Meditação
Esta noite foi longa. Longa e vária de segredo e mistério. Noite densa. Invisível, tirânica presença povoou a minha noite solitária. Ah, a insónia com longas mãos de opala e fundos olhos cegos! E o pensamento à solta como o vento - montes e vales, oceanos, pegos!... e a cabeça que estala, a cabeça que estala! Pensar! Como se o humano entendimento para tanto chegasse! Meditar em sofás de ridículas saletas no sábio movimento dos planetas. Filosofar, oh irrisão, enquanto mal ou bem se faz a digestão, sobre a morte, o devir, o mistério do ser e do não ser, e tudo isto a sério, sem sorrir, como se enfim tudo estivesse dito: o Caos, a Criação, Deus e o Infinito. E nem sequer escondes por decoro, triste mortal com asas de besouro, ó depenado arcanjo, que te crês Deus ou pelo menos anjo. Esta noite foi longa. Longa em mim, auroral e lunar, sem princípio nem fim. Meditação inútil sobre as grades da prisão. Meditação sobre a existência, (Existirá ou não?, ou será tudo simples aparência, colectiva ilusão?) Esta noite foi longa. Longa e bela, calma e branca vigília. Um fio de luar entrou pela janela e um doce cheiro a tília. Abstracções metafísicas, problemas? O firmamento era um brocado azul bordado a ouro, fabuloso tesouro de incomparáveis gemas. Tudo era silêncio, quietação. Compreendi então que o essencial não era compreender mas sentir e aceitar a vida e a morte, o bem e o mal, a flor, o luar e a ignorância total. Não mais filosofias de vaidoso esteta e não mais este orgulho: sou poeta. Razão tem-na, talvez, o louco sem razão, tem-na o monge na cela, o cego de nascença, a pedra, o sapo, a boneca de trapo. O mais é tudo igual: poetas, corifeus… Esta noite foi longa. Longa e bela. Encontrei Deus. Fernanda de Castro, in «Exílio», 1952
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