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 Mensagem e a sua circunstância

O que nós gostamos de comemorar! Ainda se isso correspondesse, no caso de Pessoa, a um esforço para preservar o seu legado, a edições mais correctas...Mas desde que a sua obra reentrou no domínio público, em 2006, assistimos a uma enxurrada de publicações não fiáveis, feitas, em geral, a partir de textos da Ática (a editora dos primeiros livros de Pessoa) que temos obrigação de saber (os que de Pessoa tratam) que são incorrectos e incompletos.
A última novidade é uma Mensagem “clonada” –assim é designada pelo seu editor – obtida a partir do original dactilografado que Pessoa entregou para ser composto. Objecto curioso, sim senhor, certamente um regalo para fetichistas. Mas seria preciso informar os incautos compradores de que se trata de um texto que Pessoa foi modificando: nas provas tipográficas, com numerosos acrescentos e emendas e, depois, num exemplar do livro impresso, adicionando-lhe uma errata, novas correcções e datas para quase todos os poemas. O actual texto circulante da Mensagem é a etapa final desse percurso.
O menino de pais abastados que agora pelo Natal seja contemplado com essa Mensagem
“clonada” aperceber-se-á, quando comparar o texto do seu importante livro com o dos exemplares pelintras dos seus camaradas de escola, que não é o mesmo: diferem alguns versos, palavras e pontuação, e até uma estrofe inteira: a última do poema “D.Tareja”, por exemplo. Como, provavelmente, não é fetichista, ficará decepcionado e, o que é pior, desorientado. Não resisto a acrescentar que fetichismo, sim, devíamos ter em relação aos pertences de Pessoa que deixámos abalar, em recente leilão, para as mãos de quem deu mais – inclusive a mítica arca que vamos passar pela vergonha de saber, um destes dias, nalgum museu do mundo (na melhor das hipóteses!) Que jeito ela faria nessa Casa Pessoa que os visitantes acham tão despovoada da presença do nosso Poeta!
Quanto aos documentos vendidos nesse leilão e aos outros, muito mais numerosos, prontos para ser vendidos em futuros próximos leilões, não seria só por fetichismo que deveriam ser adquiridos pelas entidades responsáveis mas porque são verdadeiros documentos, indispensáveis para ajudar a entrever a esfacelada arquitectura da obra pessoana.
Esperemos que estas comemorações nos tragam novos conhecimentos. Mas não no género da afirmação recentemente feita de que o deslavado livro Lusitânia, do não menos insípido Mário Beirão – que já ninguém precisa de saber quem é – foi imitado por Pessoa, na Mensagem! Seria sinal de ignorância se não fosse, como é, provocatória extravagância. E falta de respeito pelo grande público que não sabe destas coisas: nós, os que sabemos, senhor doutor, não podemos desfrutar assim quem não sabe.
Dirão os que quiserem dizer (fiquem à vontade!) que lá estou eu a embalar a minha criancinha, a defendê-la dos papões. Mas então agora pasmem que eu vou fazer-vos algumas confidências sobre a  Mensagem, como me pediram, em que parece que estou a acusar Pessoa de ter pactuado com o Estado Novo e o Director do seu Secretariado de Propaganda Nacional, António Ferro. Apertem os cintos.
A verdade, verdadinha, é que se não tivesse havido Estado Novo não teria havido Mensagem porque sem o dito Estado não teria havido Secretariado Nacional de Propaganda e, sem ele, não teria existido um António Ferro, amigo de Pessoa desde os tempos do Orpheu, que inventou um prémio para galardoar esse amigo de que ele conhecia a permanente penúria económica e os inúmeros talentos – entre eles o de compor definitivamente um livro de cariz nacionalista (por isso redigiu nesse sentido o regulamento do prémio).
Dir-me-ão que teria havido Mensagem, embora tivesse ficado, como tudo o mais, por publicar. Não, insisto, não teria ficado o livro que temos porque só em 1934, seguramente pressionado pelo amigo Ferro, Pessoa não só lhe deu a estrutura que tem
como também fez, para isso, os poemas necessários: há nove datados desse ano mas estou convicta de que, entre os não datados, se contarão alguns mais deste ano. Até então o livro era sobretudo constituído pelos poemas da série “Mar Português”, publicada em 1922 na revista Contemporânea  mais os que tinha composto na mesma altura que “Interregno”, em 1928, movido pelo mesmo impulso. Os poemas da Terceira Parte, “O Encoberto”, foram em grande parte feitos de propósito para compor o livro: todos os de 1934, nove, e talvez também os de 1933, três (deve haver entre os não datados outros redigidos com o mesmo fim). A índole dos poemas de “Mar Português” é diferente , eufórica, solar, destinada a celebrar os “navegadores e criadores de impérios” de que Pessoa se orgulhava de descender.  A parte acrescentada é crepuscular: cultua um herói vencido, mas de que se anuncia a ressurreição. Pessoa nela se aplica a fazer desejar o Desejado e a tornar presente esse Quinto Império paradisíaco da nossa redenção.
 Fartei-me de ouvir dizer na minha juventude que Pessoa tinha sido –hélas! – salazarista, bastava ler Interregno, um folheto em defesa da Ditadura militar instaurada a seguir ao golpe de 28 de Maio de 1926. Quando o li com olhos de perceber entendi que esse folheto não provava nada disso e que, aliás, não era escrito pelo Fernando António Nogueira Pessoa mas pela “personagem literária” autora da Mensagem, do poema ao “Presidente-Rei Sidónio Pais” e de outros poemas com o mesmo cariz épico
( cujo sujeito não é um eu, dramático ou lírico, mas um nós). O estilo profético do folheto era aquele com que, em 1912, Pessoa anunciara o “supra-Camões” nas páginas da Águia ou aquele em que, imitando o canto de um cego bandarrista, anunciava, depois da morte de Sidónio, “um dia o Sidónio torna”. Convém não esquecer que o último verso da Mensagem, “É a hora!”, foi escrito em 10-12-1928. Assim como em 1918 acreditara e, sobretudo, queria que acreditassem que Sidónio seria, simbolicamente, um D.Sebastião regressado, o autor épico que  habitava Pessoa quis estremunhar o seu Portugal , adormecido desde Camões, fazê-lo ressuscitar para uma outra “República Nova”, já que a de Sidónio não tinha vingado.  Significativo que em 1928 tenha escrito onze poemas de Mensagem,  ( atendendo aos datados)  número não atingido em mais nenhum outro ano: escreveu nove em 1934, três em 1933, um em 1930, um em 1929, outro em 1922, dois em 1918 e um em 1913.
Recordemos que a maioria dos portugueses recebeu o golpe militar de 28 de Maio de 1926 com alívio e esperança. Inicialmente, Pessoa nada tinha contra Salazar – que se lhe afigurava um homem íntegro e de cultura. E o que Pessoa  verdadeiramente queria era mobilizar os portugueses para uma vida cultural intensa, que equivalesse, em grandeza e projecção,  à das Descobertas.
É possível que o criador de ficções sebastianistas que o habitava tivesse achado profética a coincidência entre o S inicial de Sebastião, de Sidónio e de Salazar...Mas também nunca devemos esquecer as afirmações de Fernando Pessoa segundo as quais o seu sebastianismo era pura “propaganda” (termo seu), pura “estratégia”.  Como para o seu venerado Mestre António Vieira, o que contava era despertar nas gentes o desejo mobilizador do Desejado – o desejo era mais importante que o Desejado...   Ao dar-nos conta do seu afã a escrever uma gramática para aperfeiçoar a nossa língua, que seria a do tal Quinto Império – outro mito que tentava alimentar – concluía que se esse Império não acontecesse sempre ficávamos escrevendo melhor...

Em 1914 Pessoa prefaciara um livro de quadras populares do jovem António Ferrro, Missal de Trovas, em que dizia: “Quem faz quadras populares comunga a alma do povo”. Curiosamente é também em 1934 que Pessoa compõe quase todas as quadras que hoje lhe conhecemos. Teria Ferro, tão empenhado na cultura de índole popular, incentivado o amigo a retomar um projecto dos primeiros tempos: um livro de quadras com o título de Cantares? Mas em Fevereiro de 1935 algo acontece que fará de Pessoa um feroz detractor do Estado Novo e de Salazar: um projecto-lei para proibir as associações secretas , visando sobretudo a Maçonaria, contra o qual Pessoa se insurge violentamente na imprensa e a sessão de distribuição dos prémios do Secretariado de Propaganda Nacional em que Salazar discursa sobre a necessidade de impor aos intelectuais portugueses certas “directrizes”.Nos meses que lhe restaram de vida, nove, Pessoa vai aplicar-se a denunciar o Estado Novo e Salazar , um “seminarista da contabilidade”, “aldeão letrado”, “tiraninho” que nem vinho bebia..., como escreveu, em prosa e em verso. Redigiu uma longa carta ao Presidente da República a pedir o afastamento do Presidente do Conselho por incompetência para o cargo (apontava as razões) e outros textos , até em francês, para denunciar o ditador além-fronteiras. Estou certa de que se Pessoa tivesse durado mais, Salazar teria durado menos,
 Teresa Rita Lopes