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Fundação António Quadros
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 Autores 
Bibliografia Passiva
Fátima Fernandes
Francisco de Almeida Dias
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Leopoldo Amado
Manuel Cardoso
Maria Ana Ferro
Maria de Fátima Quadros
Maria Estela Guedes
Rita Ferro
Rodrigo Emílio


Um dia, um ladrão entrou na sua casa de Alporcinhos, no Algarve, e ela, com um simples olhar, fez com que o homem se assustasse e fugisse atrapalhadamente pela janela, novamente de mãos a abanar, rasgando-se todo.
Noutra ocasião, na Escócia, passando uns dias no castelo assombrado de uma amiga, foi solicitada por esta para que afastasse os fantasmas à hora do chá, para poderem apreciá-lo tranquilamente.

- Vá, meninos, não se salientem agora. Deixem-se de fitas!
Parece que resultava.

Outra vez, quando morreu a Natália, a Mafalda e eu fomos visitá-la por pensarmos que se sentiria triste e sozinha, naturalmente, por ter perdido uma amiga. Como sempre, recebeu-nos plácida e optimista. Virou-se para mim e disse:
- Já esteve comigo hoje. Nessa cadeira onde estás sentada.

Apesar de alegre e solar, era mediúnica e acreditava em espíritos. Assinava revistas francesas científicas da especialidade e seguia os casos mais controversos.

Fernando Pessoa, que era visita diária de sua casa, gostou dela – poucos o sabem. Foram as sobrinhas direitas, são pouco mais velhas do que nós, que nos confiaram este segredo. Parece que se encontrou um escrito seu, discreto mas legível, dizendo “De quem eu gosto é de FC”.
Houve um episódio muito estranho com a Florbela, no fim da vida desta. Diz-se que o escritor Américo Durão, que a amou, também amou Fernanda de Castro. No dia em que se suicidou, Florbela andou todo o dia atrás dela. Procurou-a em casa, na pastelaria onde tomava chá, na livraria por onde costumava passar. Depois de o saber, Fernanda de Castro guardou para sempre a angústia de pensar que, se não se tivesse desencontrado com ela, poderia ter evitado a tragédia – não a conhecia bem, mas tinha um magnetismo próprio e o poder de transformar para sempre a vida das pessoas com quem se cruzava – e sabia-o.

Foi obrigada a crescer muito depressa: aos 12 aos parte para a Guiné, onde o pai é capitão do porto de Bolama, então capital. Dois anos depois, a mãe morre de febre amarela, e ela é obrigada a separar-se do pai e a regressar a Portugal já órfã, sozinha num navio, com o irmão mais novo ainda de colo.

Mesmo assim, é desta experiência triste que nascem os primeiros best-sellers para crianças “Mariazinha em África” e “Novas Aventuras de Mariazinha”, que fazem as delícias de uma geração.
A sua síntese está longe de a esgotar.

Uma poetisa casa com um homem público, que escreveu 34 obras, desempenhou funções de embaixatriz e pedagoga, foi mãe, avó e bisavó, exímia anfitriã, primorosa bordadora de trabalhos em seda e de tapetes de Arraiolos, coleccionadora de conchas raras e embevecida por flores – António Patrício lembrava-a como “uma irmã mais nova de Cesário” e Lisboa tem hoje um jardim com o seu nome – amiga e admiradora de Salazar, com muita honra, um bom garfo e uma colher superlativa, que acreditou sempre na bondade das pessoas, observou quatro guerras, viu a sua casa do bairro alto a arder, assim como o seu país e as suas convicções, perdeu duas netas num desastre de automóvel, era conhecida pelo seu bom gosto a vestir e a receber, viveu 94 anos, sobreviveu quarenta ao marido, e foi de uma actividade delirante.

Lembremos algumas das suas realizações, nesta Casa cuja criação tanto acarinhou e que tanto viria a frequentar:
Foi a segunda ou terceira mulher a tirar a carta de condução em Portugal.

Com 19 anos, juntamente com Teresa Leitão de Barros, concorreu ao concurso de originais com a peça “Náufragos” e ganhou o primeiro prémio.

Foi a primeira mulher a ganhar o premio Ricardo Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa.

Foi a sócia nº 1 da Sociedade Portuguesa de Autores.

Publicou 15 livros de poesia, 5 romances, 7 peças de teatro, 7 livros para crianças, 1 livro de cozinha, 1 livro de introdução à botânica e 2 volumes de memórias, num total de 34 obras.

Foi tradutora de Rainer-Maria Rilke, Colette e Katherine Mansfield, entre outros consagrados.

Participou na Semana de Arte Moderna, de São Paulo.

Editou discos, compôs música, foi fundadora e editora da revista “Bem-Viver”, escreveu argumentos para filmes e para bailados e dezenas de letras para canção e fado;

Publicou centenas de crónicas, deu conferências e recitais no continente e nas ilhas, no Brasil, na Suíça, em Paris e em África.
Escreveu o maior poema europeu consagrado a África.

Foi proprietária de um hotel em Cascais e de um restaurante no Algarve, e também decoradora, designadamente dos primeiros 40 apartamentos de Vilamoura.

Organizou o I e II Festivais do Algarve.

Foi fundadora da Associação Nacional dos Parques Infantis – cinco estabelecimentos para crianças necessitadas dos bairros populares de Lisboa – de que se ocupou durante 40 anos, sem nunca auferir vencimento;

Depois de adoecer, e de perder para sempre a mobilidade e a visão, ainda escreveu 4 livros entre os quais os seus dois volumes de memórias e um romance de 400 páginas, ditando a quem se oferecia.

Aos 92 anos, dois anos antes de morrer, ainda enviou à TVI, então dirigida pelo Eng. Roberto Carneiro, duas propostas originais para programas de televisão.

Em setenta e cinco anos de vida literária, a devoção à sua Arte nunca a abandonou; não só nos seus livros de versos, mas também no romance, no teatro, na literatura infantil, nas obras que realizou e na vida que cumpriu, na educação que deu aos filhos e na forma tão singular como viveu a amizade, foi sobretudo Poeta!

Poeta da Vida e da Esperança, poeta de Lisboa, do Algarve e de África, poeta no sentir e na palavra, “Poeta da razão vital”, como dizia seu filho António.

Lá em casa, à noite, nos famosos serões da Calçada dos Caetanos, o Ary, que a tornou mãe adoptiva, fazia-nos rir:

Minha avó era uma pulga
Minha mãe um sardão
Sou neto de um corno velho
Não há pulga sem senão.

Nascemos intempestivos,
Dum coito de ideias tolas,
Estamos vivos, estamos vivos,
Fomos feitos de ceroulas!
Fernanda de Castro ficava sentada, inexpressiva, com aquele olhar de mãe-índia que atemorizava os incautos, e perguntava-lhe, baixinho:
- O menino de calção, ao voltar da Escola, o que tem na mão? Uma bola, um pião, um balão? Ou uma pedra que arrancou do chão?
Eu arrepiava-me toda, claro, pressentindo tudo, como os bichos, mas ele não se calava, exaltado pelo gin:
A palavra será fraca
O sentido será gume,
a imagem será chama,
A matéria será lume!

Não se calava ele, nem se calava ela:
- Olha rapaz, as tuas mãos, tão frágeis e tão nuas, mas tão tuas! Com elas poderás fazer a tua casa, semear o teu pão, regar o teu jardim, saudar o teu irmão! Com elas poderás pintar vitrais, fazer mastros, navios, construir catedrais! Olha, rapaz, as tuas mãos. Olha os teus dedos, tão frágeis mas tão teus, e ousa depois dizer que não há Deus!

E logo o Zé Carlos, a tremer:
- Os que entendem como eu a força que tem um verso, reconhecem o que é seu quando lhes mostro o reverso!

Um dia, num Abril em que muitos choraram para que outros pudessem rir, porque a vida é assim mesmo, os três amigos despediram-se e cada um tomou a sua estrada. A Fernanda, a Natália e o Ary.

Mas Fernanda de Castro, essa, é como se continuasse lá, no mesmo lugar feito de pedra e de esperança, a repetir, teimosa:
- E ousa depois dizer que não há Deus!

Muito obrigada, e um Abraço especial à minha irmã, que tornou este dia possível!
Rita Ferro