O Saco de Retalhos
Velho saco, onde estavas? No baú das coisas mortas, esquecidas como tu? Guardado na gaveta como as sedas, as cassas, os ramos de violeta, a poeira e as traças? Velho saco, onde estavas? Pendurado numa daquelas portas que um dia se fecharam sobre a infância, o passado, e nunca mais se abriram? Ou no sótão, na trouxa dos farrapos, misturado com os trapos? Velho saco dos tempos esquecidos, nos teus retalhos desbotados reconheço os meus bibes, as chitas e os percais dos meus vestidos. Estes velhos riscados foram saias, corpetes, aventais de criadas que então eram meninas. E estas cambraias, estas sedas finas, usou-as minha mãe. Ó velho saco, feito de retalhos, rever-te fez-me bem. Este linho desfeito, remendado, foi lencol de noivado, e quantas vezes te vi pôr na cama, ó minha ama, esta chita vermelha de ramagens. Meu velho saco, meu livro de imagens, rever-te fez-me bem. Não sei, porém, que travo amargo esta alegria tem, que tristeza me fez, que nostalgia, ver surgir na distância a minha infância, descosida, em farrapos, e reencontrar a minha mocidade remendada e puída numa saca de trapos. Ó saco, ó velho saco de farrapos, já não sei, afinal, se ver-te me fez bem ou me fez mal. Fernanda de Castro, in «70 Anos de Poesia», 1989
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