Canção Que o Vento Escutou Para Fernanda de Castro. Já nem de mim me condôo ‘trás do anseio sem parede De abrir asas ao meu vôo, De dar água à minha sede.
Os sonhos, um regimento Sem disciplina que os dome. Daí por que eu me alimento, Praticamente, de fome! E vou no vento, no vento Vou, alado às leis de Além, Levando no pensamento O sustento que me sustém!... Rodrigo Emílio Fernanda de Castro — Canto de 50 anos ***** «Tem esta minha «Primeira Colheita» quase vinte anos. ... E de há vint`anos, também, é o primeiro beijo-em-verso-corrido que eu tive o atrevimento de Lhe dar: um longo beijo que voaria ao Seu encontro a bordo d`um aerograma (lembra-se?) e que ficou arquivado para sempre — e para que conste... — nas folhas frementes deste livro (a págs. 218/219/220). É um beijo natural de Moçambique. Por então, ainda Portugal tinha vista para o Índico... e para o futuro, e não tinha, como hoje, o horizonte obturado — e o futuro atrás de Si... Vint`anos depois, toma a liberdade de repôr na face e nas mágicas mãos da Senhora Dona Fernanda a música desse beijo admirador e enternecido, o Rodrigo Emílio (o Rodrigo Exílio, repito).» ***** Por trás do lírico altar a que o Senhor está presente — que paz sem par, de pastor e poente, te faz cantar de amor tão docemente?... Que sol de mocidade a rir em flor, que esplendor adolescente, que vário ardor d`alma, que saudade calma, inocente, ou que dor, que dor fremente, impenitente dor, dor insistente, sempre por sempre em favor da mais humílima gente — te faz cantar de amor com fulgor tão refulgente?... Que vertente de luar sonhador, que palor alvinitente, que torrente d`amor qual fonte fluente no horizonte abrasador, que noite ardente, que levada envolvente no azul castor da madrugada nascente, que manhã radiante, estuante de côr, que silêncio plangente, que rumor de nenúfar à flor, ao sabor de múrmura corrente — te faz cantar de amor, assim, com tal frescôr, assim, tão docemente?... Encontros que teu canto apraza!... Em cada verso, o abraço Que liberta: — Asa. Meiga asa. ASA NO ESPAÇO aberta! (Penas que a voz de alguém exala em vôos D’AQUÉM E D’ALÉM ALMA...) Varinha de condão da tua voz... E nela, a maravilha que se expande, sem desvio ou desvão... — Poeta: funda, para todos nós, A ILHA DA GRANDE SOLIDÃO! E então que por lá nos deixem a sós, Só com o teu livropoema na mão... (Do livro de poemas: «PRIMEIRA COLHEITA (1957-1972)», Editora PAX, de Braga 1973) *****
“Quadra de Prenda d’Anos, Com Um Beijo Dentro Dela”
Envoi tangido por R.E. no nonagésimo aniversário natalício de Fernanda de Castro A nossa Poesia tem, à proa, Um nome de mestre e outro, de mastro: — de Goa a Lisboa, Fernando Pessoa; — aquém do Mansoa, Fernanda de Castro. (Casa de São José, em Parada de Gonta, aos oitavos de Dezembro de 1990, Dia de Nossa Senhora da Restauração.) ***** Sua Casa de São José, em Parada de Gonta; primórdios de Agosto de 1991.
Minha Senhora-Dona-Poesia-Sempre-em-Flor:
Em carta que dirigi, há perto de um ano, ao “nosso” confraternal, infatigável e omnisciente António Quadros (suponho que conhece....), prometi solenemente que, a muito breve trecho, A beijaria por escrito. Só que a minha vida, como saberá (ou talvez não...), “é um vendaval que” (há muito) “se soltou, / é uma onda que se alevantou, / é um átomo a mais que se animou”, conforme diria o Régio do “Cântico Negro” (que vem a ser poema que tudo-minha-gente para aí recita, e geralmente bem, ainda assim benzinho, bastante bem até, mas que só eu, afinal, tenho tido a coragem de interpretar à letra, de seguir à risca, de assumir em pleno e de viver a fundo... E até ao travo...)
Segue-se que o tempo — esse marotão que nos ataca, fugindo, velocíssimo, e que, nessa medida, não perdôa — foi, na forma do costume, correndo à desfilada, sem me dar folga nem descanso para lhe escrever à boa paz... e, a brincar, a brincar, um ano inteirinho de silêncio se perfez, sem que chegássemos à fala um com o outro, por via postal.
O cerne da questão é sempre o mesmo, e o mesmo de sempre: “Não me deixa a poesia ser humano / E a vida não me deixa ser Poeta”: há quase quarent’anos que ando nisto e confesso que não lobrigo jeitos de romper o cerco.
Bem vê a minha boa Amiga: Poeta, sou-o eu desde nascença e tenho-o sido a tempo inteiro; por vocação e por “métier”. Com tanta verdade como o Gedeão, ou com mais verdade ainda do que ele, bem poderei dizer que, para mim, “Todo o tempo é de poesia”, visto que de outra coisa não tem sido ele feito até agora. Sim. “Todo o tempo”, no meu caso, “é”, também, “de poesia. / Desde a névoa da manhã / à névoa do outro dia, // // Desde a quentura do ventre / à frigidez da agonia. // Todo o tempo é de poesia.” Todo ele — e algum que sóbre... Todo — e ao mais não é muito... Todo ele — e mais que fosse!...
Creio não a escandalizar, assim, mìnimamente, se de seguida eu lhe disser que, por essas e por outras, é que a vida — a chamada vidinha — foi sempre, e sempre há-de ser, a minha segunda ocupação, o mais precário dos meus ganchos, o meu biscate de horas extra. (— A Poesia poucas folgas e “abertas”, ou nenhumas, me tem dado para cuidar de semelhante coisa...) O que vem desde logo a querer dizer que também o meu reino, também ele já agora está longe de ser pròpriamente deste mundo...
(... Demais, sabendo a estas horas eu — tão bem ou melhor, até, muito melhor, do que o David Mourão-Ferreira — que “Hão-de chegar-me, a pouco e pouco, os bens do mundo, / Como chega o socorro ao navio naufragado: / Quando o mar estiver calmo, o navio no fundo, / O óleo derramado..”).
Para lá de tudo e tudo isto — que já não é nada pouco, convenhamos... —, e tal como aí acontecia já, acresce que também não falta aqui, à minha volta, gente e mais gente a tentar tirar-me, à viva força, a caneta das mãos, a tentar impedir-me, por todos os meios (sobretudo, os mais sórdidos), de criar beleza. Em vão, porém.
Quanto mais sitiado me vejo de gente assim — e que é gente feita à pressa, com pressa de ser gente; gente d’Abril, portanto, ou que antes de ser d’Abril, já o era; gente que é feia, por dentro, como as coisas feias —, mais eu me refugio na pátria da beleza. Quero eu dizer: na criação poética, na produção artístico-literária.
E depois, minha boa Amiga, há ainda e também e sobretudo este país que continua a não me dar — a não nos dar — sossego, esta Pátria que já por mim vai deixando de ser tida como uma graça que da vida se recebeu, para se converter, cada vez mais, numa espécie de fatalidade que se expia — ou num sudário, pesaroso, que se arrasta — pelas ruas do fel e da amargura...
Tudo isto por junto para, afinal, Lhe dizer que o silêncio estridente a que me tenho remetido — ou melhor: a que tenho sido remetido pelo “gulag” postal, familiar e político em que sou visto e achado — não tem nada a ver com o meu querer, com os meus desejos, com a minha vontade, que essa era, sim, a de ter ido aí beijá-la ao domicílio no dia esplendoroso dos seus 70 anos de criadora inconfrontável — digo: de Grande Maga das nossas Letras contemporâneas — e no dia igualmente prodigioso das suas 90 primaveras natalícias. Mas o beijo ao vivo que este poeta incorrigível, que este monárquico-fascista impenitente, impertinente e pertinaz, não pôde dar-lhe então, a horas próprias, vem trazer-lho agora ele, a horas já um pouco mais impróprias, mas decerto ainda a tempo, — que a todo o tempo é tempo de beijar e ser beijado.
Como a minha Amiga verá, é um beijo rimado o que eu d’aqui lhe expeço (e em 2ª via, já). Escuso de dizer-lhe que é ele portador, junto de Si, do mais vivo e mais festivo dos acenos.
Tenha sempre à conta de devoto da Sua Poesia (em verso e em prosa) e de fanático do Seu Exemplo este muito seu, sempre seu, Rodrigo Emílio (Rodrigo Exílio.., digo). ***** Fernanda de Castro — Rodrigo Emílio: — Breve antologia de permutas poéticas, sob a forma de duelo epistolar — I. Fernanda de Castro (em sua carta-poema de 13/XI/90 — que eu creio ter sido a data, justamente, em que, trinta e mais quatro anos antes, o muito grande e sempre nosso bem-lembrado e benquerido ANTÓNIO FERRO se despediu dos caminhos deste mundo — dos de um mundo português que O não soube merecer... — e arribou, extenuado, ao Reino dos Céus):
“Cai a flor e fica o fruto, Cai o fruto e fica a rama. Das cinco partes do mundo Só ficou a minha cama”. Contestação de Rodrigo Emílio: Não há mágoa que mais dôa que cair em tal regaço... Mas a sua cama vôa como asa no espaço!... Por isso — se me perdoa... — sua cama não desfaço. Que pena, Amiga! Que pena não voar eu como ela...! Tanto qu`ria ir à novena dos seus anos-luz de estrela, tanto qu’ria dar-me a prenda quer de ouvi-la quer de vê-la, e eis que a vida me condena a quedar... de sentinela. (Tome em conta toda a pena que tem — e não é pequena...! — quem, de longe, assim lhe acena, com Dezembro na janela...) II. «(...) não vejo praticamente quase nada por causa de glaucomas e cataratas que me impedem (...) de escrever há quase dez anos».
Fernanda de Castro (em sua carta-poema de 13/XI/90)
Contestação de Rodrigo Emílio:
Para quê esferográfica, ou caneta, não me diz?! Sua lira é geográfica e essa voz borda a matiz. — A raiz da nossa Pátria está na “África Raiz”. Tinta é seiva azul de fábrica e a letra — uma cicatriz. Poeta d`esferográfica lavra, lavra — e nada diz. Não é com esferográfica que se brada: «Ó meu País!...» Terá sido a maré gráfica ou mais o sangue d`Aviz a meter lanças em África, como as d`«África Raiz»? Para quê esferográfica, se sem ela tudo diz?!... A voz alta é a gramática, é ela a força motriz, a grande varinha mágica, ela, o génio e a geratriz dessa lira geográfica que prediz mais do que diz. Quem sonda a matriz da Pátria, pondo-Lhe os pontos nos iis, quem vê que a raiz da Pátria está na «África Raiz», não precisa esferográfica e dispensa aparo ou giz. Não vive de esferográfica mão que impetra: «ó meu País!...»
III. «Aos oitavos de Dezembro» Poema com data, e ditado a eito, ao sabor da pena e ao correr do coração do Rodrigo Emílio, no nonagésimo aniversário natalício de Fernanda de Castro. Muito para Ela, com nove X nove novenas de beijos do R.E.
Em este dia de Nossa Senhora da Restauração, quereria ter ido aí beijar-lhe a mão (aí, à Ilha da Grande Solidão) e passar — por que não?!... — boa parte do dia na companhia da própria Poesia. Acolher-me a sua casa como à concha d`um regaço (que, debaixo dessa asa, tudo é asa no espaço!...) Não perder a coroação da festa dos três trinados e ficar para um serão cheio de versos e fados planando a bordo da voz da Maria João Quadros. (Se António estiver por perto — todo intelecto e talento... — é então mais do que certo que projecto o meu tormento ao tecto do pensamento!)
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... E embaladoras baladas virão de todos os lados saciar-me de quadras ... e Quadros. Casa de São José, em Parada de Gonta, na Noite de Conjurados de 1990. Rogrigo Emílio
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