Primeira Hora
O ano desfolhou-se, dia a dia, como uma flor cortada, um girassol, e dia a dia a sua voz calou-se como velha cansada melodia de velho rouxinol. Ontem, à meia-noite, a minha rua abriu de par em par as portas, as janelas, e deitou fora o lixo, as coisas velhas: cacos, farrapos, latas e panelas. Era a Primeira Hora do ano que chegava. - E eu? - pensei - Que posso deitar fora? Que poderemos todos deitar fora? Ai, Senhor, tanta coisa! Nem cacos, nem farrapos, nem latas velhas nem trapos mas tanta dor, Senhor, mal empregada! Tantos gestos errados, as pequenas traições, os pequenos pecados. As calúnias subtis, as flores venenosas da alma envenenada, e a cicatriz da culpa inconfessada, e as palavras que ferem como gumes de afiadas adagas. Ressentimentos, azedumes que Te fazem sangrar as Cinco Chagas. As larvas dos ciúmes e as cobras rastejantes dos pensamentos impuros. Egoísmos sem fim e os altos muros das torres de marfim. Descrença, indiferença, despeitos recalcados, amassados com ódio, com rancor, e o amargo sabor da solidão. Ah, Senhor, nesta hora de perdão, nesta Primeira Hora, quantas coisas podemos deitar fora! Fernanda de Castro, in «70 anos de Poesia», 1989
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