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Os contos de fadas na poesia de Fernanda de Castro1

As mulheres – detentoras da cultura oral milenar – são, sem dúvida, por excelência, as contadoras de histórias (G. S. Dias, 1998: 615); histórias de princesas, de reis e rainhas, de madrastas, bruxas malvadas, fadas boazinhas, passadas de geração em geração.
A mulher, encarregada da educação dos filhos e, muito particularmente, das filhas – que com ela passavam quase exclusivamente, até muito recentemente, a infância e a adolescência, contava-lhes histórias que tinha ouvido a sua mãe ou a sua avó contar. Diz-nos Consiglieri
Pedroso, na sua nota introdutória a Contos Populares Portugueses, que «os narradores a quem nos socorremos [eram] na maior parte mulheres, que conservam e transmitem mais pura e mais intacta a tradição» (Consiglieri Pedroso, 1992: 33).
Contando histórias, as mulheres criavam e recriavam mundos fantásticos, edificando vagarosa, mas solidamente todo um mundo maravilhoso que ficaria retido no inconsciente feminino e surgiria depois na sua poesia.
Mas qual é a função destes contos de fadas, e por que razão recorrem nos poemas de mulheres adultas? Nós acreditamos que os contos de fadas devem ser vistos como representações simbólicas de experiências de vida, e pensamos que é com esta função que as poetisas os utilizam, o que nos leva a analisar os poemas à luz das teorias psicanalíticas.2
As referências aos contos de fadas remetem-nos, geralmente, para episódios da infância dos sujeitos líricos. As poetisas servem-se dos contos para descrever um acontecimento iniciático e/ou assustador (os elementos do conto Capuchinho Vermelho desempenham um papel particularmente importante, visto este conto ser uma representação simbólica da entrada na puberdade e da descoberta do sexo). Os contos de fadas cumprem ainda o propósito de ilustrar temáticas do presente adulto da entidade lírica, e que se tornam mais facilmente exprimíveis  através do recurso a figuras universais, imbuídas de um simbolismo explicativo, permitindo a condensação de problemáticas por vezes difíceis de expor claramente devido à sua carga emotiva Fernanda de Castro, no poema «Menina Perdida», descreve uma menina que se perde no bosque, por caminhos duros «de pedras e espinhos» (F. Castro, 1989: 98). As palavras «menina» e «bosque» remetem-nos de imediato para o conto O Capuchinho Vermelho deixando, assim, antever uma experiência iniciática. O Capuchinho Vermelho, uma jovem entre os treze e os quinze anos, externaliza os processos internos da puberdade da criança que se torna mulher. A cor vermelha do capuchinho, assim como a referência às «mãos frias, em sangue», apontam para esse período da primeira menstruação para a qual ela não está ainda preparada: «os gestos errados,/ os passos incertos,/ os gestos cansados.» (1989: 98). O bosque representa o desconhecido, um emaranhado denso de situações novas, onde é fácil perder-se uma menina inocente. A dureza da experiência descrita («pés nús, alma exangue,/ vestidos rasgados,/ mãos frias, em sangue» (1989: 98) evoca um cerimonial iniciático do fim da infância e da entrada na idade adulta, quando a criança tem de enfrentar a realidade – que se apresenta dolorosa e assustadora – da vida. A situação implícita no poema de Fernanda de Castro é parecida àquela do conto original, quando o Capuchinho Vermelho se depara com o Lobo Mau. O faminto animal do conto (cuja acção sobre o sujeito do poema se subentende no seu «vestido rasgado») é, na nossa opinião, não apenas o sedutor, mas também o representante de tendências mentais e psicológicas dentro do próprio sujeito feminino, que este pode não saber como enfrentar e que podem levar a menina a expor-se perigosamente à possibilidade de sedução (B. Bettelheim,
1989: 170, 172, 173).
O sujeito poético - «Menina perdida/ no bosque da vida» - tal como o Capuchinho
Vermelho, não tinha forma de escapar ao inevitável: tomar consciência da sexualidade – que, aliás, se antevê na descrição dos «cabelos molhados», uma imagem sensual que surge com frequência nas cantigas de amigo3, mas cujas conotações eróticas estão presentes já desde os tempos bíblicos.
Atentemos na afirmação bíblica: Ora sucedeu que quando os homens principiaram a aumentar em número na superfície do solo e lhes nasceram filhas, então os filhos do [verdadeiro] Deus começaram a notar as filhas dos homens, que elas eram bem-parecidas; e foram tomar para si esposas, a saber, todas as que escolheram. (Genesis, 6:1,2). Diz-nos
George Ryley Scott, na sequência desta citação bíblica, que, tal como os anjos, também os demónios se sentiam atraídos pelas mulheres humanas, procurando, principalmente, aquelas que acabavam de atingir a puberdade e que tinham cabelos longos. Foi a consciência deste perigo que fez com que S. Paulo aconselhasse a todas as mulheres que cobrissem a cabeça. (George
Ryley Scott, 1966: 89). Daí que o Capuchinho Vermelho, que acaba de atingir a puberdade, cubra o cabelo com o capucho. Mas este é vermelho, símbolo da feminilidade e do sangue menstrual (Miles, 1988: 25), e símbolo de emoções sexuais violentas (B. Bettelheim, 1989:
173), para as quais a menina não está preparada, o que significa que a menina não conseguirá escapar ao Lobo Mau, e que esse será um encontro traumatizante, como vemos no poema: «vestidos rasgados / mãos frias em sangue».
O bosque desempenha um papel arquétipo essencial no imaginário dos contos de fadas.
Crianças e princesas perdem-se nele. Também nos bosques se encontram os seres sobrenaturais e as bruxas. E é para os bosques que se dirigem as virgens em Maio, à noite, para levar a cabo estranhos rituais. O bosque exerce um estranho fascínio, descrito em Novas Cartas Portuguesas deste modo: O bosque com as suas lenas sombras, as suas ternas saliências, o seu verde húmido de água; dunas. As suas dunas de pássaros adormecidos. A sua dormência uterina, a sua voragem quase mostruosa onde [Maria] mergulharia, se envolveria, despida de si por completo. (1974: 116) O bosque é, pois, como um ventre voraz. Mulher e bosque não se diferenciam, de acordo com o princípio ctónico que define a mulher como um ventre que engole e dá à luz (Paglia, 1991: 9, 10); um ventre nunca satisfeito, numa perpétua destruição do velho e criação do novo (Bakhtin, 1984: 240-243). Quando a entidade lírica do poema - ou o
Capuchinho Vermelho, com quem há uma identificação – se perde no bosque temível, onde habita o Lobo Mau, ela está, na realidade, a caminhar dentro de si mesma e a ver-se forçada a encarar algo que a assusta: a sua própria identidade sexual.
A tomada de consciência de possuir um sexo, de estar a tornar-se uma mulher, e de não estar ainda emocionalmente preparada para encarar essa realidade, é mais explícita no poema
«Ah, não», que nos parece referir o mesmo acontecimento do poema «Menina Perdida».
Chegamos a essa conclusão devido à coincidência entre o facto de ser uma menina e estar vestida de branco - «de branco vestida,/ de branco calçada.» no poema «Menina Perdida», e «eu
fui apenas/ a menina de Branco» (F. Castro,1989: 176-181) no poema «Ah, não». A cor branca é símbolo de pureza e virgindade, daí ser a cor escolhida para o traje da Primeira Comunhão, cerimónia descrita no poema «Ah, não» de Fernanda de Castro.
Mais uma vez, a poetisa recorre a um conto de fadas para sugerir a experiência iniciática.
Utiliza a imagética do conto A Bela Adormecida, sendo a entidade lírica comparada à princesa do conto, uma menina na idade de entrada na puberdade (como era o caso do Capuchinho Vermelho - «menina do bosque»). A idade púbere é-nos revelada pelo longo período de sono da princesa (antes de acordar com o beijo do princípe) que simboliza o estado infantil e inconsciente que antecede, nas mulheres, a primeira menstruação – a idade, portanto, na qual a
Bela Adormecida do conto «sai da crisália» e entra na puberdade. O «Príncipe Encantado» é ambíguo, ao mesmo tempo «perverso ou inocente» (1989: 180), com «cabelos de oiro,/ olhos de céu» (1989: 179) como os príncipes dos contos de fadas, mas também com «peçonha [no] olhar» (1989: 179) como o Lobo Mau. Este «Príncipe Encantado» fez a entidade lírica sentir «uma estranha vergonha» e «a ira, o fel/ [duma] dor sem nome» (1989: 179, 180), perante a antevisão de uma sexualidade para a qual não se encontrava ainda preparada. Esta iniciação e passagem para o mundo adulto é explicitada nas palavras da avó (que aparece no final do poema): «É a Vida,/ a Bela Adormecida/ que está quase a acordar...» (1989: 181). A entidade lírica está a acordar de um período de viagem interior e prepara-se para enfrentar vários perigos: deixar a segurança da infância, encarar as suas próprias tendências e ansiedades, conhecer-se a si própria (B. Bettelheim, 1989: 226). É importante notar que é a avó que se aproxima da menina e faz um resumo triste do acontecimento, já que a menstruação era vista como uma maldição que passava de mulher para mulher (B. Bettelheim, 1989: 233). Mas a avó é também a figura da anciã portadora de conhecimentos e contadora de histórias, talvez a única capaz – e com tempo - de compreender a menina.4
No seu poema Historiazinha Triste, Fernanda de Castro constrói uma história a partir do conto Cinderela. Há vários elementos que nos permitem identificar a presença do conto de fadas no poema, nomeadamente: a diferenciação entre a protagonista e as irmãs; o facto de «as irmãs
[terem] vestidos,/ com rendas, fitas e folhos» (F. Castro, 1989: 131) e terem «cabelos compridos» (que, no conto, a Cinderela tem de pentear); a ida das irmãs ao baile, deixando a heroína em casa e esquecendo-a completamente.
No entanto, certos elementos fundamentais deixam-nos perceber que este não é o conto que conhecemos, começando pelo título «Historiazinha Triste», que denuncia que este não é um autêntico conto de fadas, visto que não terá o típico final optimista e feliz. Além disso, a protagonista é feia - «Feiazinha sempre foi,/ sempre teve a pele baça» - , ao contrário das irmãs, que têm belos vestidos, e cabelos compridos «em que lhe ficam os olhos» (enquanto no conto a beleza de Cinderela se opõe à fealdade das duas irmãs). Ao contrário do conto, no poema a heroína poética não vai ao baile, não há qualquer fada-madrinha (como na versão de Perrault) ou árvore mágica (na versão dos irmãos Grimm) que a ajude, ficando só, abandonada no seu mundo triste, sem belos vestidos, apenas «embrulhada num xaile,/ a ver quem passa, à janela».
O príncipe de Cinderela - tal como o príncipe da Bela Adormecida que apareceu no poema anterior – não é, no poema, uma personagem positiva. Ao contrário do príncipe do conto de fadas, que se apaixona pela Cinderela e se casa com ela no final, a personagem masculina do poema aproxima-se da entidade lírica por pena primeiro: «Como quem atira um osso/ A um cão faminto e assustado,/ certo dia, certo moço/ beijou-lhe o rosto magoado» (1989: 132), e por curiosidade depois:«Beijou-lhe depois a boca/ só para ver como era». Os pequenos presentes de afecto fizeram com que a entidade lírica se entregasse completamente a esse homem: «Uma vez abriu-lhe a porta./ (Já lhe abrira o coração…)». Decidiu "abrir-lhe a porta", ou seja, entregar-se sexualmente, ignorando as vozes alheias que lhe chamavam «louca» e «doida». Mas, revelando uma extrema crueldade, esse indivíduo causou-lhe uma terrível humilhação: «não voltou,/ apesar da porta aberta». A "historiazinha triste" termina com a entidade poética ainda «mais feia», «na rua ainda mais deserta».
O conto Cinderela demonstra que, mesmo quando parece ser dura e difícil, a vida se torna bela no final. A Cinderela, suja e vestida de trapos, revela-se lindíssima no desfecho. As suas irmãs, que a trataram sempre como uma criada, são castigadas no fim. A mensagem é optimista e mostra que, apesar das adversidades que a protagonista tem de superar, a conclusão será justa e feliz. Segundo Bruno Bettelheim, Cinderela guia a criança através das suas maiores decepções -desilusão edipiana, ansiedade de castração, má opinião de si própria devido às más opiniões que acredita que os outros têm de si - ao encontro da sua autonomia, conseguindo uma personalidade própria (B. Bettelheim, 1989: 276).
Por sua vez, a Historiazinha Triste de Fernanda de Castro tem uma mensagem profundamente pessimista: a menina feia torna-se ainda mais feia, e o moço que parecia interessado nela abandona-a, sem lhe permitir a entrada na maturidade que os contos de fadas como Capuchinho Vermelho, Bela Adormecida, e Cinderela preconizam. Ao deixá-la com a porta de casa aberta (símbolo do seu corpo oferente), sem entrar, o homem não permite a perda da virgindade da protagonista e, consequentemente, a sua entrada num período de maturidade e de amor-próprio. Este poema mostra que a realidade é mais poderosa que os contos de fadas e diz-nos que a magia não tem o poder de alterar uma realidade triste. Apesar de a protagonista sofrer com a sua fealdade, enquanto as suas irmãs vão aos bailes, é ela quem é castigada na conclusão do poema – porque a realidade é, a maior parte das vezes, assim terrível.
Nos poemas analisados de Fernanda de Castro, as alusões aos contos de fadas tornam ainda mais dura a realidade, porque esta não termina da mesma forma feliz. Ainda que sirvam o propósito de dar forma a fenómenos de maturação dificilmente nomeáveis ou exprimíveis de outro modo, o recurso aos contos de fadas não termina, nos poemas de Fernanda de Castro, com a adaptação à realidade, mas sim como um despertar doloroso da infância para uma idade adulta onde já não é possível continuar a enganar-se e a fazer de conta que tudo está bem ou que tudo vai acabar bem.

Bibliografia
CASTRO, Fernanda de, 70 Anos de Poesia (1919-1989), Fundação Eng. António de
Almeida, Porto, 1989.
BAKHTIN, Mikhail, Rabelais and His World, trad. De Hélène Iswolsky, Indiana
University Press, Bloomington, 1984.
BETTELHEIM, Bruno, The Uses of Enchantment - The Meaning and Importance of
Fairy Tales, Vintage Books, New York, 1989.
CARTER, Angela (ed.), The Virago Book of Fairy Tales, Virago Press, London, 1991.
CORREIA, Natália (selecção, introdução, notas e adaptação), Cantares dos Trovadores
Galego-Portugueses, 2ª ed., Editorial Estampa, Lisboa, 1978.
DIAS, Graça Silva, "Itinerário de uma lenda: a Mulher de Branco", Actas do Quinto
Congresso (org. e coord. T. F. Earle), Oxford-Coimbra, Associação Internacional de
Lusitanistas, 1998, vol. I. p. 615-623.
FRANZ, Marie-Louise von, The Psychological Meaning of Redemption Motifs in Fairy
Tales, Inner City Books, Toronto, 1980.
_______________________, The Interpretation of Fairy Tales, Shambhala, Boston &
London, 1996.
GILLIGAN, Carol, Teoria Psicológica e Desenvolvimento da Mulher, trad. De Natércia
Rocha, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997.
JOAQUIM, Teresa, Menina e Moça - A Construção Social da Feminilidade, Fim de
Século Edições, Lisboa, 1997.
PAGLIA, Camille, Sexual Personae - Art and Decadence from Nefertiti to emily
Dickinson, Vintage Books, New York, 1991.
PEDROSO, Consiglieri, Contos Populares Portugueses, 5ª ed. Ver. E ampl., Veja,
Lisboa, 1992.
SCOTT, George Ryley, Phallic Worship - A History of Sex and Sexual Rites, Senate,
London, 1996.
Notas
1. Declaro que a minha participação neste congresso foi patrocinada pelo Instituto
Camões e FCT, através do Programa Lusitânia.
2. Com incidência particular para a obra The Uses of Enchantment – The Meaning and
Importance of Fairy Tales de Bruno Bettelheim.
3. Como exemplo, podemos citar alguns versos de uma das cantigas de amigo do poeta
galego Pero Meogo (séc. 13): «… Contente com vê-las,/ lavei as madeixas,/ meu amigo.//
Contente com vê-los,/ lavei os cabelos,/ meu amigo.// Logo que os lavei,/ com ouro os atei,/
meu amigo.//… Com ouro os atei,/ e vos esperei,/ meu amigo.» (Natália Correia, 1978: 161-
163). (Os exemplos são inúmeros, mas não cabem no âmbito desta pequena comunicação.)
4. Este tema da avó que, triste, dá a conhecer a realidade à jovem neta, volta a repetir-se
na obra de Fernanda de Castro, em Maria da Lua (1945): «-Que tenho eu avó? Porque tenho
vontade de chorar? -Porque estás muito crescida, Maria da Lua… quase uma senhora… -E é
triste ser crescida, avó? –Muito triste, minha filha… O dragão acorda e nunca mais adormece…
-O dragão, avó? que dragão? –Avida, Maria da Lua…» (ap. T. Joaquim, 1997: 361).

Fátima Fernandes
Universidade de Varsóvia