Primavera
Sinto-me hoje incapaz de fazer mal, daria a um inimigo o pão e o sal. Tenho fome de amor e de bondade, sabem-me bem os gestos de piedade. Quisera repartir o que me sobra e sinto que a minha alma se desdobra, sinto-a mais vasta, mais universal. Era-me hoje impossível fazer mal. Troquei o mau prazer de me vingar pela volúpia subtil de perdoar. Maravilhada eu sinto Deus comigo, olho em torno de mim e não consigo ver a miséria, o sofrimento, a lama, porque trago no olhar aquela chama que doira tudo quanto é feio e sujo. Olho sem ver à minha volta e fujo de tudo o que é sombrio e sem perdão. Abro de par em par o coração e deixo entrar o sol, respiro fundo. Quisera suprimir a dor do mundo, e a doida inquietação que nos consome. Quisera ser o pão que mata a fome, o sonho que adormece a pior mágoa, quisera ser, para o sedento, a água, e para o Poeta o verso genial. Sinto-me hoje incapaz de fazer mal, quisera perdoar, fazer as pazes… …e tudo, meu amor, porque há lilases. Fernanda de Castro, in «D’ Aquém e D’ Além Alma», 1935
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