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A Verdade sobre a “Mensagem”

Um dos muitos mitos pessoanos criados por João Gaspar Simões na sua Vida e Obra de  Fernando Pessoa (1950) e que ainda hoje perduram, tornados lugares-comuns acriticamente  repetidos por sucessivas gerações de estudiosos pessoanos, é o do “prémio  de  consolação”  atribuído  em  1934  à  Mensagem  pelo  júri  dos  Prémios Literários do Secretariado da Propaganda Nacional (S.P.N.).

É esse episódio de que me vou ocupar, propondo não uma verdade “à la Gaspar Simões”,  mas uma tentativa de aproximação à verdade do que realmente se terá passado.

No entanto, como se verá, embora seja evidente que a Mensagem não recebeu um “prémio  de consolação” humilhante, persistem no processo alguns aspectos pouco claros (para não dizer misteriosos) que não encontram fácil explicação.

Em nota  publicada  nos  jornais de  29  de  Novembro de  1933, o  Secretariado da Propaganda  Nacional,  dirigido  por  António  Ferro,  anunciava  a  criação  de  cinco Prémios Literários – Prémio Eça de Queiroz (Romance), Prémio Alexandre Herculano (História), Prémio  Antero de Quental (Poesia), Prémio Ramalho Ortigão (Ensaio) e Prémio António Enes (Jornalismo), destinados a que “a Política do Espírito seja, em Portugal, uma realidade, e para que a nossa atmosfera intelectual se anime de novos estímulos e de novos motivos de expansão (...)”.

O  regulamento  do  concurso  punha  condições  à  índole  das  obras  que  seriam admitidas.  Falava-se  em  servir  “uma  intenção  amplamente  construtiva”  (para  o Romance),  em  “firme  critério  patriótico”(para  a  História),  em  “inspiração  bem portuguesa e, mesmo, de preferência, um alto sentido de exaltação nacionalista” (para a  Poesia), em  “espírito nacional e  renovador” (para  o  Ensaio)  e,  finalmente, em assunto de largo alcance nacional” (para o Jornalismo).

O Júri do Prémio Antero de Quental seria constituído por “um poeta de grande nome nacional, um poeta da nova geração literária e dois críticos literário em exercício na Imprensa de Lisboa”.

As condições do concurso provocaram uma reacção imediata da revista Presença, em cujo  número  39  (o  mesmo  em  que  veio  publicada  a  “Tabacaria”,  de  Álvaro  de Campos), Albano Nogueira veio severamente contestá-las, em nome dos “direitos do Espírito e a inalienável liberdade do Artista”. Escreve o articulista: “Seria por todos os títulos louvável tal iniciativa se, logo de princípio, os seus possíveis bons resultados não  estivessem  seriamente  comprometidos pelo critério adoptado”, porquanto tais bases não só tendiam a reduzir o artista, a “servidor de qualquer doutrina ou seita” ou a “panfletário”, como iriam certamente viciar o julgamento dos méritos das obras.1

As condições restritivas do Regulamento não preocuparam excessivamente Pessoa, que resolveu concorrer ao Prémio Antero de Quental com a Mensagem. Como disse a Casais  Monteiro, em carta de 13 de Janeiro de 1935, “Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei  porquê, ter  organizado e  pronto.  Como  estava  pronto,  incitaram-me  a  que  o publicasse: acedi”.2

Na mesma carta, Pessoa esclarece: “Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de “Mensagem” figurava em número  um”. Tipicamente, Pessoa dizia ao seu correspondente o que para ele, naquele momento, era “verdade” – mas não o tinha sido três anos antes, quando dava conta a João Gaspar Simões dos seus planos editoriais.

De facto, em carta de 28 de Julho de 1932, dizia a Gaspar Simões: “Primitivamente, era minha intenção começar as minhas publicações por três livros, na ordem seguinte: (1) Portugal,  que é um livro pequeno de poemas (tem 41 ao todo), de que o Mar Português  (Contemporanea 4) é a segunda parte (...)”. Seguir-se-iam o “Livro do Desassossego”,  os   “Poemas  Completos”  de  Alberto  Caeiro  e,  mais  tarde,  o “Cancioneiro” e a série das  “Ficções do Interlúdio” (com a poesia dos heterónimos). Mais adiante, Pessoa resume: “A  intenção, possivelmente provisória, em que estou agora é de publicar, sendo possível este ano, ou na passagem dele para o outro, o Portugal  e  o  Cancioneiro.  O  primeiro  está   quase  pronto  e  é  livro  que  tem possibilidades de êxito que nenhum dos outros tem. O  segundo está pronto: basta escolher e colocar”.3

Tais  como  a  informações  a  Casais  Monteiro,  estas  constituíam  a  “verdade”  do momento em que Pessoa escrevia. O livro “Portugal” - a futura Mensagem - não estava  “quase pronto” em 1932. Só o viria a estar em 1934, quando, com vista à iminente publicação para efeitos do concurso do S.P.N., Pessoa escreveu os últimos dez poemas que integrou na versão final, contendo, não os 41 poemas previstos em 1932,  mas  os  44  que  constituem  a  obra  entregue  na  tipografia.  Quanto  ao “Cancioneiro”,  estava,  em  1932,  muito  longe  de  acabado  (ou  até  mesmo  de começado). Em carta a Casais Monteiro datada de 20 de Janeiro de 1935 – dois anos e meio passados sobre as informações dadas a Gaspar Simões – Pessoa informa que está  em  vias  de  publicar  “o  livro  grande  em  que  congregue  a  vasta  expressão autónima de Fernando  Pessoa. Salvo qualquer complicação imprevista, deverei ter esse livro feito e impresso em Outubro deste ano”.4

Voltemos à carta de “explicações” sobre a Mensagem, dirigida por Pessoa a Casais Monteiro.  Escreve  Pessoa:  “Como  [o  livro]  estava  pronto,  incitaram-me  a  que  o publicasse”. “Incitaram-me” – quem?

Para mim, não oferece dúvidas que a publicação da Mensagem e a sua apresentação ao concurso foram o resultado de uma conspiração de, pelo menos, quatro amigos de Pessoa:  Augusto Ferreira Gomes, Augusto Cunha, Almada Negreiros e o próprio António Ferro.

O Director do S.P.N., antigo companheiro de Pessoa dos tempos do Orpheu, tinha todo o interesse político em reconhecer oficialmente o talento de Pessoa tornando-o, pelo menos na aparência, um escritor não desafecto à “Situação”. Sabe-se hoje que esse seu interesse em ver Pessoa concorrer e ganhar o Prémio Antero de Quental, o levou ao ponto de adiantar, do “saco azul” do Secretariado, o dinheiro necessário para a composição e impressão da Mensagem, como há anos me revelou o pintor Paulo Ferreira, à época jovem colaborador do S.P.N.

Assegurada  a  cumplicidade  activa  de  António  Ferro,  os  outros  conspiradores montaram um “lobby” destinado a influenciar o júri em favor da Mensagem.

Como o júri veio a reconhecer na decisão final, Pessoa era um escritor “isolado voluntariamente do grande público”; e António Ferro, no seu discurso na cerimónia final de  entrega dos prémios, sublinhou que o concurso atingira os seus objectivos, revelando  autores  como Vasco Reis ou “roubando-os ao seu isolamento, como no caso de Fernando Pessoa”.

Para quebrar um pouco desse isolamento, chamando a atenção do público (e do júri) para o Poeta, o “lobby” entrou em acção.

A primeira iniciativa,  em  16  de  Junho  de  1933,  foi  a  publicação, promovida por Augusto Ferreira Gomes, dos doze poemas de “Mar Português” no jornal A Revolução. Este  jornal  era   o   órgão  do  Nacional-Sindicalismo  –  o  movimento  nazi-fascista português, chefiado  por  Rolão  Preto,  que  pouco  mais  tarde  Salazar  haveria  de desmantelar e banir.5

Na nota de apresentação, Ferreira Gomes sugere ao Ministério da Educação Nacional que  recomende a  leitura  de  “Mar  Português” nas  escolas,  por  ser  “um  texto  de incontestável  superioridade,  de  incontestável  elevação  espiritual,  de  incontestável patriotismo e de incontestável utilidade nacional”.6

A segunda intervenção do “lobby” deu-se no mês seguinte:  a publicação antecipada de  poemas da Mensagem - “O Infante D.Henrique”, “D. João o Segundo” e uma primeira versão de “Afonso de Albuquerque7  na revista O Mundo Português, editada pela Agência  Geral das Colónias e pelo Secretariado da Propaganda Nacional. O director, Augusto Cunha, além de amigo pessoal e companheiro literário de Fernando Pessoa, era cunhado de António Ferro.

A publicação dos três poemas numa revista  oficial, em que, no mesmo número, colaboravam personalidades como Teófilo Duarte, Marcelo Caetano, Alberto Osório de Castro,  Diogo de Macedo e Henrique Galvão (este retratado por Eduardo Malta), tornava o seu autor “politicamente correcto”.

O terceiro momento do “lobby” ocorreu em 14 de Dezembro seguinte: a publicação de uma página inteira do Suplemento Literário do Diário de Lisboa dedicada a Pessoa e à Mensagem.  O livro já tinha sido posto à venda e estava-se a quinze dias  da decisão do júri.

Na primeira coluna, o jornal publica uma entrevista com Fernando Pessoa, conduzida por  Artur  Portela. É sintomática a presença, citada no texto, de Augusto Ferreira Gomes, autor da fotografia do Poeta que ilustra a entrevista.

Ao lado desta, são publicados, a três colunas, os poemas “O Infante”, “O Mostrengo” e “Prece”,   da  Mensagem,  acompanhados  de  três  desenhos  inéditos  de  Almada Negreiros.    (Note-se  a  preocupação  em  não  repetir  os  poemas  anteriormente revelados na revista O Mundo Português). É evidente que as ilustrações de Almada foram expressamente encomendadas para o efeito,  sendo uma paráfrase plástica dos poemas.

Na entrevista, Pessoa faz diversas revelações sobre a obra,  salientando  “é um livro nacionalista e, portanto, na tradição cristã representada primeiro pela busca do Santo Graal, e  depois pela esperança do Encoberto”, tendo como objectivo “Projectar no momento  presente  uma coisa que vem através de Portugal, desde os romances de cavalaria. Quis  marcar o destino imperial de Portugal, esse império que perpassou através de D.Sebastião, e que continua ‘há-de ser’”.

Dir-se-ia que, com estas palavras, Pessoa prevenia desde logo que o nacionalismo da obra –  característica exigida pelo regulamento do S.P.N. – ir muito além do cânone oficial do  Estado  Novo, para cujos próceres o “destino imperial de Portugal” era já então – e não haveria de ser num futuro indeterminado - uma realidade.

De resto, nas explicações dadas a Casais Monteiro na citada carta de 13 de Janeiro, Pessoa esclarece que convinha que aparecesse e “aparecesse agora” a sua faceta de “nacionalismo místico”, embora “de certo modo secundária” na sua personalidade. E precisa, cripticamente:  “Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do  subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto”.

É significativo o facto de as intervenções do “lobby” chefiado por Augusto Ferreira Gomes terem ocorrido em dois órgãos de informação ligados à “Situação” (O Mundo Português e A Revolução) e um conotado com a “Oposição” ou, como então se dizia, o “Reviralho” (o Diário de Lisboa), ficando assim cobertas as duas principais facções político-jornalísticas do tempo.

Assim, encorajado e ajudado pelos amigos, que lhe garantiam que a Mensagem seria premiada, esperançado em ver, finalmente, uma parte da sua obra apresentada ao público  leitor em geral de   forma autónoma - e não, como até então, dispersa nas páginas de jornais e revistas - Fernando Pessoa tomou, pela primeira vez, a decisão de terminar e publicar um livro.

Mencione-se, ainda, a circunstância de não ser  “pecado intelectual de maior” (como ele próprio disse)  reconhecer o jeito que lhe faria receber os 5.000 escudos do prémio – quantia muito apreciável para a época. Afinal, ao contrário do que dizia, Pessoa era capaz de “premeditação prática”...

Há, finalmente, uma terceira  hipótese (reconheço desde já  que não-provada) em defesa   da  “teoria  da  conspiração”.  Em  determinada  altura,  que  não  consegui determinar, o S.P.N. alterou a data limite da publicação, para efeito de admissão das obras ao concurso, alargando-a de 1 de Julho para 31 de Outubro de 1934.

Ora a Mensagem, ainda não estava pronta em 1 de Julho de 1934. Como Pessoa contou a  Casais Monteiro na citada carta de 13 de Janeiro de 1935, “O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim  de  Outubro”. O volume foi composto e impresso, segundo o colofon, durante o mês de Outubro. Se for possível provar que a alteração regulamentar de datas foi feita antes de Setembro de 1934, então ela tê-lo-á sido em benefício de Pessoa.

Em 31 de Dezembro, os jornais incluindo o Diário de Lisboa, noticiavam a atribuição dos Prémios. O prémio Eça de Queiroz (Romance, no valor de 10.000 escudos), não foi atribuído,  pois o respectivo júri “embora reconhecendo notáveis qualidades em algumas das obras que lhe foram submetidas”, deliberou, por maioria, não o conceder, “visto em nenhuma delas ter encontrado todos os requisitos exigidos pelas bases do concurso e pelas altas exigências  e finalidades a que deveria corresponder a sua escolha”. A não-atribuição deste prémio teve importância para o resto da história. O prémio Alexandre Herculano (História, no valor  de 6.000 escudos), foi atribuído a Caetano  Beirão da  Veiga, pelo  seu  livro  “D.Maria I”.  O  prémio Ramalho Ortigão (Ensaio, no valor de 4.000 escudos), foi atribuído a João Ameal, pelo seu ensaio “No limiar  da  Idade  Nova”.  O  prémio  António  Enes  (Jornalismo,  no  valor  de 2.000 escudos), foi atribuído a Augusto da Costa pelo seu livro de entrevistas “Portugal, Vasto Império”. O júri sugeriu que, na categoria “Jornalismo” fosse atribuído um prémio extraordinário ao livro de Fernando de Pamplona “Os Voronoffs da Democracia”.

O júri do Prémio Antero de Quental, presidido, como todos os outros, por António Ferro,  era  constituído  por  Alberto  Osório  de  Castro  (o  “poeta  de  grande  nome nacional”, então com 66 anos)  Mário Beirão (o “poeta da nova geração”, dois anos mais novo do que Pessoa e seu amigo pessoal)8  , e Acácio de Paiva, e Teresa Leitão de Barros (os dois “críticos literários em exercício”, o primeiro decano do júri com 71 anos de idade, a segunda, a mais jovem, com 36 anos).

O Diário de Lisboa, tal como o Diário de Notícias do dia seguinte, transcreve excertos da acta do júri: “Prémio Antero de Quental (Poesia) - 5.000 escudos. (...) Premiado: em primeira categoria, e por maioria, o livro de Vasco Reis, Romaria (..). Um prémio de segunda categoria, destinado a um Poema ou poesia solta, deu-se, por maioria, ao livro de Fernando Pessoa, Mensagem (...).

É forçoso reconhecer que a redacção da acta não é feliz: salientando o prémio da primeira  categoria (5.000  escudos  para  a  obra  de  Vasco  Reis),  refere  o  prémio atribuído a Pessoa como “um prémio de segunda categoria” – em vez de dizer, nos termos  regulamentares, “o prémio  da segunda categoria, destinado a “Poema ou poesia solta”.

A confusão pioneira de João Gaspar Simões talvez tenha começado aqui e é muito provável  que tenha também contribuído para o comentário sarcástico da escritora Alice Ogando na sua recensão crítica da Mensagem, desde logo publicada no jornal O Diabo em 27 de Janeiro de 1935: “Esta obra obteve um segundo prémio no concurso da Propaganda. Apre! Muito bom deve ser o primeiro premiado para uma obra como esta poder ficar em segundo lugar!”.

O facto é que o júri considerou o (mau) livro de Vasco Reis uma “obra de genuíno lirismo  português, que revela uma alta sensibilidade de artista e que tem um sabor marcadamente   cristão  e  popular”.  Alberto  Osório  de  Castro  fez  mesmo  uma declaração de voto,  afirmando que, ao ler “A Romaria” tivera a sensação que lhe produziria a aparição de um Cesário Verde ou de um António Nobre...

Quanto ao  livro  de  Fernando  Pessoa,  a  acta  reza  que  era  “um  alto  poema  de evocação e interpretação histórica, que tem sido merecidamente elogiado pela critica”, acrescentando que o seu autor “é uma figura de marcado prestigio e relevo nos meios intelectuais   de   Lisboa,  e   uma   das   personalidades  mais   originais  das  letras portuguesas”.

Gaspar Simões escreve no seu livro que, se a Mensagem não ganhou, houve, no entanto “membros do júri que lhe deram o seu voto”. Aqui não se engana, pois, como consta da acta, as decisões do júri do Prémio Antero de Quental foram efectivamente tomadas “por maioria”.

Ora o júri era constituído por quatro elementos, sob a presidência do Director do S.P.N.; se, como consta da acta, este último, “não teve de intervir em nenhuma das resoluções tomadas”, verifica-se que a única maioria possível num conjunto de quatro votos é a de três a favor e um contra. Assim, três membros do júri terão atribuído à Mensagem o prémio da  categoria, contra o voto negativo do quarto membro. Quem teria considerado que o livro de Pessoa não era merecedor do prémio?

Na categoria “livro de versos”, o regulamento impunha que as obras tivessem     mais de cem páginas. Ora o que acontece com a primeira edição da Mensagem ?

A última página numerada do volume é a página 102, seguindo-se-lhe duas páginas não  numeradas. Pode assim dizer-se que, tecnicamente, a brochura apresenta 104 páginas. Por que razão o júri decidiu que tinha menos de cem páginas?

A única explicação é a de que algum ou alguns membros do júri, com minucioso (e suspeito) zelo regulamentar, se deu ao trabalho de analisar tipograficamente o volume, página a  página. Teriam então verificado que o compositor    havia literalmente (e habilmente)  “esticado” o miolo do livro, com o seguinte resultado prático: do total de 104 páginas, 27 estão em branco. Das restantes 77 páginas, 55 contêm os textos dos poemas;  nas restantes 22 paginas estão impressos: títulos isolados (12 páginas), legendas  latinas,  também  isoladas  (4  páginas),  índice  (4  páginas),  frontispício  e colofon (1 página cada).

Ora bem: esta hábil montagem tipográfica foi obra de Augusto Ferreira Gomes, o mais constante amigo e companheiro de Fernando Pessoa: jornalista, poeta, astrólogo, escritor  esotérico  e  boémio,  que  trabalhava  como  artista  gráfico  no  serviço  de publicações do S.P.N. Foi Ferreira Gomes quem levou o Poeta à Editorial Império onde a Mensagem foi impressa e o apresentou a Armando de Figueiredo,  proprietário e gerente da empresa. Armando Figueiredo contou, anos depois, que  Pessoa ia regularmente à tipografia rever as provas do livro mas  “se os seus afazeres não lhe permitiam aparecer , a revisão era feita pelo seu amigo Augusto Ferreira Gomes, com quem tinha grande intimidade”.9

Acontece, todavia, que se o júri foi mesquinho e meticuloso na contagem das páginas da Mensagem, estranhamente (ou propositadamente) não terá notado que, aplicando o mesmo critério tipográfico-contabilístico, o livro de Vasco  Reis tão-pouco podia ser aceite, por não atingir as 100 páginas regulamentares.

Efectivamente, A Romaria tem 120 páginas, das quais     92    são numeradas. Se descontarmos  3  páginas  com  o  ante-frontispício, a  lista das  obras  do  Autor e  o frontispício, 1 página de dedicatória, 2 páginas contendo a “Carta-Prefácio” de Alfredo Pimenta, 8 páginas com epígrafes ou simples numerais romanos, 1 página de errata e 11 páginas em branco, o número de páginas efectivamente ocupadas pelo texto do poema é de 94 – menos seis do que as regulamentarmente exigidas...

O inacreditável subterfúgio do “número de páginas” utilizado para afastar a Mensagem do  prémio da categoria “livro de versos”, revela, a meu ver, que na fase final do concurso,  Fernando Pessoa terá sido vítima de uma contra-conspiração, agora por parte do júri. Terá sido a influência do muito poderoso Alfredo Pimenta, autor da carta- prefácio publicada em A Romaria, na qual fazia encomiásticos elogios a Vasco Reis? E Alfredo Pimenta era um dos inimigos de estimação de Fernando Pessoa – e vice- versa...

Só  a  leitura  da  acta  completa  do  júri  do  Prémio  Antero  de  Quental  poderá, eventualmente, trazer algumas clarificações para o que se passou. Mas ainda não me foi possível encontrar pistas seguras sobre o paradeiro e a acessibilidade das actas, que talvez ainda se encontrem nos arquivos do antigo S.P.N. Ficará, pois, para uma nova investigação e, de momento, temos de contentar-nos com os extractos que delas foram publicados nos jornais da época.

A inesperada decisão do Júri, relegando o livro de Pessoa para a categoria de “poema ou poesia solta”, foi um balde de água fria para o “lobby” pessoano, que nunca teria imaginado  que a Mensagem falhasse o Prémio Antero de Quental na categoria de “livro de versos”.

Foi assim que António Ferro decidiu, “depois da leitura das actas”, tomar a única decisão possível para minimizar o relativo fiasco  provocado  pelo  júri  “contra- conspirador”.

Na acta final ficou, assim, registado que  “O director do Secretariado da Propaganda Nacional não teve de intervir em nenhuma das resoluções tomadas. Mas decidiu, em vista de não ter sido concedido o prémio do Romance, e de existir, assim, um saldo no orçamento dos  prémios literários  deste ano, corresponder aos desejos do júri do Jornalismo  - estabelecendo um prémio extraordinário de 2.000 escudos para “Os Voronoffs da Democracia”, de Fernando de Pamplona. Decidiu também, atendendo ao alto  sentido nacionalista da obra e ao facto do livro 12ter passado para a segunda categoria apenas por uma simples questão de número de páginas - elevar para 5.000 escudos o prémio atribuído à Mensagem de Fernando Pessoa”.10

Em termos contabilísticos, António Ferro tinha efectivamente à sua disposição um saldo  de  10.000 escudos, proveniente da não-atribuição do Prémio de Romance. Dessa       importância,        retirou, primeiro,         2.000              escudos          para        criar           um        prémio extraordinário e extra-regulamentar na categoria de Jornalismo, conforme sugestão do Júri. E  retirou mais 4.000 escudos para aumentar de 1.000 para 5.000 a segunda categoria do Prémio de Poesia: ao menos pecuniariamente, Pessoa ficou equiparado a Vasco Reis e à sua “Romaria”. Não se tratou, assim, de um prémio especial ou extraordinário, mas sim de um aumento do montante regulamentar do Prémio.

Como contou Luís Pedro Moitinho de Almeida, os 5.000 escudos do prémio permitiram a Pessoa viver alguns tempos de desafogo, sem meter vales à caixa, embora pouco lhe tivesse sobrado depois de pagar as suas dívidas. 11

E, se Fernando Pessoa ficou por ventura melindrado com a decisão do júri, vingou-se, com  luva  branca, do seu “rival” e co-premiado Vasco Reis, publicando no Diário de Lisboa, de 4  de Janeiro de 1935, uma crítica generosamente elogiosa (como eram, normalmente, as que fazia aos livros de amigos e conhecidos).

Como em regra acontecia nos seus escritos de crítica literária, o verdadeiro intuito deste texto era denegrir, uma vez mais, duas das suas bêtes-noires:  a Igreja Católica, em geral, e o catolicismo português, em particular, a que chamou “meiguice religiosa, preguiçosamente  incerta do em que realmente crê”. O Padre Vasco Reis, escreve Pessoa,  “a  quem  Deus   fez  ser  franciscano  para  fins  simbólicos  –  pertence portuguêsmente a este catolicismo  amoroso”. Os louvores à obra seguem depois destas linhas assassinas...12

Assim, ao contrário do que afirmaram João Gaspar Simões e todos que continuaram (e continuam) a repetir a sua errada lição, a Mensagem não recebeu um prémio de consolação: foi, na realidade, um dos dois vencedores do Prémio Antero de Quental.

Por essa razão, pouco tempo depois (em data provável de Fevereiro de 1935), Pessoa escreveu,  a  meu  ver  sem  qualquer  ironia,  que  o  seu  livro  fora  “premiado,  em condições especiais e para mim muito honrosas, pelo Secretariado da Propaganda Nacional”.13

Pondo o dedo na ferida, Adolfo Casais Monteiro comentou em carta para Pessoa datada de 10 de Janeiro de 1935: “Não acho absurdo  – acho pelo contrário normal – que um júri ache A Romaria bom, e a Mensagem mau. Mas que o mesmo que acha bom, digno dum 1º. Prémio, o livro de Vasco Reis, ache também bom o seu – isso é que me deixa siderado! E por isso, felicito-o pelos tantos mil escudos, pois que o resto não  lhe  dá  uma  consagração  que  já  tem  há  muito  tempo,  ainda  que  para  um demasiadamente restrito público”.14

Por não ser muito conhecido, tem interesse contar o que posteriormente se passou com duas personagens fulcrais desta história: João Gaspar Simões e o Padre Vasco Reis.

Gaspar Simões, que concorrera ao Prémio Eça de Queiroz com o  seu romance Amores  Infelizes e não fora premiado, envolveu-se nas páginas da revista Fradique numa azeda polémica com Vasco Reis, descrevendo “A Romaria” como “essa obrinha para costureiras e marçanos”, e o seu autor como “um cândido franciscano tão pobre de talento quanto o fundador da sua ordem era pobre de bens deste mundo”.15

Quanto ao Padre Vasco Reis, anos depois secularizou-se, passando a ser o publicista Reis Ventura. Traumatizado durante toda a sua vida por ser publicamente acusado de ter sido o injusto “vencedor” de Fernando Pessoa declarou em 1973 numa entrevista: “Tem corrido um equívoco a esse respeito, que profundamente me molesta. Não há termo de comparação entre a ‘Mensagem’ e o poema, dos meus 19 anos, chamado ‘A Romaria’ (...) Embora  regulamentarmente figurasse ‘A Romaria’ em 1º. lugar, não pode haver dúvidas nem termos de comparação com a obra magnífica desse génio!16 E em 1985, numa carta dirigida ao director de O Jornal e publicada em 19 de Novembro, reiterou que os seus “versinhos de adolescente nem sequer existem” e que quem ganhou o “primeiro prémio” foi Fernando Pessoa.

José Blanco
in Portal Pessoa, 2006 


1 Albano Nogueira [A.N.], “Uma iniciativa cultural”. Presença, Ano VII, Vol. II, nº. 40, Dezembro de 1935, p. 15.
2 Adolfo Casais Monteiro, A POESIA DE FERNANDO PESSOA. 2ª. ed., Org. de José Blanco. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, pp. 228-229.
3 CARTAS DE FERNANDO PESSOA A JOÃO GASPAR SIMÕES. Prefácio, posfácio e notas do destinatário. 2ª. ed., Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, pp. 91 e 93.
4 Adolfo Casais Monteiro, op. cit., p. 244
5 Pessoa tinha já publicado em A Revolução (no nº. 74 de 6 de Junho de 1932) um dos poucos textos do “Livro do Desassossego” que revelou em vida.
6 Esta  versão  de  “Mar  Português”  é  a  que  havia  sido  publicada  em  1922,  no  nº.  4  da Contemporanea.
7 A versão publicada na revista (“Passa um gigante pela vasta terra”) foi substituída por uma variante total incluída na versão final da “Mensagem”.
8 Conhecem-se sete cartas de Pessoa a Mário Beirão, altamente elogiosas do seu talento poético.
9 “No XIV aniversário da morte de Fernando Pessoa. Algumas revelações curiosas do seu primeiro impressor Armando de Figueiredo”. Átomo, nº. 23, Lisboa, 30 de Novembro de 1949.
10  Diário de Lisboa, 31 de Dezembro de 1934, p. 16.
11  Luís Pedro Moitinho de Almeida, “Os vales à caixa de Fernando Pessoa”, in FERNANDO PESSOA. NO CINQUENTENÁRIO DA SUA MORTE. Coimbra: Coimbra Editora, 1985, pp. 43-48.
12 OBRAS  EM  PROSA  DE  FERNANDO  PESSOA.  PÁGINAS  SOBRE  LITERATURA   E ESTÉTICA. Org. de António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1986, pp. 190-191.
13    OBRA POÉTICA DE FERNANDO PESSOA. MENSAGEM E OUTROS POEMAS  AFINS. Org. de António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1986, p. 171.
14  Adolfo Casais Monteiro, op. cit., pp. 224.
15 João   Gaspar   Simões,   “Fernando   Pessoa   e   o   Prémio   Antero   de   Quental”,   in HETEROPSICOGRAFIA DE FERNANDO PESSOA. Porto: Inova, 1973, pp. 381-398.
16 “Em diálogo com Reis Ventura” (entrevista do Major Manuel Barão da Cunha). Jornal do Exército, nº. 159, Março de 1973, pp. 22-23.