seio daquilo que se convencionou chamar movimento da filosofia portuguesa e, genericamente, no contexto da tradição cristã e agostiniana que, desde Paulo Orósio, vigora em Portugal. Desta forma, na esteira de Luís de Camões, António Vieira, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Raúl Leal, Fernando Pessoa, José Marinho, Álvaro Ribeiro e Agostinho da Silva, o nosso autor defende que a nação portuguesa, na sua essência, conceitual e objectivamente, é dotada de um eschaton, de uma razão teleológica, que consiste num diálogo ou numa dialéctica entre o humano e o divino: “Talvez nenhuma história humana, como a portuguesa, em seu esplendor, em seu claro-escuro e em seu negrume, seja tão dramaticamente exemplar desta dialéctica” . Quadros apresenta-nos Portugal enquanto Pátria eleita por Deus, destinada a realizar fins universais. Tais asserções conduzem-no, inevitavelmente, a postular uma ideia de Deus que, embora não se distancie dos postulados de Santo Agostinho, por exemplo, em última análise, por causa das associações dilemáticas e tremendamente discutíveis a que está sujeita, não deixa de ser original e diversa.

A reflexão acerca de Deus desenvolve-se, portanto, no enquadramento de um conjunto de postulados que são caros aos pensadores da filosofia portuguesa e que se sintetizam nos seguintes aspectos: o ser divino, para além de ser caracterizado de um ponto de vista cristão, agostiniano e orosiano, apresenta denominações diversas, ou seja, é Deus quem tem o poder de inspirar as actividades criadoras de cada povo, concedendo a Portugal, curiosamente, a capacidade de realizar projectos áureos. O que António Quadros parece defender é que Deus, não obstante apresentar qualidades de omnipotência, omnisciência, omnipresença, ao mesmo tempo que é um concessor de gratuidade e liberdade, define-se, igualmente, como alteridade determinista e, quiçá, quase ao jeito do Deus do Antigo Testamento, parcial. Afinal de contas, à semelhança do povo de Israel, parece que Portugal é também um povo eleito por Deus. No pensamento do autor de Portugal – Razão e Mistério, esta questão emerge, quase logo, sem qualquer mediação, ou seja, se Quadros chega a afirmar que “a cada povo é proposto um ideal diferente de realização da humanidade ... E nem poderia ser de outra forma, porque os povos não são iguais, diferem pelo seu composto étnico, pela língua que falam, pela estrutura cultural em que se enquadram, pela sua religião ou religiões dominantes, pelas vicissitudes da sua história particular, pelo seu sistema de ideias, mitos e tendências afectivas, pelo seu ritmo evolutivo segundo um modelo próprio embora implícito, aliás adequado à substância específica da sua realidade humana e social, enfim pela revelação que a todos os níveis lhes é concedido em sua experiência de ser.

Mas no segredo da sua relação com a natureza e o mundo, no enigma da sua psicologia, arte, literatura e simbólica ou no mistério da sua cifra divina, realizam dentro de si o universal, são microcosmos exemplares da univocidade humana versus um eschaton uno e último” , imediatamente escreverá que “o povo português, formando no conjunto e na hierarquia intelectual dos seus estratos a nação portuguesa, teve um projecto, ou melhor, guarda nos seus arcanos, no seu inconsciente arcaico, na cifra da sua língua e cultura, na sua memória inconsciente, no seu imaginário, no seu pensamento implícito e por vezes explícito, um projecto, a que chamamos um projecto áureo de realização da humanidade” . Se, a priori, António Quadros discorre acerca da propensão particular e universal de cada povo, se apela para a diversidade natural de cada um, por outro lado, sublinha a universalidade e a pluralidade de Portugal. Embora todas as nações, em si, sejam, plurais, diversas e diferentes, parece que Portugal é mais plural, mais diversa e mais diferente do que todas as outras. E só o é porque Deus assim o quis, porque  a ele confiou um projecto maior, a saber, purificar a razão humana por meio do Espírito Santo. Independentemente de os portugueses terem sido eleitos por Deus ou, como preferia Agostinho da Silva, se terem auto-eleito para a edificação de uma empresa universal, o que importa realçar é a característica dessa demanda. Quadros sintetiza-a, à maneira camoneana e pessoana, enquanto epopeia de Deus através do homem português, como aventura de Deus na terra.

A partir dos pressupostos que já apontámos, é-nos perfeitamente legítimo considerar que António Quadros não os pensou e defendeu a partir do nada. O nosso autor, apoiado numa tradição de muitos séculos de filosofia providencialista, teleológica, mística e sebástica, dirá, quase ipsis litteris, o mesmo que Camões, Vieira, Pessoa e Agostinho da Silva, a seu tempo, disseram. Restar-nos-á, então, apenas questionar a validade de tais argumentos para os séculos XX e XXI? Ou, além disso, ser-nos-á possível consentir, admitir e perpetuar algo que, à partida, não passa de um dogma, de um dogma da portugalidade ou da lusitanidade, de um dogma que postula o nosso país enquanto periferia privilegiada? Parece-nos, desde já, que nada há de pejorativo ou judicativo nesta interrogação: um dogma é apenas um dogma, algo que apenas não pode ser questionado, nada mais.

Antes de tentarmos responder às duas questões acima colocadas, importa compreender todos os argumentos expostos por António Quadros. Se já víramos antes que Deus confiara aos portugueses um destino eleito, áureo e providencial, resta-nos, pois, analisar o cariz desse destino. O pensador descreve-o usando adjectivos precisos e, de alguma maneira, peremptórios e significativos: missionário, sacrificado, heróico, abismático, promissor, saudoso e esperançoso . Embora alguns destes adjectivos sejam contrários entre si, na sua essência revelam, curiosamente, a particularidade do ser português, tal como Teixeira de Pascoaes sugere e com o qual António Quadros concorda. A peculiaridade do destino dos portugueses resulta do decurso plural, multímoda e diferenciado da sua História . Quadros atribui-o especificamente à influência que São Bernardo de Claraval teve na construção do ideal templário que perpassou por todos os principais movimentos de criação e renovação de Portugal, desde, por exemplo, da iniciativa fundadora de D. Afonso Henriques até à empresa dos Descobrimentos; à característica messiânica do sebastianismo; à vertente criacionista do saudosismo; e, acima de tudo, ao projecto áureo de Portugal que se constitui e se revê integralmente no Culto do Espírito Santo. Todos estes aspectos confluem para o estudo da arqueologia da tradição portuguesa; para a assunção, por partes daqueles que se reconhecem herdeiros desta gesta, de uma missão que não é apenas terreal mas que é também paradisíaca (o fito do templarismo, do sebastianismo, do saudosismo ou até mesmo do pentecostismo é, no fundo, o estabelecimento da Jerusalém Celeste, do Reino de Deus na Terra; é o regresso às origens edénicas); para o enaltecimento da filosofia providencialista e, consequentemente, para a rejeição do positivismo histórico e do idealismo crítico (este último defendido, em Portugal, sobretudo por António Sérgio).

Ensaiarmos algumas respostas para as questões que temos vindo a colocar ao longo do texto, implica termos em mente alguns vectores de orientação associados essencialmente à ideia de Deus, à noção de Pátria e à crítica que, ao longo do tempo, se tem tecido em torno destas temáticas em Portugal.

Nesta perspectiva, e no que diz respeito à primeira temática - a ideia de Deus-, basta apenas reiterarmos o que já havíamos escrito anteriormente: para António Quadros, Deus é entendido de um ponto de vista cristão (às vezes até católico), providencialista, tradicionalmente agostiniano e orosiano, até porque, na visão do nosso autor, Paulo Orósio, para além de ter sido um discípulo de Santo Agostinho, foi aquele que primeiro concebeu uma visão histórica do devir humano. Ao jeito de Agostinho de Hipona, para Quadros, Deus é também um ser omnipresente , o supremo Bem , o sumo criador , a trindade divina . Além disso, é apreciador dos dons do Espírito Santo , considera Cristo como mediador  e concebe Deus como a plenitude do Ser.

Quanto à acepção de Pátria, começa Quadros por apontar no livro II da sua obra Portugal – Razão e Mistério que “se a Nação é a comunidade natural dos nascidos ou oriundos do mesmo território e se o Estado é a expressão política desta comunidade natural, ainda precária, a Pátria é a relação viva, profunda, substancial de um povo, não só com uma tradição contínua, transmitida de pais para filhos e articulada por laços culturais, políticos e jurídicos, mas também com um projecto teleológico original.

Por outras palavras, a Pátria, até etimologicamente, não é só a relação de cada um com a terra em que nasceu, é mais do que isso, é a relação com a terra dos Pais, com a comunidade dos antepassados, é uma vinculação antes humana e familiar do que telúrica ou territorial, implicando, por isso mesmo, desde que assumido dinamicamente o conceito, a prospectividade de um movimento para o futuro. Terra dos Pais, é necessariamente também a Terra dos Filhos e dos Irmãos. E, nesta transmissão amplificante, desenvolve-se um espírito personalizado, um projecto, uma teleologia nacional” . Ao fim e ao cabo, a Pátria é mais do que um conjunto de princípios jurídicos, estes absolutamente frágeis, exteriores e falíveis, defensáveis pelas nações e pelos estados para que a ordem, a legalidade e a sobrevivência não sejam ameaçadas, para que o estado natural, de barbárie e selvajaria, não volte a amedrontar os seres humanos. “Temos de considerar a nossa Pátria como um ser espiritual, a quem devemos sacrificar a nossa vida animal e transitória” , escreve Teixeira de Pascoaes na sua Arte de Ser Português. Para António Quadros, de igual modo, a Pátria, rege-se por princípios sagrados e fins superativos . Ora, para Portugal e para os portugueses, tais princípios e tais fins foram ofertados por Deus. Esta questão específica, como acima defendemos, é um dogma e, nesse sentido, talvez não seja despropositado sugerirmos uma distinção entre Pátria Real e Pátria Imaginária ou Mítica. Por Pátria Real entenderemos uma sociedade (enquanto Estado-Nação) que, para além de se reger por um conjunto de princípios e sentimentos superiores que prezam a sua unicidade, a sua tradição, o seu passado histórico e o seu porvir, acolhe, da mesma forma, uma série de categorias que lhe permitem actuar como Pátria moderna, aberta ao Mundo e às novidades do seu tempo. Os cidadãos de uma Pátria Real até poderão pensar que são seres predestinados a um fim universal e áureo, que são missionários de um Além Reino, mas não terão como descurar os processos históricos nos quais estão envolvidos, as matizes sociológicas e culturais que, a todo o instante, se lhes apresentam. Afonso Henriques foi um patriota de uma Pátria Real, os portugueses que navegaram todos os oceanos e criaram novas civilizações, fundindo-se com outras culturas, foram patriotas de uma Pátria Real. De outra forma, por Pátria Imaginária ou Mítica compreenderemos uma ideia de sociedade que se exprime na exaltação constante de princípios superiores e divinos, na sublimação de arquétipos messiânicos e proféticos e, simultaneamente, no corte com todos os movimentos sociológicos, materialistas, económicos, historicistas, progressistas e estrangeirados que naturalmente conduzem as nações para a actualidade e para as experiências do seu tempo. Dizemos Imaginária ou Mítica tão-só porque não é real e porque sobrevive apenas na imaginação, nas quimeras e nos mitos daqueles que a exaltam e nada fazem para que ela se torne real. A ideia de Pátria que António Quadros defende é aquela que definimos como Pátria Real (notemos que o auge da sua ideologia se centra na perpetuação da paideia dionisíaca  para o porvir de Portugal), contudo, a partir do momento em que o autor de Portugal – Razão e Mistério rejeita um par de princípios que, pela sua contemporaneidade, são fundamentais para a vivência das nações no seu dia-a-dia e se refugia apenas nos princípios superiores, divinos, predestinados que, supostamente, fundamentam a existência e o porvir de Portugal, a ideia de Pátria que acaba por vingar nos seus escritos é aquela de uma Pátria Imaginária ou Mítica, que vive somente no seu espírito e que, por não se embrenhar na realidade e no contexto da vida contemporânea, nele se estagnará. É neste aspecto que a consideramos um dogma, já que os pressupostos em que assenta não são passíveis de discussão racional, pertencem a outras ordens: da crença e do mito. Esclareçamos com estes exemplos: “A Pátria conquista, se e quando tal sucede, mais do que a frágil e aleatória legalidade jurídica, uma legitimidade transcendental, que já não deriva da simples ocupação e posse de um território, mas de princípios sagrados e de fins superativos” ; “Profetas e santos, filósofos, sábios e poetas, heróis ou até políticos são os motores da história, não porque exprimam forças materiais e sociais, não porque sejam agentes de um jogo de interesses económicos e nem sequer porque governem a existência pelo seu voluntarismo pessoal, de grupo ou de classe, mas porque se dá neles uma convergência da qualidade humana individual com a graça ou com a escolha divinas” . Na nossa visão, não basta exaltar uma ideia de Pátria para que ela se efective, é necessário que essa evocação se presentifique e se torne real, no fundo, se faça viver no quotidiano. Neste aspecto, é cada vez mais difícil interpretarmos comentários como os de Hermann de Keyserling, na medida em que, ao mesmo tempo, nada e tudo dizem. A que é que este autor se refere quando afirma que “Portugal é um balcão sobre o infinito”? Se, aparentemente, adjectivar Portugal enquanto balcão sobre o infinito significa muita coisa, tudo até, na realidade, poderá não significar nada, é algo muito abstracto, difuso. Tal expressão constitui-se, porventura, como uma daquelas frases que contribuem para o conceito de portugalidade como dogma e que está associada à assunção de Pátria Imaginária. De qualquer forma, a noção de Pátria que António Quadros nos apresenta, especificamente aquela que intitulámos como Pátria Real, e que se revê na paideia que D. Dinis concebera,  transcende qualquer polemismo e dilemática que, desde sempre, se tem gerado em torno desta questão e é perfeitamente defensável, no contexto da contemporaneidade portuguesa e lusófona, para o nosso século, para os nossos tempos. Tal projecto, cuja expressão máxima, é a vivência do Culto do Espírito Santo em todas as suas potencialidades, concretizar-se-á a partir do momento em que Portugal, enquanto Pátria Real, se assumir veículo para toda a lusofonia, para todo o Portugal que se multiplicou e re-descobriu no resto do Mundo.

Todos os aspectos que António Quadros trata na sua obra relativamente à ideia de Deus e à noção de Pátria estão intimamente relacionados com a crítica que, desde o século XVII , se faz a uma suposta estrutura psicológica e cultural do ser português e que ganhou mais evidência através do polemismo que António Sérgio lhe empregou. Na realidade, quando afirmamos que a hermenêutica de Quadros, no que concerne à compreensão de uma identidade nacional e à proposta de uma filosofia providencialista, depende da crítica que é engendrada por movimentos filosófico-culturais opostos ao seu, queremos especificamente dizer que, por um lado, o autor se beneficia de tais críticas na medida em que ao esmiuçá-las, salienta os pontos que mais lhe convém e esclarece os seus pontos de vista, por outro, porque a doutrina que pretende demonstrar só se compreende verdadeiramente na complementaridade do verso e do reverso em questão. Desta forma, a análise da polémica que António Sérgio erige em torno do sebastianismo torna-se fundamental por variados motivos. Em primeiro lugar porque o autor de Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista concede demasiada importância aos polemismos sergianos, ou seja, tende a qualificá-los como redutores e ameaçadores da sobrevivência da lusitanidade; em segundo porque considera que “o sebastianismo é um fenómeno com raízes profundas na nossa estrutura cultural. É um dado importante da psicologia portuguesa e brasileira. É um tema com fortes repercussões, não só na nossa literatura e no nosso pensamento, mas ainda no nosso devir histórico. E não pode ser visto unicamente como uma manifestação situada ou circunscrita num espaço e num tempo, porque adquire, nos seus assuntores e vivenciadores mais qualificados, ressonâncias que o religam à gesta universal do homo viator” , isto é, mais do que um fenómeno em estrito senso, o sebastianismo parece abarcar a essência do ser português; e em terceiro porque o ideólogo dos Ensaios permite-nos questionar acerca daquilo que está para cá da dimensão mitológica e imaginária do movimento sebástico e que, ao contrário do que supõe António Quadros, não é algo unicamente historicista, sociológico, reducionista e menor. Uma leitura entrecruzada da polémica sergiana com o projecto áureo português proposto por Quadros conduzir-nos-á a uma reflexão mais apurada sobre a conceptualização de uma filosofia da cultura portuguesa.

Em 1983, no II volume de Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, o nosso autor afirma, logo no início, que “a polémica contra o sebastianismo, tal como foi conduzida, sobretudo por António Sérgio, temos de concluir que a sua pontaria errou quase sempre o alvo. Foi, em suma, uma campanha ligeira e ao mesmo tempo grosseira, no decurso da qual Sérgio manifestou a sua total incapacidade de compreensão de um fenómeno tão complexo” . Fenómeno esse que António Quadros descreve como “um mito de protesto contra o presente decaído e ao mesmo tempo de confiança na salvação futura, mito com raízes fundas no inconsciente colectivo, já não diremos apenas português, mas universalmente humano” . Na visão deste pensador, o ideólogo seareiro não só não compreendeu a natureza, o fundamento e o objectivo do mito sebástico, como, igualmente, deturpou a densidade histórica de D. Sebastião, acusou o movimento sebastianista de falta de originalidade e qualificou os adeptos do sebastianismo de “patetas” e “psicopatas”. Mas Quadros vai mais longe quando escreve que “Sérgio viveu num mundo de quantidades intermudáveis, de estatísticas que tudo explicam, de figuras geométricas rectílineas, de demonstrações matemáticas e de teoremas cujos resultados são indiscutíveis, evidentes e universais – sujeitando, pois, a esse ponto de vista abstractivo todos os temas que lhe interessou discutir, mudar, reformar.

Foi um pensamento essencialmente redutor. Um pensamento constantemente apostado em reduzir o complexo ao simples, o enigmático ao claro, o curvilíneo ao rectilíneo, o múltiplo e o diverso ao uniforme, o imenso ao mínimo, o espiritual ao material e o antropológico ao sociológico. Por isso, polarizou e orientou os desejos obscuros de igualização pela mediocridade de uma burguesia desenraizada, céptica e materialista, à procura de justificações ou álibis para o seu pragmatismo de curto fôlego”.

Reconstituamos a polémica e analisemos, com isenção, os argumentos de cada lado. É a partir da sua colaboração na Águia, logo após a implantação da República em Portugal, que António Sérgio se manifesta contra os princípios que orientam, em certa medida, a edição dessa Revista por Teixeira de Pascoaes. Contudo, apesar de considerar o poeta do Marão como saudosista, ultramontano e lusitanófilo, colaborará com o Órgão da Renascença Portuguesa bastante tempo, diremos até que nele verá uma tribuna para se expressar livre, larga e contrastadamente: “todas as questões sociais devem na Águia ter lugar, desde que sejam tratadas com seriedade, sobriedade e certa altura de pontos de vista” . Mas a polémica de Sérgio acerca de uma identidade nacional e de uma psicologia lusíada inicia-se aí. Se no início de 1912, confessa a Raúl Proença que “os rapazes tendem a fazer da revista um campo fechado da seita poético-neo-místico- saudosa” , não tarda a endurecer as suas críticas e a proclamar que as correntes e os fundamentos que os membros, em geral, da Águia defendem não são coerentes e aplicáveis ao Portugal do século XX: “Não desejo ferir o Pascoaes, certamente, porém julgo-me não só no direito mas também no dever de protestar contra o saudosismo, visto que o creio uma tendência nociva e contrária à regeneração da vida, da inteligência, da educação e do carácter português. O temperamento saudoso (elegíaco, literatesco, voltado para o passado) é exactamente o maior defeito de que sofremos. Precisamos das qualidades contrárias de senso prático, inteligência lúcida, amor das actividades úteis e da ‘existência de comerciantes honrados’ que o Pascoaes estupidamente desdenhou. Precisamos exactamente de ser comerciantes honrados (tal era Bach, o mais altamente idealista de todos os músicos), em lugar do que temos sido: saqueadores, parasitas, fadistas, bacharéis inúteis, bandidos desonrados” . Se guerreia contra o saudosismo pascoaesiano, contraria, de igual forma, o sebastianismo que, na época, Fernando Pessoa já exaltava: “A Renascença, dando-lhe [ao Fernando Pessoa] a honra e o privilégio de substituir o seu chefe no artigo de fundo doutrinal, tornava-se solidária dessa revivescência do que houve de mais imbecil e decaído no espírito português: o desvairamento histérico em que nos deixou Alcácer”.

A bem da verdade, António Sérgio não conseguiu destrinçar o D. Sebastião histórico do movimento mítico-saudosista que se fundou a seguir ao seu desaparecimento no deserto marroquino e, nesse ponto específico, António Quadros tem razão. No entanto, este último relevou todos os aspectos negativos que conduziram a tomada do Norte de África, por parte do Rei Desejado, ao fracasso e à perda da independência portuguesa. Para o autor de Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, à semelhança de Pascoaes, o abismo em que Portugal caiu (o Portugal real e histórico), constituiu-se enquanto catarse  e permitiu que o país se elevasse para uma dimensão superior, espiritual, mítica que transcende qualquer queda histórica, objectiva e factual. Ao menosprezar esta vertente a favor de uma outra que enaltece apenas a poesia, o romantismo, a mitologia, Quadros também errou e, em certa medida, cometeu o mesmo pecado que Sérgio cometera: confundir dimensões que, a priori, não podem sequer tocar-se, quanto mais reunir-se. Uma coisa é filosofar a propósito daquilo que é misterioso, simbólico, enigmático, arquetipal, inefável, essencial, mitológico, - Quadros considera que “não é uma actividade menos racionalista pensar a saudade ou o mito, do que pensar a sensação ou a percepção”  -, outra é confundir ou misturar dimensões, como se cada uma pudesse influir categorialmente na outra. Tanto António Sérgio como António Quadros não conseguiram distinguir os erros do D. Sebastião histórico do romantismo do D. Sebastião mitológico, por exemplo. Ora, o âmago da polémica reside precisamente aqui. Sérgio, e outros como ele que defendem o racionalismo e o idealismo crítico, denunciam os malefícios que foram impregnados à educação dos portugueses por via de uma exaltação messiânica, profética, romântica e saudosista da historiografia lusitana e que, no seu entender, conduziram Portugal para a inércia, para o atraso social e cultural, para o conservadorismo, para a pequenez mental. Por sua vez, António Quadros, e todo o movimento da filosofia portuguesa, consideram que Portugal é detentor de um projecto áureo, universal e congregador para toda a humanidade e que, por esses motivos, não poderá ater-se somente àquilo que é temporal, contemporâneo, progressista, mas, acima de tudo, àquilo que extrapola este patamar e se ocupa do mito, dos símbolos, dos arquétipos e das formas. Contudo, Quadros não é totalmente justo com Sérgio quando afirma que o ilustre seareiro “adoptou desde o princípio e como princípio o modelo matemático-geométrico da realidade sociocultural e humana, em detrimento do modelo biológico. Foi um clássico e um anti-barroco. Mas foi um clássico maniqueísta, ao contrário dos Gregos, que reverenciavam ao mesmo tempo Apolo e Dionisos, Atena e Deméter, a Filosofia e os Mistérios, a Ordem Dórica e a Tragédia.

Ignorando a exuberância multímoda e sinuosa do impulso dionisíaco, passando ao lado do mistério do ser, da natureza e do homem” . Como sabemos, António Sérgio foi um opositor do materialismo em estrito senso; condenou a separação que comummente se faz entre razão e sentimento / emotividade ; defendeu a existência e a inefabilidade dos mistérios . No entanto, os objectivos que subjazem aos dois lados desta polémica que já se trava há mais de dois séculos em Portugal, não deixam de ser idênticos: ambos visam edificar uma filosofia da cultura portuguesa.

A filosofia da cultura portuguesa que António Quadros defende está associada ao projecto áureo e universal destinado aos portugueses, cujos pressupostos se baseiam na paideia dionisíaca, essencialmente no Culto do Espírito Santo. Esta apologia propõe uma visão ecuménica para o cristianismo e para o catolicismo. Quadros crê que, num tempo futuro, todas as grandes religiões se fundirão entre si por meio da Nova Aliança e estabelecerão uma nova Era - a do Espírito Santo. Tal Idade promover-se-á em direcção a um movimento universal e ecuménico e realizará a Profecia que está revelada no Apocalipse de São João: o re-estabelecimento da Nova Jerusalém. Este Tempo ou Idade do Espírito Santo que o nosso autor propõe, sobretudo no II.º livro de Portugal – Razão e Mistério, é inspirado na hermenêutica joaquimita das Três Idades que Jaime Cortesão e Agostinho da Silva discutem aprofundadamente nas suas obras. Deste modo, à semelhança de Agostinho e de Cortesão, António Quadros apresenta uma leitura muito mais fiel àquela que foi veiculada pela tradição do franciscanismo espiritual (ou até mesmo radical) do que à interpretação deixada pelo próprio Joaquim de Fiore.

Em traços muitos largos, na medida em que tal teoria da história é assaz conhecida de todos e porque já se encontra exposta e discutida neste volume , resta-nos sintetizar os seguintes aspectos: Joaquim de Fiore, abade cisterciense, nascido em Itália no século XII, propõe uma nova teoria da história baseada numa hermenêutica aprofundada dos Evangelhos. Na sua perspectiva, a história divide-se em três tempos ou em três idades: a Idade do Pai, a Idade do Filho e a Idade do Espírito Santo. A Idade do Pai corresponde a um tempo criador e legislador, a Idade do Filho a uma época de amor e de caridade e a Idade do Espírito Santo a uma era de graça plena. A primeira é uma idade já pretérita, a segunda é a idade do presente e a terceira e última é uma idade do futuro. Tal teoria terá sido supostamente difundida pelos franciscanos espirituais por toda a Europa e terá interessado a alguns cientistas, médicos, filósofos e clérigos. Dentre eles, Arnaldo de Vilanova, médico da Princesa Isabel de Aragão, futura mulher de D. Dinis e futura Rainha de Portugal. Algumas fontes afirmam que Vilanova iniciou a Rainha Santa nas teorias joaquimitas ou na perspectiva radical que os espirituais fransciscanos delas fizeram, que, ao serem partilhadas com D. Dinis, terão conduzido os monarcas portugueses a criarem o Culto do Espírito Santo. De um ponto de vista simbólico, tal culto consistia na eleição de uma pessoa como Imperador, que depois de ser coroado, saía em procissão pelas ruas, rodeado de muita festa e celebração. Era comum o tal Imperador conceder dote às donzelas pobres que estavam em vésperas de casar. Com a expansão do Culto do Divino Espírito Santo para as ilhas dos Açores e depois para a Índia e para o Brasil, a simbologia da sua adoração foi-se alterando gradualmente. De tal modo que, tal como Agostinho da Silva defende na sua obra, chega a uma determinada altura em que o Culto é vivido em três grandes momentos: a coroação de um Menino como Imperador do Mundo, a soltura dos presos e a realização de um banquete gratuito.
 
No que diz respeito à influência que Arnaldo de Vilanova imprimiu no pensamento de D. Dinis, António Quadros vai ainda mais longe. O autor considera a possibilidade do médico catalão ter visitado Portugal e, pessoalmente, ter colocado o Rei Poeta a par das profecias joaquimitas . Está convicto, aliás, de que D. Dinis é um dos homens espirituais a quem Joaquim de Fiore faz menção nas suas obras. Ou seja, é um dos eleitos a quem foi confiado fazer a transição entre a Idade do Filho e a Idade do Espírito Santo, tão simplesmente porque, pelos cálculos de gerações esboçados pelo monge, a Era do Espírito Santo teria início no ano de 1260. Curiosamente, D. Dinis nasce em 1261. Para Quadros, o monarca foi um dos escolhidos para encetar o ano 1.º da Idade do Espírito Santo. Para além de tudo isto, se tivermos em conta os obstáculos burocráticos que o Rei teve de enfrentar para ser coroado, conclui-se que D. Dinis foi divinamente eleito . Contudo, a leitura apresentada por Quadros, quanto a esta questão, não pode ser considerada definitiva e absolutamente: se considerarmos a flutuação do número de gerações depois de Cristo, o começo da Idade do Espírito Santo define-se no ano de 1200 e não no de 1260 . De todo o modo, o que é relevante equacionar, não é tanto as afinidades que a proposta de António Quadros sente com aquela que De Fiore apresentou (até porque, como já notámos, o autor, seguindo a linha de Cortesão e de Agostinho, descomplexifica e metaforiza alguns pontos da teoria da história joaquimita), mas antes compreender de que modo o Culto que Isabel e Dinis conceberam se pode constituir enquanto projecto áureo para o futuro de Portugal. Até porque, segundo julga António Quadros, “não foi uma festa que aconteceu. Não foi uma espontânea manifestação ingénua e popular. Foi um acto intencional e pesado de simbolismo, tão intencional e pesado de simbolismo, que sem uma reflexão sobre o seu sentido não se nos afigura possível entender o movimento teleológico da pátria portuguesa neste período áureo e axial”.

No livro II de Portugal – Razão e Mistério, António Quadros explicita de que forma é que o telos de Portugal, enquanto Pátria, se revê na paideia dionisíaca: “Não será excessivamente ousado dizer que a paideia original portuguesa (...) ganha realidade e estabelece os seus princípios com o reinado de D. Dinis, exprimindo-se visível e profeticamente com alguns gestos pesados de significado, de simbolismo e de energia genesíaca, rigorosamente coerentes e entre si complementares, porque exprimindo desde logo um sistema, como é próprio de toda a paideia, conforme o paradigma grego. (...) Assim no caso português foi com D. Dinis que a paideia geral oeste-europeia, cristã e católico-romana, românico-gótica e escolástica, cavaleiresca e feudal, recebeu uma interpretação, uma reorientação e uma direcção de algum modo inesperadas, abrindo-se então um novo ciclo teleológico na vida portuguesa, criando-se entre nós uma paideia original e surgindo uma dimensão inédita da cristandade e da europeidade. (...) O rei D. Dinis faz contudo um projecto concreto e novo, de surpreendente inventiva, de genial visão teleológica, de extraordinária coragem ética e intelectual” . No fundo, Quadros quer dizer que D. Dinis – o plantador de naus a haver -, ao instaurar o Culto do Espírito Santo, ao oficializar a língua portuguesa, ao fundar o Estudo Geral (Universidade Portuguesa), ao salvar a Ordem dos Templários transformando-a na Ordem de Cristo, ao viabilizar, em certa medida, a empresa dos Descobrimentos, acaba por estabelecer os principais fundamentos de uma paideia singular que concretizará um novo Portugal, que projectará o futuro deste país por muito séculos em diante. Tantos que, ainda hoje, há quem, como António Quadros, no século XX, acredite que o plano missionário dos portugueses ainda não se cumpriu integralmente, que a Idade do Espírito Santo ainda não foi instaurada de uma forma plena. Essa missão estabelecer-se-á a partir do momento em que o ecumenismo e o universalismo forem implantados, quando os portugueses, de toda a sua extensão lusófona, compreenderem que a sua incumbência é traduzir para os demais povos a linguagem do Espírito Santo.

Poder-se-á atestar, conclusivamente, que, no contexto do movimento da filosofia portuguesa, do qual António Quadros é um dos membros mais entusiastas, há um conjunto de pressupostos que caracterizaram a ideia de Deus ou que a ela estão associados e que se resumem aos seguintes itens: providencialismo, determinismo e liberdade, messianismo, profetismo, santíssima trindade, ecumenismo, humanismo universalista, cristianismo primitivo, franciscanismo espiritual, culto mariano, sensibilidade panteísta e saudosismo. No entanto, tudo isto se explica para António Quadros porque “são os portugueses a nosso ver os directos descendentes da cepa atlante sobre cujas sementes espalhadas pelo mundo, se ergueu o edifício da civilização mediterrânica. Tronco antigo e nodoso, que recebeu ao longo do caminho muitas enxertias, mas que permaneceu basicamente o mesmo. Parece ser seu destino a capacidade de criar os grandes ciclos da cultura e da civilização, para logo depois, como se esgotado pelo esforço ou como se castigado pelos desvios da sua fragilidade humana, demasiado humana, entrar em longos períodos de decadência de que aliás volta a emergir para de novo dar novos mundos ao mundo. Não para sermos uma nação feliz parecemos ter nascido, mas para sermos construtores de história em épocas axiais ou fundadoras...

Povo da saudade e do saudosismo, mas também povo teimoso, povo de esperança, ainda que absurda, projectada em última análise no mito quando tudo parece perdido ou já não há confiança nos dirigentes, nas elites, nas condições sociais, económicas e materiais”.

Romana Valente Pinho
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

Pátria Real e Pátria Imaginária:
uma reflexão a partir da obra de António Quadros 

“A razão de Portugal, a razão de ser de Portugal é antes de tudo uma razão teleológica, isto é, uma razão aberta para com um telos ou um fim que é a justificação última do seu movimento no tempo e no destino”.
António Quadros, Portugal – Razão e Mistério, vol. I

“Portugal é um balcão sobre o infinito”.
Hermann de Keyserling, Analyse Spéctrale de l’Europe

Na esteira de Luís de Camões, António Vieira, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Raúl Leal, Fernando Pessoa, José Marinho, Álvaro Ribeiro e Agostinho da Silva, António Quadros (1923-†1993) defende que a nação portuguesa, na sua essência, conceitual e objectivamente, é dotada de um eschaton, de uma razão teleológica, que consiste num diálogo ou numa dialéctica entre o humano e o divino: “Talvez nenhuma história humana, como a portuguesa, em seu esplendor, em seu claro-escuro e em seu negrume, seja tão dramaticamente exemplar desta dialéctica”.

António Quadros apresenta-nos, então, Portugal enquanto Pátria eleita por Deus, destinada a realizar fins universais. À semelhança do povo de Israel, parece que os portugueses são também um povo eleito por Deus. No pensamento do autor de Portugal – Razão e Mistério, esta questão emerge, quase logo, sem qualquer mediação, ou seja, se Quadros chega a afirmar que “a cada povo é proposto um ideal diferente de realização da humanidade ... E nem poderia ser de outra forma, porque os povos não são iguais, diferem pelo seu composto étnico, pela língua que falam, pela estrutura cultural em que se enquadram, pela sua religião ou religiões dominantes, pelas vicissitudes da sua história particular, pelo seu sistema de ideias, mitos e tendências afectivas, pelo seu ritmo evolutivo segundo um modelo próprio embora implícito, aliás adequado à substância específica da sua realidade humana e social, enfim pela revelação que a todos os níveis lhes é concedido em sua experiência de ser. ¶ Mas no segredo da sua relação com a natureza e o mundo, no enigma da sua psicologia, arte, literatura e simbólica ou no mistério da sua cifra divina, realizam dentro de si o universal, são microcosmos exemplares da univocidade humana versus um eschaton uno e último” , imediatamente escreverá, na página 17, que “o povo português, formando no conjunto e na hierarquia intelectual dos seus estratos a nação portuguesa, teve um projecto, ou melhor, guarda nos seus arcanos, no seu inconsciente arcaico, na cifra da sua língua e cultura, na sua memória inconsciente, no seu imaginário, no seu pensamento implícito e por vezes explícito, um projecto, a que chamamos um projecto áureo de realização da humanidade”. Se, a priori, António Quadros discorre acerca da propensão particular e universal de cada povo, se apela para a diversidade natural de cada um, por outro lado, sublinha a universalidade e a pluralidade de Portugal. Embora todas as nações, em si, sejam, plurais, diversas e diferentes, parece que Portugal é mais plural, mais diversa e mais diferente do que todas as outras. E só o é porque Deus assim o quis, porque  a ele confiou um projecto maior, a saber, purificar a razão humana por meio do Espírito Santo. Independentemente de os portugueses terem sido eleitos por Deus ou, como preferia Agostinho da Silva, se terem auto-eleito para a edificação de uma empresa universal, o que importa realçar é a característica dessa demanda. Quadros sintetiza-a, à maneira camoneana e pessoana, enquanto epopeia de Deus através do homem português, como aventura de Deus na terra.

Apoiado numa tradição de muitos séculos de filosofia providencialista, teleológica, mística e sebástica, António Quadros dirá, quase ipsis litteris, o mesmo que Camões, Vieira, Pessoa e Agostinho da Silva, a seu tempo, disseram. Restar-nos-á, então, apenas questionar a validade de tais argumentos para os séculos XX e XXI? Ou, além disso, ser-nos-á possível consentir, admitir e perpetuar algo que, à partida, não passa de um dogma, de um dogma da portugalidade ou da lusitanidade, de um dogma que postula o nosso país enquanto periferia privilegiada? Parece-nos, desde já, que nada há de pejorativo ou judicativo nesta interrogação: um dogma é apenas um dogma, algo que apenas não pode ser questionado, nada mais.

Se, como já apontáramos antes, Deus confiara aos portugueses um destino eleito, áureo e providencial, resta-nos, pois, analisar o cariz desse destino. Quadros descreve-o usando adjectivos precisos e, de alguma maneira, peremptórios e significativos: missionário, sacrificado, heróico, abismático, promissor, saudoso e esperançoso. Embora alguns destes adjectivos sejam contrários entre si, na sua essência revelam, curiosamente, tal como Teixeira de Pascoaes aponta, a particularidade do ser português. A peculiaridade do destino dos portugueses resulta, portanto, do decurso plural, multímoda e diferenciado da sua História. O nosso autor atribui-o especificamente à influência que São Bernardo de Claraval teve na construção do ideal templário que perpassou por todos os principais movimentos de criação e renovação de Portugal, desde, por exemplo, da iniciativa fundadora de D. Afonso Henriques até à empresa dos Descobrimentos; à característica messiânica do sebastianismo; à vertente criacionista do saudosismo; e, acima de tudo, ao projecto áureo de Portugal que se constitui e se revê integralmente no culto do Espírito Santo. Todos estes aspectos confluem para o estudo da arqueologia da tradição portuguesa; para a assunção, por parte daqueles que se reconhecem herdeiros desta gesta, de uma missão que não é apenas terreal mas que é também paradisíaca (o fito do templarismo, do sebastianismo, do saudosismo ou até mesmo do pentecostismo é, no fundo, o estabelecimento da Jerusalém Celeste, do Reino de Deus na Terra; é o regresso às origens edénicas); para o enaltecimento da filosofia providencialista e, consequentemente, para a rejeição do positivismo histórico e do idealismo crítico (este último defendido, em Portugal, sobretudo por António Sérgio).

No livro II da sua obra Portugal – Razão e Mistério, António Quadros aponta que “se a Nação é a comunidade natural dos nascidos ou oriundos do mesmo território e se o Estado é a expressão política desta comunidade natural, ainda precária, a Pátria é a relação viva, profunda, substancial de um povo, não só com uma tradição contínua, transmitida de pais para filhos e articulada por laços culturais, políticos e jurídicos, mas também com um projecto teleológico original.

Por outras palavras, a Pátria, até etimologicamente, não é só a relação de cada um com a terra em que nasceu, é mais do que isso, é a relação com a terra dos Pais, com a comunidade dos antepassados, é uma vinculação antes humana e familiar do que telúrica ou territorial, implicando, por isso mesmo, desde que assumido dinamicamente o conceito, a prospectividade de um movimento para o futuro. Terra dos Pais, é necessariamente também a Terra dos Filhos e dos Irmãos. E, nesta transmissão amplificante, desenvolve-se um espírito personalizado, um projecto, uma teleologia nacional” . Ao fim e ao cabo, a Pátria é mais do que um conjunto de princípios jurídicos, estes absolutamente frágeis, exteriores e falíveis, defensáveis pelas nações e pelos estados para que a ordem, a legalidade e a sobrevivência não sejam ameaçadas, para que o estado natural, de barbárie e selvajaria, não volte a amedrontar os seres humanos. A Pátria, ao invés disso, rege-se por princípios sagrados e fins superativos. Ora, para Portugal e para os portugueses, tais princípios e tais fins foram ofertados por Deus. Esta questão específica, como acima defendemos, é um dogma e, nesse sentido, talvez não seja despropositado sugerirmos uma distinção entre Pátria Real e Pátria Imaginária ou Mítica. Por Pátria Real entenderemos uma sociedade (enquanto Estado-Nação) que, para além de se reger por um conjunto de princípios e sentimentos superiores que prezam a sua unicidade, a sua tradição, o seu passado histórico e o seu porvir, acolhe, da mesma forma, uma série de categorias que lhe permitem actuar como Pátria moderna, aberta ao Mundo e às novidades do seu tempo. Os cidadãos de uma Pátria Real até poderão pensar que são seres predestinados a um fim universal e áureo, que são missionários de um Além Reino, mas não terão como descurar os processos históricos nos quais estão envolvidos, as matizes sociológicas e culturais que, a todo o instante, se lhes apresentam. Afonso Henriques foi um patriota de uma Pátria Real, os portugueses que navegaram todos os oceanos e criaram novas civilizações, fundindo-se com outras culturas, foram patriotas de uma Pátria Real. De outra forma, por Pátria Imaginária ou Mítica compreenderemos uma ideia de sociedade que se exprime na exaltação constante de princípios superiores e divinos, na sublimação de arquétipos messiânicos e proféticos e, simultaneamente, no corte com todos os movimentos sociológicos, materialistas, económicos, historicistas, progressistas e estrangeirados que naturalmente conduzem as nações para a actualidade e para as experiências do seu tempo. Dizemos Imaginária ou Mítica tão-só porque não é real e porque sobrevive apenas na imaginação, nas quimeras e nos mitos daqueles que a exaltam e nada fazem para que ela se torne real. A ideia de Pátria que António Quadros defende é aquela que definimos como Pátria Real (notemos que o auge da sua ideologia se centra na perpetuação da paideia dionisíaca para o porvir de Portugal), contudo, a partir do momento em que o autor de Portugal – Razão e Mistério rejeita um par de princípios que, pela sua contemporaneidade, são fundamentais para a vivência das nações no seu dia-a-dia e se refugia apenas nos princípios superiores, divinos, predestinados que, supostamente, fundamentam a existência e o futuro de Portugal, a ideia de Pátria que acaba por vingar nos seus escritos é aquela de uma Pátria Imaginária ou Mítica, que vive somente no seu espírito e que, por não se embrenhar na realidade e no contexto da vida contemporânea, nele se estagnará. É neste aspecto que a consideramos um dogma, já que os pressupostos em que assenta não são passíveis de discussão racional, pertencem a outras ordens: da crença e do mito. Esclareçamos com estes exemplos: “A Pátria conquista, se e quando tal sucede, mais do que a frágil e aleatória legalidade jurídica, uma legitimidade transcendental, que já não deriva da simples ocupação e posse de um território, mas de princípios sagrados e de fins superativos” ; “Profetas e santos, filósofos, sábios e poetas, heróis ou até políticos são os motores da história, não porque exprimam forças materiais e sociais, não porque sejam agentes de um jogo de interesses económicos e nem sequer porque governem a existência pelo seu voluntarismo pessoal, de grupo ou de classe, mas porque se dá neles uma convergência da qualidade humana individual com a graça ou com a escolha divinas” . Na nossa visão, não basta exaltar uma ideia de Pátria para que ela se efective, é necessário que essa evocação se presentifique e se torne real, no fundo, se faça viver no quotidiano. Neste aspecto, é cada vez mais difícil interpretarmos comentários como os de Hermann de Keyserling, na medida em que, ao mesmo tempo, nada e tudo dizem. A que é que este autor se refere quando afirma que “Portugal é um balcão sobre o infinito”? Se, aparentemente, adjectivar Portugal enquanto balcão sobre o infinito significa muita coisa, tudo até, na realidade, poderá não significar nada, é algo muito abstracto, difuso. Tal expressão constitui-se, porventura, como uma daquelas frases que contribuem para o conceito de portugalidade como dogma e que está associada à assunção de Pátria Imaginária. De qualquer forma, a noção de Pátria que António Quadros nos apresenta, especificamente aquela que intitulámos como Pátria Real, e que se revê na paideia que D. Dinis concebera,  transcende qualquer polemismo e dilemática que, desde sempre, se tem gerado em torno desta questão e é perfeitamente defensável, no contexto da contemporaneidade portuguesa e lusófona, para o nosso século, para os nossos tempos, e não só, tal como o nosso autor propõe, para uma dimensão inédita da cristandade e da europeidade. Tal projecto, cuja expressão máxima, é a vivência do Culto do Espírito Santo em todas as suas potencialidades, concretizar-se-á a partir do momento em que Portugal, enquanto Pátria Real, se assumir veículo para toda a lusofonia, para todo o Portugal que se multiplicou e re-descobriu no resto do Mundo.

“Há três anos passados, na Véspera de Pentecostes, dia 1.º de Junho de 1935, pela estrada que liga à Vila de Estaca-Zero, vinha se aproximando de Taperoá uma cavalgada que iria mudar o destino de muitas das pessoas mais poderosas do lugar (...). Era, talvez, a mais estranha Cavalgada que já foi vista no Sertão por homem nascido de mulher. (...) A segunda singularidade era que a Cavalgada tinha, à frente, três homens, à guisa dos ‘matinadores’ que iniciam nossos desfiles de Cavalgada. O primeiro, o mais da frente, estava a cavalo, e conduzia na mão uma bandeira que, depois, devidamente instruído por mim e pelo Doutor Pedro Gouveia, o Cantador Lino Pedra-Verde descreveria assim, no ‘folheto’ que escreveu sobre o acontecimento:

‘Dividida por dois Campos
- um Direito e outro Esquerdo –
tinha três onças vermelhas
em campo de Ouro – o Direito –
e Contra-arminhos de Prata
semeando o Campo negro’
 
(...) Atrás, porém, desse primeiro matinador, vinha um segundo homem, a pé, conduzindo uma pesada haste de madeira, com outra menor cruzada em cima, sendo que esta, braço transversal da cruz, vinha cheia de Gaviões e Carcarás, amarrados pelos pés e argolinhas cravadas na madeira. Em seguida, a cavalo, vinha um terceiro homem, o mais esquisito de todos, creio. Era uma espécie de Frade-cangaceiro. (...) Entretanto, o nosso Monge-cangaceiro daquele dia não vinha nem com sobrepeliz nem com armadura de ferro. Envergava um burel branco, com um enorme Coração-de-Jesus sangrento e flamejante, bordado a seda vermelha, no peito. (...) O Frade conduzia ainda, (...) uma bandeira, mais alta do que larga, vermelha e com peças de ouro enfeitando o campo encarnado (...). Nos cantos,  formando uma “aspa” ou “santor”, havia quatro peças que pareciam ter sido bordadas em pano amarelo, imitando “ferros” de ferrar boi, mas que, de facto, ‘simbolizavam chamas’, (...) havia um Sol com dezasseis raios e com seu centro, vazio, formando um anel que circundava um pombo volante. Embaixo do Sol, uma Coroa Real, encimada por Esfera e Cruz, sendo todas essas peças ‘de ouro em campo de goles’”.
Ariano Suassuna, O Romance da Pedra do Reino

Romana Valente Pinho
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa



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