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«Elegia à Fernanda de Castro» 

Fiquei feliz por saber da existência de uma página na Net sobre Fernanda de Castro. Ela mais que merece.
Fui, provavelmente, o primeiro e o único africano a privar-se intensamente com Fernanda de Castro pouco tempo antes da sua morte, numa altura em que ainda concluía a licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa.

Vale talvez a pena que aqui recorde as circunstâncias em que travei conhecimento com Fernanda de Castro: corria o ano de 1985 e já tinha eu decidido encetar um profundo estudo sobre a imagem do Negro na literatura colonial portuguesa, durante o Estado Novo. Leituras aqui, contactos acolá, facilitadas ou recomendadas pelo meu sempre mestre, Prof. João Medina, permitiram-me que tivesse aguçado a curiosidade de conhecer alguns literatos coloniais ainda vivos na altura.

Assim, esses contactos proporcionavam-se-me, cada vez mais, a oportunidades de privar com literatos coloniais vivos. Da longa lista, efectivamente, figurava a incontornável Fernanda de Castro. Conheci-a, efectivamente, em Lisboa, pela mão de uma das suas melhores amigas, no caso, a portentosa escritora Maria Graça Freire (irmã de Natércia Freire), tal como, de resto, o era também a Fernanda de Castro.

Quando se vislumbrou pois a possibilidade de a entrevistar, já sabia, de antemão, que iria estar na presença de uma nonagenária, acamada, mas uma mulher de fibra e com uma extraordinária força interior. Aprazado o dia e a hora, não sem antes me munir de um sugestivo arranjo floral para a oferecer, lá me pus a caminho das imediações do Bairro Alto, onde então vivia Fernanda de Castro. A ansiedade e as expectativas eram mais que muitas, pelo que já no elevador da Glória, imaginava de mil maneiras a figura da escritora, pois as fotografias que dela vira, até então, datavam já de umas valentes décadas.

Quando cheguei a casa de Fernanda de Castro e conduzido depois à sua presença, tornou-se visível para todos os presentes (cerca de quatro ou cinco pessoas) a minha emoção, mas igualmente a alegria contagiante de Fernanda de Castro que, ao ver-me, cumprimentou-me efusivamente, remexendo-se, inclusivamente, da cama, como se dela quisesse erguer-se para me abraçar.
Ainda me lembro das palavras que seguiram à minha calorosa recepção:

- Sabe, Leopoldo, é com enorme prazer que lhe recebo em minha casa. É pena ter de o fazer acamada, mas espero que, por tanto, não se estranhe e que possamos conversar, pelo menos o suficiente. Sabe, estou ultimamente a escrever um último livro que talvez se intitule “Memórias In Extremis”, aliás, é isso que estava justamente a fazer, antes da sua chegada, ditando as coisas a esta minha sobrinha que vai escrevendo o que a digo, pois já não dá para ser eu própria a escrever.

- Mas quero que aqui se sinta à-vontade e que saiba que a Guiné, pelas recordações que possuo das suas gentes, pelo cheiro da terra e por muito mais, está no meu coração, e que a levarei para a minha última morada, pois lá repousa eternamente a minha mãe, que foi lá enterrada.

Enquanto devolvia com palavras simpáticas a calorosa e afectuosa recepção de que fui alvo, Fernanda de Castro prosseguia:

- Sabe, Leopoldo, a sua presença traz-me, profusamente, recordações da minha rica adolescência, vivida em parte na Guiné, em Bolama, onde meu pai chegou de servir como capitão dos portos. E digo-lho, convictamente, que éramos mais fortes. A nossa mística, sabe, ainda há-de consumar-se, pois acredito piamente no mito de um Portugal imperial e no Quinto Império, algo que seja capaz de nos irmanar na fé, na igualdade, na justiça e na crença de um mundo melhor, sem que para isso tenhamos que olhar para a cor da pele ou para a condição social da pessoa humana. É isso, aliás, que procurei plasmar nos três ou quatro livros que escrevi sobre a Guiné e sobre a África.

- O Leopoldo devia ler o meu grande poema intitulado “África Raiz” de que, aliás, lhe vou oferecer um exemplar autografado. Em boa verdade, Leopoldo, África marcou-me profundamente. Leia “O Veneno do Sol” e o “Aventuras de Mariazinha em África” ou o “Mariazinha em África”, livros meus que foram até hoje dos mais vendidos em Portugal, com tantas edições – talvez duas dezenas ou mais – já não consigo lembrar ao certo quantas.

- Sabe, Leopoldo, os dois últimos livros, “Aventuras de Mariazinha em África” e o “Mariazinha em África” são autobiográficos. Procurei neles narrar a inolvidável experiência que a África, a minha África mística, provocou em Mariazinha, de resto, personagem central a quem literariamente emprestei a minha experiência.

Aliás, outros personagens, como o Vicente, também eram reais. O Vicente acabou por vir para Portugal connosco e aqui veio até veio a ser campeão de atletismo e acabou mesmo por se casar com uma portuguesa, de quem teve dois filhos.

Porém, nas semanas e meses que se seguiram, foram de intermitentes mas intensos contactos entre mim e a Fernanda de Castro, resultando tudo numa grande entrevista que a própria fez questão de caucionar e que, pela sua valia e importância, sobretudo pela sua profundidade, darei um dia desses a conhecer ao grande público.

Efectivamente, sobre Fernanda de Castro e a sua produção literária, sobretudo àquela que mais directamente diz respeito à Guiné, muto escrevi, quer em revistas científicas, quer em jornais, aqui e acolá. Fi-lo pela necessidade de dar a conhecer esta grandiloquente escritora que, um dia ou anos, que sejam, tal como Castro Soromenho o fez em relação a Angola, logrou narrar a Guiné com uma extraordinária mundividência e lucidez literárias que, não obstante ter feito recurso a um discurso oficial ou oficioso e ainda ter abordado uma realidade social matizada pela colonização – curiosamente –, os discursos ontológicos, neles subjacentes, não raras vezes, raiam os limites de um humanismo universal e mesmo universalista.

Talvez não fosse despiciendo, antes pelo contrário, a reedição na/para a Guiné de algumas obras de escritora sobre a Guiné, as quais podiam ser lançadas, quiçá, em Bolama, de resto, ilha onde repousa os restos mortais da mãe escritora e, igualmente, torrão que acolheu Fernanda de Castro e que, afinal, inspirou a componente africana da sua abundante e profícua produção literária.

Seria, sem dúvida - afora as politiquices – uma forma sublime e altruísta de, merecidamente, homenagear alguém que, no Mundo lusófono, quer se queira quer não, escreveu das mais belas páginas literárias sobre a Guiné e sobre a África.


Leopoldo Amado
Agosto de 2010