Biografia

In RETRATO DE UMA FAMÍLIA – Fernanda de Castro, António Ferro, António Quadros, edição Círculo de Leitores e Autoras. Lisboa, Outubro de 1999

Autoras: Mafalda Ferro e Rita Ferro – Ambas filhas de António Quadros e netas de Fernanda de Castro e António Ferro, são co-autoras na organização, concepção e pesquisa documental, fotográfica e literária.

Texto revisto, aumentado e actualizado por Mafalda Ferro e publicado no Sítio da Fundação António Quadros – Cultura e Pensamento, com o acordo das autoras e do Círculo de Leitores.

O espólio consultado que pertencente actualmente à Fundação António Quadros, foi coligido, organizado e classificado por Mafalda Ferro.

Depósito Legal 140 125/99

ISBN 972-42-1910-0


1900-1915
 
Filha de Ana Telles de Castro e Quadros e de João Filipe das Dores Quadros, oficial da marinha de guerra, Maria Fernanda Telles de Castro e Quadros nasce em casa dos pais, em Campo de Ourique, num dia duvidoso: a mãe garante que, ao dar à luz, faltavam cinco minutos para a meia-noite; o pai afirma que não, que já passava dessa hora. Resultado: para tudo o que é oficial, ou seja passaporte, bilhete de identidade, etc., ela nasce a 9 de Dezembro; para a família, para os amigos, para a astrologia e sobretudo para a mãe, que era devota, nasce a 8 de Dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, data em que sempre festejaria os anos. Daí que tenha começado as suas Memórias com estas linhas: No dia em que nasci, os meus pais discutiram por minha causa.

Mas, quem melhor do que ela para saber onde nasceu:

Eu sei onde nasci: naquela rua

de árvores mortas e de velhas casas

onde ensaiei os meus primeiros passos

e onde as minhas pueris, tímidas asa

se transformaram lentamente em braços.
   
Da infância, dos primeiros anos, lembra-se de pouca coisa: o terror de um touro tresmalhado, o estrépito das patas dos cavalos no chão empedrado das cocheiras, em Cacilhas, o cheiro a palha fresca, o medo das trovoadas com a ama a gritar Valei-nos Santa Bárbara! a recordação tenebrosa de uma ingestão de quinino, sem mortalha, o alarido em torno do  regicídio, antes da proclamação da República. 

A casa da bisavó Maria Maurícia, e, mais tarde, também a do seu livro Maria da Lua – cor-de-rosa, pombalina, com janelas de sacada e grades verdes, e vasos de sardinheiras na varanda – marcá-la-ia para sempre. E quem a conheceu pode confirmar: tentou reproduzir este modelo em todas as casas que teve. E escreveu um dia: não sei onde me levará este amor às casas velhas, de preferência em ruínas. 

O quarto de dormir da sua tia Mariquinhas tinha uma janela virada ao Tejo, onde ela se habituou a espreitar o vaivém das fragatas no rio – tudo isto influenciaria os seus versos, o seu amor por Lisboa, as suas letras para fado:

Passam varinas com a giga em arco,

Sobre a airosa cabeça sobranceira,

No chão enlameado da Ribeira,

água negra fez um grande charco…

Lembram a quilha de um barco

as tamancas das peixeiras.

Começou a ler com cinco anos, ajudada pela costureira da casa, e a escrever também precocemente em papel de muitas cores (remonta a estes tempos a sua relutância em escrever em papel branco.). E lembra os primeiros anos assim: Vivia uma espécie de sonho sem princípio nem fim, confundindo tudo: dias, anos, Invernos, Primaveras, alegrias e desgostos. 

Ao contrário da ideia que dela fazemos, já adulta, parece que em pequena era magra, débil, demasiado alta para a idade e com uns cabelos pesados, indomáveis, que faziam o desespero da mãe. Dizia que tinha olhos azuis, verdes ou cinzentos, dependendo do estado de espírito. Gostava de se esconder no sótão e de se perder na rua, e aborrecia-a verificar que não conseguia nunca perder-se completamente: 

E quando a minha ama me aconchegou na cama,

não sei dizer se me doía mais

ter-me perdido ou terem-me encontrado!

Detestava ir ao dentista e costumava dizer, a brincar, que a palavra dentista tinha sobre ela o mesmo efeito que a palavra madeleine para Proust.

Chamava-se Maria Fernanda, mas para a família ficou Mariazinha, nome com que, anos mais tarde, baptizaria um dos livros que viria a tornar-se num verdadeiro clássico infanto-juvenil: Mariazinha em África, livro de referência nostálgica que fez as delícias de uma geração.

Da infância recorda ainda a bondade dos quatro irmãos (Francisco, Manuela, João, Afonso), a beleza da irmã, a quem chamavam princesa (pele branca e rosada, cabelos loiros e anelados), os jardins da tia Emiliana, as cautelas brancas do tio António, a marmelada da Guilhermina e a bolsa verde de veludo da avó sempre repleta de libras de oiro que eram, afinal, tostões novos e reluzentes. E a pior recordação dessa época, confessa nos últimos anos, foi a explicação desastrada e desastrosa em que alguém me quis elucidar sobre certas realidades da vida para que ainda não estava preparada. 

Em 1909, o pai é capitão do porto de Portimão – onde Fernanda de Castro estuda, numa escola oficial; mais tarde é transferido para a Figueira da Foz, onde aprende a nadar e conclui a quarta classe com distinção numa escola que não lhe deixa recordações: Lembro-me que ficava dentro de um pequeno jardim onde havia mais pedras de que plantas, mais urtigas que flores.

Mas recordações suas, temos muitas, até do Livro de Português da nossa infância:

Lisboa, Santarém, Porto, Leiria…

(eu sabia de cor toda a Corografia).

O pai regressa a Lisboa e a família instala-se num rés-do-chão alugado na Rua de São Bernardo, mesmo defronte do Jardim da Estrela. Em 1913, o pai parte para a Guiné, desta vez como Capitão de Porto e chefe dos Serviços Marítimos de Bolama, então capital. Fernanda de Castro, com 12 anos cheios de força e alegria, vai ter com ele juntamente com a mãe, de saúde já precária, e o irmão mais novo. A viagem de ida não a impressionou: Foi uma viagem de oito ou nove dias, tranquila e monótona, sem história nem histórias. Em Bolama, que considerou uma pequena vila provinciana que poderia parecer alentejana, não fossem os trajes garridos e os panos coloridos das mulheres, instalam-se numa pequena rua perpendicular ao Cais, no edifício da capitania do Porto, numa casa toda ela rodeada por uma larga varanda de madeira, que era a verdadeira sala de estar.  É aí, nesse mesmo ano, que os pais saem um dia para jantar fora e que ela não volta a ver a mãe: Ajeitou e sacudiu as pregas do mosquiteiro para que nenhum mosquito me incomodasse, e foi essa a última vez que a vi. 

Ana Telles de Castro e Quadros morre nessa noite de febre-amarela, o que obriga Maria Fernanda a regressar a Lisboa acompanhando o irmão mais novo, que chorava copiosamente. Antes de embarcar, uma amiga da família agarra-lhe no braço: Prometes ter coragem? Crescer de repente? Tomar conta do teu irmão como se fosses de facto uma mulher? Setenta anos depois, Fernanda de Castro recordaria esse dia tão nefasto: Ainda sinto na garganta o aperto, a angústia que me invadiu no momento em que me arrancaram dos braços do meu pai e em que, com o Afonso ao colo, entrei no barco que nos levou a Bissau.


1915 - 1921
Em 3 anos, entre 1915 e 1918, completa o Curso do Liceu, com a intenção de se formar em Matemática – é no liceu Maria Pia, no Largo do Carmo, onde faz o seu exame do 3º ano, que trava conhecimento com Teresa Leitão de Barros, de quem se tornaria amiga íntima para toda a vida. Será um pouco mais tarde, já no 7º ano, que recebe a primeira declaração de amor de um jovem explicador que posteriormente reencontrará na Guiné e a pedirá em casamento. O segundo candidato viria a ser Américo Durão, que lhe envia um bilhete sucinto, de três palavras: Quer casar comigo? Ao que ela responde, atónita: A que propósito? 

É ainda neste ano que cai à cama por quatro meses, com uma primo – infecção: Não guardo más recordações desse período - conta, nas suas Memórias. - Todos os dias, excepto aos domingos, vinham duas colegas visitar-me, acompanhadas por uma das professoras, chegando sempre com braçadas de glicínias e de rosas vermelhas, cujo perfume ainda hoje me faz pensar com saudade na ternura que essa dádiva representava.

Mas nem só  as suas recordações são feitas de flores, também os seus poemas respiram como jardins:

Arco-íris de perfumes, os jardins,

Tomam em cada noite, expressões várias:

Sentimental, o branco dos jasmins;

Sensual, o carmesim das cinerárias.

Acaba por terminar o curso geral dos liceus frequentando como ouvinte o 7º  ano do liceu misto Passos Manuel.

A partir de 1920, começa a frequentar os salões literários

de Lisboa, entre os quais os de Carlota Serpa Pinto, Bé Ameal e Veva de Lima (Genoveva de Lima Mayer Ulrich, filha de Carlos Mayer, um dos Vencidos da Vida, e mãe de Maria Ulrich, de quem se tornará grande amiga), este último o mais concorrido, o mais disputado e o mais original de todos; Fernanda de Castro recorda-o, saudosa: Veva de Lima sabia juntar como ninguém as pessoas mais variadas, representantes da mais alta e a mais velha nobreza, da alta burguesia, e, ao mesmo tempo, gente nova, ainda sem nome e sem obra realizada, mas com um denominador comum – o talento, ou, pelo menos, a inteligência. Receber um convite para uma das suas reuniões era sempre um prazer. O cenário era ao mesmo tempo sumptuoso e exótico. Logo à entrada, os convidados eram recebidos por dois negros imponentes, vestidos – meu Deus, vestidos como? - como por exemplo dois guardiões de qualquer dos contos das «Mil e Uma Noites». Os degraus das duas escadarias, uma à direita outra à esquerda do vestíbulo, eram atapetados com peles de leopardo e iluminados por essas lâmpadas em forma de tulipa, dos princípios do século…

E para além dos serões musicais em casa de Elisa de Sousa Pedroso, onde apareciam todos os grandes artistas que vinham cantar ao São Carlos ou dar concertos no São Luís e no Tivoli, Fernanda de Castro passava os seus domingos em casa da poetisa Branca de Gonta Colaço, filha do poeta e antigo ministro Tomás Ribeiro, cujas sessões de escrita, mais impostas do que voluntárias,  nunca viria a esquecer: Sentava-me à sua secretária e obrigava-me, não à força, mas quase, a copiar páginas inteiras do Padre António Veira, de Herculano, de Castilho, do Conde de Sabugosa, dizendo para me consolar: «Escreve, minha filha, escreve e aprende, que um dia me agradecerás…»

Foi nesta época que conheceu e se tornou amiga da escritora Virgínia Vitorino, com quem, anos mais tarde, juntamente com Teresa Leitão de Barros, colaboraria num «consultório de grafologia» para a revista ABC. Ri-se, ao lembrar a aventura: Recebíamos cento e cinquenta cartas por semana. A secção terminou por excesso de êxito.  

Nas férias, volta à Guiné para visitar o pai, que entretanto casara segunda vez com uma mulher apenas 10 anos mais velha do que ela e que lhe daria três meios-irmãos: Alberto, Maria Luísa e José Manuel. Terminada a comissão, o pai volta para Lisboa com a sua madrasta Rosa e o cozinheiro africano de nome Vicente – o autêntico Vicente em carne e osso, do meu livro «Mariazinha em África»! 

Um ano depois, confirmada a sua vocação para Letras, a escritora desiste de frequentar a Escola Politécnica e publica, instigada por Branca de Gonta Colaço e pela sua amiga Teresa Leitão de Barros, o seu primeiro livro, Ante-manhã, com versos escritos entre os quinze e os dezoito anos, assinando Maria Fernanda de Castro e Quadros.  O pai costumava dizer-lhe: não é a fazer versos de pé quebrado nem a escrever historietas de amor que te vais preparar para a vida mas, a sua vocação derrota todas as inseguranças. A edição deste livro, com capa de Cottinelli Telmo, constitui o presente de anos da família e de alguns amigos. E sobre esta primeira experiência literária recorda, ainda espantada: Com profundo espanto verifico, por cartas e jornais que conservo, que o meu livrinho não foi mal recebido e que, Deus sabe porquê, me deu um certo nome no pequeno mundo das letras de então, isto é, entre a Brasileira do Chiado e a Portugália, na Rua do Carmo.

A pintora Tarsila do Amaral, de quem se tornará amiga mais tarde, comenta Ante-manhã em «O Jornal» do Rio de Janeiro: No turbilhão da arte revolucionária, onde, à sombra de talentos criadores se abrigam artistas amorfos que o tempo se encarregará de seleccionar, Fernanda de Castro conservou-se sempre a mesma Fernanda de Castro. Foi sempre a poetisa dos versos rimados. Os versos lhe brotam da alma em cascatas rimadas, sem entrechoques de ritmos desencontrados e agressivos.

Um ano depois, com a determinação e o arrojo que sempre a caracterizaram, concorre ao concurso de originais do Teatro Nacional com a peça Náufragos, escrita em colaboração com Teresa Leitão de Barros, e ganha o 1º Prémio. É pouco tempo depois deste êxito que, assinando Maria Fernanda e a convite do seu antigo professor de português, o Dr. Joaquim Manso, director do Diário de Lisboa, colabora neste jornal desde o seu primeiro número, publicado a 7 de Abril de 1921. António Ferro, seu futuro marido, é igualmente colaborador deste número princeps.

É depois desta colaboração que ganha segurança e começa a assinar Fernanda de Castro, publicando o seu segundo livro de poesias, Danças de Roda, também com capa de Cottinelli Telmo. Sobre este, escreveria o Conde de Sabugosa: É que, na sua poesia, há frescura, mocidade, viveza e respira-se em toda ela uma atmosfera saudável, que deixa a gente bem disposta… 

Conhece o primeiro namorado na Liga Naval de Lisboa – um guarda-marinha loiro, de olhos azuis, bela aparência e muito simpático; mas o que começou por ser um namoro de janela acabou num noivado desinteressante. E no dia em que percebe que o noivo considera fantasias e passatempos sem importância as suas crónicas, os seus versos e os seus livros, rompe aquele noivado prosaico e maquiavélico com duas linhas amáveis.

É nesta época, entre os quinze e os dezoito anos, que toma o primeiro contacto com a política e se aflige com os seus excessos e absurdos: Logo a seguir à proclamação da República havia revoluções quase todas as semanas, na Rotunda, em Campolide, no Bairro Alto. Apanhei com tudo. Eu tinha um namorico com um oficial da Marinha e houve um dia em que a revolução era a Marinha contra o Exército, entrincheirado no meu bairro. Era tão inconsciente que fui sozinha para Campolide ver a Revolução. E conta ainda, nas suas Memórias: Os quintais da minha casa e da dos Leitão de Barros davam para umas terras em que só havia pedras e lixo, e foi por aí que entraram, durante uma das tais revoluções, um soldado e um marujo que pediram refúgio. Eram inimigos no combate mas não sabiam porquê. Tinham ordens e eram obrigados a cumpri-las, mas durante aqueles dois dias de tréguas que estiveram em nossas casas passaram o tempo a jogar às cartas, jurando-se, um ao outro, amizade eterna. 

Quis o destino que fosse publicamente apresentada a António Ferro na referida Liga Naval, onde conhecera o primeiro namorado, quando este faz a sua famosa conferência Colette, Willy, Colette. Numa das suas Cartas Para Além do Tempo, dirigida ao marido, Fernanda de Castro «fala-lhe» deste encontro: Gostei. Gostei até muito da conferência, mas gostei menos da maneira um pouco arrogante como me perguntaste quando nos apresentaram: «Então? Gostou?» Irritou-me essa pergunta que era mais uma afirmação do que uma pergunta e respondi então, com uma falsa, mas bem imitada indiferença: «Da conferência? Não desgostei. Adoro a Colette!» (…) Mas confessaste-me teres jurado a ti mesmo que terias a tua desforra e que seria com as tuas próprias armas, a tal petulância e esse «convencimento», que acabarias por conseguir a vitória. Mas aqui, meu Amigo, enganaste-te redondamente: - o que me aconteceu não foi nada disso; foi, entre muitas outras, uma carta tão liricamente lírica que tinha forçosamente de ser piegas (…) Sonharas comigo e concluías: «Era tudo tão branco, tão perfumado, era tão gracioso o voo das borboletas que o sonho me pareceu de bom agoiro.» 

A propósito deste namoro, Fernanda de Castro ri-se ainda ao recordar António Ferro encostado a um candeeiro, mesmo defronte da sua janela, «maldizendo»  seu pai por este não o deixar subir enquanto não fosse «pedida».


1922-1927
Vive até  casar numa casa simples, mas que, segundo a jornalista que a entrevista à data para a «Ilustração Portuguesa», é florida e álacre como um jardim de Espanha, com sardinheiras vermelhas, um papel de ramagens claras, damascos e livros, muitos livros, livros abertos, ferramentas ainda quentes do trabalho. E quando esta lhe coloca a proverbial pergunta sobre os seus escritores predilectos, responde, axiomática: António Ferro, sem favor. Quem é que você vê aí que possa fazer-lhe concorrência?  

Casa por procuração na Igreja de Santa Isabel com António Ferro que, no Brasil, apresentava a sua peça Mar Alto e realizava uma série de conferências. A decisão é arrojada para a época, mas Fernanda de Castro segue a sua estrela, confiante. Chegando ao Rio de Janeiro nos finais de Agosto, vence a timidez para acompanhar o marido nas suas conferências, realizando recitais de poesia portuguesa no Rio, S. Paulo, Santos, Campinas, Ribeirão Preto, Baía, Recife e Belo Horizonte. O jovem casal convive muito com os modernistas brasileiros e participa na famosa Semana de Arte Moderna, de São Paulo. No Brasil, Fernanda de Castro é retratada simultaneamente pelas duas maiores pintoras dessa geração: Tarsila do Amaral, que se torna sua amiga, e Anita Malfatti.

Regressa a Lisboa em Maio, com o marido, e, a 14 de Julho de 1923, dia do aniversário da Tomada da Bastilha, nasce-lhe o primeiro filho – António – António Gabriel, por homenagem a D’Annunzio –, o futuro escritor António Quadros. Nas suas Memórias, a poetisa quer e não quer lembrar-se do que sofreu ao dar à luz: Durante vinte e seis horas julguei, a todos os instantes, que ia morrer. De repente, quando julguei que já não havia salvação, o meu filho nasceu num grito que, se ainda era de dor, era já também de alegria, de imensa alegria! Fechei os olhos e todos julgaram que eu tinha perdido os sentidos. Mas não: o que eu queria era ignorar, como consegui, toda a parte menos bela daqueles momentos em que só se deveria ver astros, pássaros, flores! E acrescenta, emocionada: Sempre disse e hei-de dizê-lo até ao fim: a hora suprema da vida de uma mulher normal é aquela em que lhe nasce um filho. Tudo o mais é literatura barata ou sofisticada. Esta é que é a verdade, a grande, a sublime revelação da vida, no seu mais profundo sentido cósmico! Mas já um ano antes, em 1922, ela antecipara, no seu lancinante Poema da Maternidade, a redentora contradição que viria efectivamente a experimentar:

Pode lá  ser! Não quero! Não consinto!

Tudo em mim se revolta, a carne, o instinto,

            a minha mocidade, o meu amor,

            a minha vida em flor!

            É mentira! É mentira!

Se o meu filho respira,

se o meu corpo consente,

a minha alma não quer!   

  (…)

Filho!

Pode já  ser, Jesus! Eu não mereço tanto!

Filho da minha dor, eu já não choro, canto!

Fernanda de Castro virá a revelar-se uma mãe extremosa, com um amor inexcedível pelos filhos e por todas as crianças em geral. 

Três meses depois, o casal instala-se na casa onde a poetisa reside até morrer: um 1º andar da então Calçada dos Caetanos, hoje Rua João Pereira da Rosa, ao Bairro Alto, sucedendo à viúva de Oliveira Martins, recentemente falecida. Se este 1º andar tinha sido a residência do grande historiador, nas águas-furtadas vivera também Ramalho Ortigão. Mas não seriam estes os únicos inquilinos ilustres daquele edifício histórico: no 2º andar da casa instalar-se-iam alguns anos depois os pintores Fred Kradolfer e Ofélia e Bernardo Marques, que viriam ambos a suicidar-se, bem como o poeta José Gomes Ferreira e a sua primeira mulher, Ingrid.

E Fernanda de Castro ainda adiciona uma curiosidade: No andar por cima do meu, isto é, no 2º andar, viviam as senhoras Campos, já muito idosas, que tinham sido aias dos príncipes D. Luís Filipe e D. Manuel…

O prédio ficou conhecido como o Soviete dos Caetanos, o mesmo prédio que, nos anos cinquenta, viria a sofrer um pavoroso incêndio que devorou parte do espólio da poetisa, apanhando-a desprevenida no Algarve.

E sobre essa época recorda, nostálgica: Não tínhamos cheta, ninguém tinha um tostão. Fazia-se café e chá, o Leitão de Barros trazia coisas de casa, eu comprava seis bolos-de-arroz que cortava em fatias e servia em pratas da Índia. Era deslumbrante! As reuniões literárias, as leituras de peças e de poemas eram um encanto. Como fazem falta hoje! Foi uma época muito viva, muito entusiástica. Ninguém pensava em dinheiro, havia então essa superioridade de espírito, os valores dominantes eram os da honradez, os de não nos aproveitarmos das coisas públicas. Quando o meu marido morreu, fiquei sem nada, nada! Nessa altura não havia pensões nem reformas…

Em 1924, publica o livro de poemas Cidade em Flor, com capa de Bernardo Marques, que António Patrício comentaria assim: Tem-se a ouvi-la a sensação deliciosa duma irmã mais nova de Cesário, tocada de humor e graça… 

A peça  Náufragos, quatro anos antes premiada, estreia-se no Teatro Nacional. O cenário é de Leitão de Barros, tendo Ilda Stichini e Eduardo Brazão nos principais papéis. E Fernanda de Castro lembra, ainda aflita: Perguntaram-me se eu queria a Ilda ou a Esther Leão. Impulsivamente, sem reflectir um minuto, disse muito depressa «Prefiro a Ilda». Soube depois que a Esther Leão tinha ficado muito sentida…

Acompanhando o seu marido e a convite do escritor modernista brasileiro Oswaldo de Andrade e sua mulher, viajam até Paris, onde os dois casais convivem com Picabia, Paul Poiret, Honegger, Eric Satie, entre outros. Fernanda de Castro vive numa roda-viva social em que revela presença e à vontade, mas não propriamente vocação: Éramos desgraçadamente colunáveis. Havia cocktails a mais e eu só bebia água das pedras e sumo de tomate.

Em 1925, quando o seu talento é já reconhecido e a sua vocação irreversível, publica o seu segundo livro de poemas, intitulado Varinha de Condão, em colaboração com Teresa Leitão de Barros. Nesta 1ª edição, a capa é de Maria Roque Gameiro e as ilustrações são de Elsa Althouse, Cottinelli Telmo, Rocha Vieira, Raquel e Maria Roque Gameiro, Martins Barata e Stuart Carvalhais. A obra terá várias edições, uma das quais no Brasil. 

É neste mesmo ano que o marido, António Ferro, lança a iniciativa do Teatro Novo. Fernanda de Castro traduz as peças que ali se representam: Knock ou a Vitória da Medicina, de Jules Romains, e Uma Verdade Para Cada Um, de Luigi Pirandello.

1926 é  um ano dedicado à literatura infantil.  Fernanda de Castro publica uma peça de teatro para crianças, O Tesouro da Casa Amarela, em edição do Diário de Notícias, e Mariazinha em África, romance juvenil já referido, evocador da sua experiência africana, recebido com enorme êxito pelo público, de que sairiam sucessivamente 11 edições. A primeira tem ilustrações de Sarah Afonso, e, noutras edições, teria ilustrações de Ofélia Marques e de Inês Guerreiro. O livro fez uma época.

Também acompanhando o marido, mas desta vez a convite de Homem Cristo Filho, a escritora volta a Paris, tendo então conhecido, nas tertúlias de Chez Fast, as romancistas Rachilde e Lucie Delarue-Mardus, o romancista Pierre Benoit, o dramaturgo Jean Sarment, a actriz Susanne Després, etc.

Em 1927, tendo também publicado As Novas Aventuras de Mariazinha, continuação de Mariazinha em África, nasce-lhe o segundo filho, Fernando Manuel, a quem os meus sogros aproveitaram para baptizar com todos os apelidos possíveis - Fernando Manuel Telles de Castro e Quadros Tavares Ferro. António Ferro, ausente no estrangeiro, não esteve presente na altura do nascimento, pois a mulher, na intenção de o esperar no cais já com o filho ao colo, mente-lhe nas datas para lhe fazer uma surpresa. 


1928-1935
Publica Jardim, livro de poemas também com capa de Bernardo Marques, que a crítica recebe com entusiasmo. Encantado, António Corrêa de Oliveira escreve-lhe, num impulso: Os seus versos ensinaram-me a amar, a cantar, a rezar a vida…

Poucos meses depois, edita a sua primeira obra de ficção para adultos, O Veneno do Sol, romance de ambiente africano que, nos anos noventa, viria a ser adaptado para telenovela pelo actor Tozé Martinho e pelo neto mais velho da escritora, António Roquette Ferro.

Em 1930, sobe à cena no Teatro da Trindade a sua peça Nova Escola de Maridos, com Brunilde Júdice e José Gamboa nos principais papéis.

É este o ano nefasto para Florbela Espanca. Fernanda de Castro estranha a insistência da poetisa em querer encontrar-se consigo na véspera do suicídio, e só ao saber da notícia alvitra uma explicação para tanta ansiedade: o interesse que Américo Durão manifestara por si, o qual, embora nunca correspondido, terá inquietado Florbela.

Em 1931, como réplica de uma obra social que conhecera em Paris e lhe desagradara em muitos aspectos, Fernanda de Castro prepara, quase sem recursos, a organização de um grande empreendimento social: o dos Parques Infantis, destinados às crianças necessitadas dos bairros populares de Lisboa. É rapidamente legalizada a Associação Nacional dos Parques Infantis, aos quais, ajudada pela sua grande amiga e colaboradora Inês Guerreiro, imprime um estilo bem diferente de outras obras do género: casas bem decoradas, alegres e espaçosas, bibes de todas as cores, ensino da pintura, da música e de ballet, alimentação e escola primária, enfermeira permanente, visita semanal de um médico, pesagem diária, jogos e iniciativas várias.

O banqueiro Ricardo Espírito Santo e Luís Pastor de Macedo, então vice-presidente da Câmara Municipal de Lisboa, são, respectivamente, o mecenas e o padrinho deste empreendimento; para o primeiro parque, simpaticamente, Pastor de Macedo faculta-lhe instalações perto de casa, para que não gaste dinheiro em transportes. E, nesta obra, o seu amor pela Natureza é mais do que nunca lembrado: Com árvores e flores, não se esqueça, não? Ficam bem a toda a gente, mas sobretudo às crianças!

Em 1932 é  inaugurado o primeiro Parque, o de S. Pedro de Alcântara, situado no tabuleiro inferior do Miradouro com o mesmo nome: uma colorida casa pré-fabricada, com decoração interior de Sarah Afonso, por vezes ajudada no seu trabalho por Almada Negreiros que então namorava e com quem viria, como se sabe, a casar. Começando com 20 crianças, este Parque Infantil tinha uma frequência de 100 rapazes e raparigas até aos 10 anos.

É nesta época que conhece e recebe em sua casa, como visita regular, Fernando Pessoa, cuja irmã sugere ter «gostado» de Fernanda de Castro. Sobre esta suspeição, viria a conversar com Fernando Dacosta: Não sei, nunca me disse nada, era muito tímido. Falava comigo com um ar excessivamente cerimonioso apesar de ser mais velho do que eu. Nunca me fez, porém, qualquer confissão. Dizia que eu era muito castiça. E lembra Pessoa assim: … era um neurasténico, dava-se com poucas pessoas, poucos o conheciam. Nós percebemos no entanto que se tratava de um homem de invulgar talento.

Em 1933, tendo António Ferro organizado em Lisboa o IV Congresso de Crítica Dramática e Musical, Fernanda de Castro colabora com o marido e acompanha os congressistas, entre os quais Luigi Pirandello, Émile Vuillermoz, Robert Kemp, etc., a vários pontos do país.

Em 1934, é  inaugurado o segundo Parque Infantil, o do Campo Grande, no lugar onde se situava antigamente o famoso Chalet das Canas. Sucessivamente, seriam inaugurados os Parques Infantis da Tapada das Necessidades, onde organiza mercados regionais para angariação de fundos, o de Santa Catarina e finalmente A Colmeia, concebido este como uma escola de artes e ofícios, instalada nas antigas Cavalariças do Infante, em Alcântara.

Nestas escolas, ensinava-se costura e alta costura, bordados e malhas à mão e à máquina, culinária, sapataria, marcenaria, etc. Os Parques Infantis, onde também promovia Jogos Florais de consagração à poesia, chegaram a ser frequentados por 750 crianças de ambos os sexos. 

Estão ainda activos os de Santa Catarina e Necessidades.

Em 1935 publica um livro de poesia: Daquém e Dalém Alma.

A convite de Leitão de Barros, escreve os versos para o tema do filme As Pupilas do Senhor Reitor, baseado no conhecido romance de Júlio Diniz, e cantados por Maria Paula e Leonor d’Eça. O filme foi estreado no Tivoli, a 7 de Abril. 

Neste mesmo ano viaja até à Suíça, onde colabora com o marido na organização da Quinzena de Arte Popular Portuguesa, em Genebra, realizando conferências.


1936-1949
Fernanda de Castro ajuda o marido na recolha de elementos para o Pavilhão de Portugal na Exposição Internacional de Paris, a realizar no ano seguinte. Em 1937, é inaugurada a referida Exposição. Fernanda de Castro acompanha António Ferro, ajudando-o em várias iniciativas e com ele realizando, no Teatro dos Campos Elíseos, uma conferência dialogada, em francês, intitulada Rapsódia Portuguesa, na presença do tout Paris.

Na Casa de Portugal, colabora também activamente numa série de conferências que dão brado, pois têm a participação de grandes figuras da literatura europeia, entre as quais dois laureados com o Prémio Nobel. As Conferências são proferidas por Robert Kemp, apresentado por Pirandello; por Fernand Gregh, apresentado por Maurice Maeterlink; por Luc Durtain, apresentando por Paul Valéry;  e ainda por Émile Villermoz, apresentado por Colette; no final desta última, travou-se um animado diálogo público entre Colette e António Ferro.

Ainda nesse ano, traduz o Divertimento Filológico de um grande escritor francês, Valery Larbaud, muito amigo do casal, texto de comentário a vocábulos de diversas línguas, em especial a portuguesa.

Em 1939 inauguram-se os Pavilhões de Portugal nas Exposições de Nova Iorque e de S. Francisco. Fernanda de Castro acompanha o marido, que é organizador e Comissário dos respectivos pavilhões portugueses.

Simultaneamente, prepara um projecto em colaboração com a pintora Inês Guerreiro, que não chega a publicar: a realização de um «álbum de bebé» ilustrado, imaginado por si, cuja maquete a família conserva. 

Em 1940, escreve o argumento do bailado A Lenda das Amendoeiras, estreado em Novembro no Teatro da Trindade pelo Grupo de Bailados Portugueses Verde Gaio, com música de Jorge Croner de Vasconcelos, coreografia de Francis Graça, cenário e figurinos de Maria Keil do Amaral.

Colabora também em algumas áreas da grande Exposição do Mundo Português, de que seu marido é Secretário-Geral. Em 1941, publica um livro de poesia: 39 Poemas, este em edição da revista Ocidente. Maravilhado, António Botto consagra-a numa carta que lhe endereça: Lindíssimos versos – versos d’alma - versos d’arte, um encanto permanente. 

Traduz para português a peça O Padre Setúbal, de Maurice Maeterlinck, neste mesmo ano apresentada no Teatro Nacional D. Maria II por Amélia Rey Colaço e Robles Monteiro.

A 19 de Janeiro de 1943, em tradução romena, revista por Mircea Eliade, e por iniciativa deste seu amigo, então colocado na Legação da Roménia em Lisboa, a sua peça A Pedra do Lago, com o título Destin, é representada no Teatro Nacional de Bucareste. A peça é publicada pela Editorial Império e é mais tarde apresentada no Teatro da Trindade.

Mircea Eliade, Miguel de Unamuno e Maurice Maeterlink são, para além de Colette, Cecília Meirelles e Gabriela Mistral, por quem nutre verdadeira admiração pessoal e literária, talvez os três grandes vultos do seu tempo com quem tem oportunidade de privar e mais a impressionam: Mircea, que considerava a pessoa mais entendida em tudo o que toca o sobrenatural e a quem teve a sorte de ouvir longos e encantatórios relatos sobre a sua experiência no Tibete; Unamuno -  quem quisesse chamar a sua atenção, não lhe falasse da sua obra, da sua filosofia, do seu sentido profundo da vida, mas das suas bonecas, das figurinhas de papel que ele recortava com as pontas dos dedos enquanto jantava ou passeava. Então, sim, descia do seu pedestal e era o mais simples dos homens! e Maeterlink, que passou, durante a guerra,  uma temporada na Quinta da Marinha,  numa casa vizinha àquela onde Fernanda de Castro gozou férias ao longo de 15 anos e que é hoje o Clube do condomínio; para além dos valiosos conselhos literários que lhe deu, Maurice, presidente da associação Cent Gourmets de France, forneceu-lhe ainda algumas das receitas culinárias que, mais tarde, nas legações de Portugal em Berna e em Roma, lhe granjearam a reputação de excelente anfitriã.

Fernanda de Castro, que a par da sua actividade enquanto escritora e presidente dos Parques Infantis, sempre se interessou pela gastronomia (como pela tapeçaria de Arraiolos, de que foi excelente executante), publica na Portugália Editora, atendendo às dificuldades de abastecimento provocadas pela Guerra, um livro de cozinha, com capa de Ofélia Marques e pseudónimo de Teresa Diniz: Cem receitais Sem Carne, onde a sua nora Pó ainda hoje se inspira para cozinhar. O prefácio é seu e obtém um êxito de vendas imediato.

Em 1944, traduz o Diário de Katherine Mansfield, escritora com quem muito se identifica. O livro é publicado pela Livraria Tavares Martins, do Porto, com capa de Manuel Lapa e um desenho de Magalhães Filho.

Em 1945 publica, em edição da Livraria Tavares Martins, com capa e um desenho de Manuel Lapa, o seu célebre Maria da Lua. Com este romance – dito juvenil, mas, na verdade, um verdadeiro encantamento para adultos – Fernanda de Castro é a primeira mulher a obter o Prémio Ricardo Malheiros, da Academia de Ciências de Lisboa. Sucessivamente o livro terá cinco edições, a última das quais em 1984, pela Ed. Verbo.

É neste ano que Aquilino faz da obra de Fernanda de Castro uma apreciação lapidar: sem igual no lirismo contemporâneo.

Colabora na curta-metragem de João Mendes, dedicada à sua obra social, precisamente com o título Parques Infantis, estreada no Odéon e no Palácio a 19 de Dezembro.

Em 1946, traduz Cartas a um Poeta, de Rainer-Maria Rilke, publicadas pela Portugália Editora. O prefácio é também seu. Desta versão foram feitas numerosas edições, sendo a última de 1986, pela Editora Contexto. Traduz também, durante os anos 40 e 50, o romance A Ilha dos Demónios, de Carmen Laforet; A Electra, de Sófocles (que ficou inédita); A Volúpia da Honra, de Pirandello, representada no Teatro Nacional; O Rei Está a Morrer e O Novo Inquilino, de Ionesco, sendo a primeira representada no Teatro Trindade e a segunda no Teatro Nacional.

Fernanda de Castro, de intuição dramatúrgica já demonstrada, afirma-se aqui como grande tradutora de peças teatrais.

Em 1948, publica o romance Sorte, de raiz bucólica, em edição da revista Ocidente, ganhando com ele o 2º prémio das «Casas do Povo».


1950-1957
António Ferro deixa o S.N.I. e toma posse do cargo de Ministro de Portugal em Berna. Fernanda de Castro acompanha-o e prepara a sua instalação na casa de Helvetiastrasse, onde o casal permanecerá três anos.

A escritora organiza as principais recepções na Legação, com uma originalidade e um bom gosto já reconhecidos internacionalmente, mas deslocando-se a Portugal com frequência, continua a dirigir os Parques Infantis.

Em 1952, publica o livro de poemas Exílio, em edição da Livraria Bertrand, que lhe valem estas linhas de Teixeira de Pascoaes: O livro de V. Exª contém o que há de eterno na Poesia e desde já figura entre as mais belas obras poéticas da nossa Literatura! 

Em 1953, lança a revista Bem Viver, que dirige durante os dois anos da sua publicação, com a colaboração gráfica da pintora Inês Guerreiro. É uma revista que promove a defesa do ambiente, do bom gosto e do bem-estar em casa e na vida quotidiana, dos valores tradicionais em espírito de renovação, etc. Entre os temas tratados figuram: A Casa; A Criança; A Moda; A Culinária; Interiores e Enfeites; É Assim a Nossa Gente; Beleza e Higiene; A Vida do Espírito. Fernanda de Castro é a redactora da maioria dos textos, mas colaboram também escritores ou artistas como Anthero de Figueiredo, Azinhal Abelho, António Ferro, Abel Viana, António Quadros, Heloísa Cid, Natércia Freire, Maria da Graça Freire, Manuel Couto Viana, Francisco Lage, Álvaro Ribeiro, Celestino Marques Pereira, José Rocha, Paulo Ferreira, Cottinelli Telmo, etc.

Em 1954, António Ferro é transferido para Roma, onde vai exercer as funções de Ministro de Portugal em Roma. Fernanda de Castro ocupa-se da instalação e, como antes, organiza as principais recepções. Em Roma, escreve inteiramente o conjunto de poemas que intitulará Asa no Espaço e publicará um ano depois na Colecção Poesia, da Editora Ática. 

A escritora aceita o convite de Mariana Avilez para ser sua sócia num hotel de Cascais - o Solar de D. Carlos - que constituirá uma das suas principais actividades durante os quatro ou cinco anos que se seguem.

Entretanto, a Legação de Portugal em Roma é elevada à categoria de Embaixada.

Em 1956, publica o romance Raiz Funda, em edição da Livraria Bertrand, num estilo audacioso para a época.

Tendo-se deslocado de Roma a Lisboa por motivos de doença, António Ferro é operado a uma hérnia no Hospital de S. José; Fernanda de Castro acompanha-o constantemente, dormindo no mesmo quarto do hospital durante os cerca de oito dias que precedem a morte do marido, a 11 de Novembro.


1957-1963
Continuando a dirigir o Solar D. Carlos, Fernanda de Castro, embora viúva e com poucos recursos, recusa a oferta do então Ministro do Interior para auferir um vencimento pela direcção dos Parques Infantis. 

A escritora Marguerite Yourcenar passa um período no Solar, trabalhando num dos seus romances. Neste ano, escreve as peças de teatro Coulisses (directamente em Francês) e Maria da Lua, adaptada do romance pelo qual obtivera o Prémio da Academia de Ciências. Ambas as peças ficam inéditas, mas nada detém a sua inquebrantável energia criadora.

Em 1958, promove no Jardim da Estrela a «Feira de Portugal em Lisboa», uma exposição de artesanato das várias províncias, repartidas por pitorescos stands individualizados. 

Em 1958, escreve o argumento do filme Rapsódia Portuguesa, com realização de João Mendes e produção de Filipe de Solms.

Na casa onde vive, o Presidente da Câmara descerra uma lápide dedicada a seu marido, ao lado das lápides já existentes, referentes a Oliveira Martins e a Ramalho Ortigão.

Também no Palácio Foz é descerrado um busto de seu marido, da autoria de Álvaro de Brée, cuja réplica se encontra no Círculo Eça de Queiroz, fundado por António Ferro. Fernanda de Castro está presente em ambas as cerimónias.

Em 1959, quatro anos decorridos sobre a sua aquisição, a escritora vende o Solar D. Carlos. 

No Parque Infantil das Necessidades dedica-se a realizar uma experiência inovadora: a criação do grupo O Pássaro Azul, nome inspirado numa das peças de Maeterlink, em que se integram 100 crianças dos Parques, com o objectivo de receberem uma educação artística tão completa quanto possível. O elenco de docentes é luxuoso: Sarah Afonso e Inês Guerreiro (Pintura), Eunice Muñoz e Carmen Dolores (Teatro), Águeda Sena e Ana Máscolo (Dança), Maria Germana Tânger (Poesia e declamação), Arminda Correia, Júlia d’Almendra e Nina Marques Pereira (Música).

O grupo apresenta diversos programas na R.T.P. e na Estufa-fria, aqui a convite da Câmara Municipal de Lisboa.

A Rapsódia Portuguesa estreia-se no Tivoli a 30 de Março, vindo mais tarde a obter um prémio no Festival de Cannes.

Em 1960, integrada nas Festas de Junho, a escritora organiza, em moldes inéditos, uma grande Festa Popular no Jardim da Estrela, animada durante a quadra dos Santos Populares por manifestações das mais variadas e com um grande êxito junto do público. 

No mesmo ano, Fernanda de Castro escreve a peça Mãe Dolorosa, mais tarde apresentada na R.T.P., tendo Brunilde Júdice como protagonista. Vai também à Madeira, proferindo no Funchal a conferência O Mundo é Pequeno.

Em 1961, organiza de novo a Festa Popular no Jardim da Estrela, com algumas inovações e o mesmo êxito.

O Teatro Nacional D. Maria II leva à cena a sua peça A Espada de Cristal, com Lourdes Norberto.

Em Novembro deste ano, Fernanda de Castro sofre um terrível choque: num desastre de automóvel, o seu filho Fernando é gravemente ferido e morrem as duas filhas deste, suas netas, Tracy e Grett, que ela ama perdidamente.

É um golpe duríssimo, que a aproxima ainda mais da Poesia.

Neste mesmo ano viaja até Moçambique onde, em Lourenço Marques, Beira, Nampula, Quelimane e Porto Amélia, apresenta as conferências Rapsódia Portuguesa e O Mundo É Pequeno, de que nos fala a poetisa Edith Arvelos, num artigo para um jornal moçambicano (Setembro, 1962): «No fim da conferência ficámos com a impressão de termos durante uma hora visitado grande parte do Mundo e vivido muitas vidas, embora essa hora nos tivesse parecido um minuto.»

África arrebata-a, como sempre. Na capital de Moçambique dá também dois recitais de poesia em conjunto com a declamadora moçambicana Manuela Arraiano, sua grande amiga. Visita vários locais de Moçambique, entre os quais a Gorongosa, que lhe inspirará mais tarde um romance de aventuras para a juventude.

Em 1963, Fernanda de Castro cria o Teatro de Câmara António Ferro, em homenagem a seu marido, rodeando-se de um grupo de jovens poetas, encenadores, actores e artistas, como José Carlos Ary dos Santos, Diogo Ary dos Santos, Norberto Barroca, Alexandre Ribeirinho, Maria Hermínia Monteiro, Pedro d’Orey, Helder Gaspar, Vasco Wellenkamp, etc., contando também com a colaboração de Eurico Lisboa e do seu filho António Quadros, e ainda com a disponibilidade de quatro das suas mais queridas e fiéis amigas: Maria Germana Tânger, Inês Guerreiro, Heloísa Cid e Edith Arvelos. O Teatro de Câmara António Ferro apresenta fragmentos do Milagre de Santo António e de Mona Vanna, de Maurice Maeterlinck; cenas de O Lugre, de Bernardo Santareno; Passagem do Evangelho e Azul Existe, de José Carlos Ary dos Santos ou Rua Velha, da própria Fernanda de Castro, além de diversos outros textos dramatúrgicos ou poéticos. As representações fazem-se na sala principal da sua casa, precisamente onde se reuniam muitas vezes, no tempo de Oliveira Martins, os «Vencidos da Vida».

Em 1963 publica um romance infantil, A Princesa dos Sete Castelos, com ilustrações de Inês Guerreiro, que mais tarde terá uma edição brasileira. Publica ainda A Ilha da Grande Solidão, em edição da Portugália Editora, com vinhetas da capa de João da Câmara Leme, que constitui um poema extenso, deslumbrante e em muitos aspectos autobiográfico. Mário Beirão deixa-se encantar por ele: É feito das lágrimas dum canto de estrelas do Anjo da Infância. Todo ele é Poesia, só Poesia, astral Poesia. Recorde-se esta passagem, reveladora do temperamento rebelde e inconformado da autora:

Mais cavalos vieram,

mais irmãos,

mas sempre em minhas mãos

me puseram bonecas,

de pasta e porcelana,

cavalos, não!

E eu rasgava a tremer a tartalana

dos vestidos,

e odiava, odiava,

com os meus cinco sentidos!


1964-1974
Em 1964, surpreende os seus leitores com a publicação de um livro de introdução à  Botânica, ciência que sempre a impressionou. É A Vida Maravilhosa das Plantas, por que alguns dos seus netos chegam a estudar.

Ainda este ano instala-se no Algarve, numa aprazível casa na ilha de Faro, onde recolhe a sua extraordinária colecção de conchas e abre um restaurante em Faro, adaptando um velho palácio da cidade (onde antes estava instalada uma tipografia).

Mas o Al-Faghar, que depressa ganha a reputação de ser o melhor restaurante da capital algarvia, tem também uma exposição e venda permanente de artesanato português, reunindo peças de arte popular que a própria escritora procura por todo o país.

Organiza, também neste ano, o I Festival do Algarve, que estreia no Castelo de Ofir, com um recital de poesia árabe e portuguesa (no qual tomaram parte dois príncipes marroquinos com os seus trajes de cerimónia) e com a representação da peça Tempo da Lenda das Amendoeiras, de José Carlos Ary dos Santos, com António Manuel Couto Viana, João Perry e o próprio autor (!) nos principais papéis.

Em 1965, realiza o II Festival do Algarve, promovendo a Festa da Lua e a Festa do Mar, em que tomaram parte entre outros Amália Rodrigues e o grupo de poesia João d’Ávila, incluindo Isabel Ruth, Manuela de Freitas e Lídia Franco. 

De um modo geral, as diversas manifestações destes dois Festivais do Algarve realizaram-se, além de em Silves, em Lagos, Portimão, Praia da Rocha, Armação de Pêra, Tavira, Faro e Vila Real de Santo António.

Incapaz de recusar um desafio, a poetisa aceita a proposta para fazer as decorações interiores de 40 dos primeiros bungalows de Vilamoura. A pintora Inês Guerreiro, talvez a mais querida e antiga das suas amigas, é a sua principal colaboradora, mas deram também a sua assistência uma sua sobrinha, Ana Maria Quadros, e Manuela Novais. 

Em 1966, publica o maior poema europeu consagrado ao continente negro: África Raiz, com capa de Inês Guerreiro e desenhos de Eleutério Sanches, que dedica À terra de Bolama, em cujos braços repousa minha mãe. José Carlos Ary dos Santos classifica-o como O poema do século e Ferreira de Castro escreve-lhe imediatamente, no momento em que termina a sua leitura: Ainda tenho nos ouvidos o ritmo excelso dos seus versos, nos olhos as figuras que eles evocam, a luz e a cor da terra forte, leda e mártir que eles habitam. É um poema extraordinário, o seu. Que força expressional e consecutiva, que fôlego sem desfalecimento, que altura sem vertigens, que beleza sem interrupções! Você tem a vontade dos vinte anos, o ímpeto já consciente dos trinta e a mestria que se adquire depois…

Em 1969, com a energia que nunca a abandona, publica duma assentada um romance de aventuras e ainda novo livro de poesia: Fim-de-semana na Gorongosa, ilustrado por Inês Guerreiro, e o Bloco 65, que mais tarde incluirá em 70 Anos de Poesia.

Tendo publicado o seu primeiro livro em 1919, Fernanda de Castro perfaz 50 anos de actividade literária. Um grupo de amigos organiza-lhe um jantar de homenagem, que se realiza no restaurante «A Quinta», com a presença de muitas dezenas de pessoas, intelectuais e amigos. São oradores no final do jantar os escritores Vitorino Nemésio, Hernâni Cidade, Natália Correia, David Mourão Ferreira, José Carlos Ary dos Santos, Luís de Oliveira Guimarães e Domingos Monteiro. 

Na sequência deste aniversário, é publicada uma antologia dos seus poemas, em dois volumes, Poesia I e II.

Alfredo Guisado lê o livro e faz o balanço da sua carreira: Seguiu imperturbável pelos caminhos que, desde o princípio, escolheu, não se preocupando com os ambientes modernizantes que cercaram e conquistaram elevado número de poetas, nem se importando com o que ocupava o primeiro plano no começo da sua jornada, onde ainda o velho lirismo teimava em querer modificar-se no desejo de vencer mas não o conseguindo. Afasta-se, quer do que havia de velho, quer do novo, para consentir apenas no que ela própria tinha imaginado… 

E Natércia Freire, que desde sempre encontrara uma singular transcendência na sua obra, acrescenta: Na sua arte a imagem traduz a ressonância dolorosa de um ser em consciente ascensão poética…

A escritora é laureada com o Prémio Nacional de Poesia, vendo assim reconhecida a excelência da sua obra.

Em 1970, compra uma casa antiga em Marvão, dentro das muralhas do castelo, e restaura-a, cumprindo assim um velho sonho. É aqui que passará alguns dos melhores períodos da sua vida, na companhia de algumas amigas dilectas e dos netos Stephanie e Vicente, filhos do seu filho Fernando, residentes em Paris. Em 1973, influenciada por essa experiência tão grata, publica o romance Fonte Bela, com capa de Manuel Lapa – um romance luminoso e mágico, expressão de uma forma de realismo fantástico menos habitual na sua prosa, que delicia os leitores.

Depois de 40 anos de dedicação a uma obra de altruísmo pela qual passaram e foram educadas milhares de crianças, Fernanda de Castro, com 73 anos, já cansada, faz a entrega dos Parques Infantis à Santa Casa da Misericórdia, que os toma inteiramente sob sua responsabilidade.


1975-1984
A Revolução surpreende Fernanda de Castro, mas não a fragiliza. Não tem alma de política nem nunca se envolveu em lides partidárias. 

Os seus dois grandes amigos, Natália e Ary, interrompem a sua convivência para abraçarem ideologias de que não partilha. Não se zangam exactamente, afastam-se. 

A admiração pessoal de Fernanda de Castro por Salazar é firme – não a desmente, nem hipoteca a sua honra. Paga sem rancor esse tributo. Admite na altura que, se tivesse trinta anos e saúde, talvez pudesse intervir. Mas a revolução vem colhê-la já doente e cansada, magoada por alguns silêncios, algumas reservas, alguns amigos. Sofre a desordem do seu Portugal apreensiva, mas confiante, apesar de tudo. Confessa-se desesperadamente portuguesa e afirma que nada deste mundo a faria mudar de pátria ou de nacionalidade. Escreve Onde Estais Lusitanos? e Ó Meu País, verdadeiros hinos de exortação aos portugueses:

E agora, onde é que estais?

Onde estais, Lusitanos de Aquém-Mar,

Que o Mar-além, agora não é nosso.

Que importa? Ainda há fronteiras a alcançar,

Tudo está  em dizer: eu quero, eu posso;

Sobretudo fronteiras a transpor,

E a primeira de todas é a Dor.

Outras ainda: o tédio, o desalento,

E esta nova maneira nacional,

De ver tudo incolor, tudo cinzento,

Neste arco-íris de Deus que é Portugal.

(…)

Que importa, meu País, se ainda és capaz

de descobrir, em vez de continentes,

penínsulas de amor, ilhas de paz

onde possam viver as tuas gentes?

Ergue a cabeça, acalma a tua dor.

Qual o país sem nódoa ou cicatriz?

O vendaval sacode folha e flor;

Pode o fruto cair, fica a raiz.

Coragem, Portugal! Doem-te as chagas?

Mas não serão catanas nem adagas,

que te farão esquecer essa glória:

sangue e suor, vitórias e derrotas,

com tudo isto é que se faz a História.

Na vida de um País há bom e mau:

Jesus, e era Jesus, chorou no Horto,

sofreu, e só depois subiu ao Céu.

Não, Portugal, não és um País morto,

que Deus é o timoneiro desta nau

e chegaremos todos a bom porto.

Penalizada pela crítica e a imprensa de esquerda, ignorada pelas correntes dominantes, temporariamente esquecida pelos leitores, Fernanda de Castro não desanima. Ainda em 1975, adapta ao teatro o seu romance Fonte Bela, com o título Os Cães Não Mordem, que fica inédita.

Durante os anos 80, alguns dos quais vividos com o neto António, sua mulher e filhos,  na Calçada dos Caetanos, passa longos períodos na Villa Rosa de Lima, no Alvor (Portimão), numa casa cedida pelo seu irmão Alberto, que redecora a seu gosto e onde recebe a família e os amigos para passarem temporadas. 

Escreve um novo livro de poemas, intitulado Urgente! (1980), como um grito de repúdio à aridez e ao vazio espiritual da vida moderna:

Ele e ela. Modernos. Evoluídos.

Casados, descasados, recasados.

Ele, com três mulheres.

Ela, com três maridos.

Ambos com filhos e enteados.

O pior é que ficam malcriados,

Têm mimo demais.

Pois é, têm tudo demais:

Sobretudo mães e pais.

Dois anos depois, vítima de acidente vascular-cerebral, adoece gravemente e perde para sempre a mobilidade; no entanto, apesar da doença, continuará  a tratar das suas plantas, a escrever versos esporádicos, a dar explicações a alguns dos bisnetos e a organizar serões de amigos, mantendo até ao fim uma vida intelectual activa. 

Publica-se, ainda esse ano, no jornal O Tempo, alguns poemas de Urgente!

Em 1983, é  editado o seu livro de contos para crianças, A Ilha dos Papagaios, em edição da Editorial Verbo, com capa e ilustrações de Fernando Bento, e, em 1984, publica na mesma editora a 5ª edição do seu romance Maria da Lua.

A 18 de Janeiro de 1984, morre o seu grande amigo e companheiro de criação José Carlos Ary dos Santos, a quem ela estima como um filho. A escritora, agora mais só, sofre o golpe com uma dor aguda e silenciosa. 

Por esta data, a sua empregada antiga, a fiel Maria de Jesus, cozinheira responsável por alguns dos mais deliciosos jantares em sua casa, estimada por toda a família Ferro, retira-se para a sua terra, cansada.


1985-1995
Fernanda de Castro começara já algumas páginas das suas memórias. Agora, acamada e quase cega, dita-as alternadamente a uma colaboradora prestável, Teresa Zeverino, e sobretudo à sua grande e fiel amiga Edith Arvelos, poetisa e pianista moçambicana que, hospedada em sua casa, a acompanhará até ao fim com um desvelo inexcedível.  

Fernanda de Castro em nada corresponde ao paradigma de uma figura diminuída e queixosa da assim chamada terceira idade; senhora de uma grande alegria e de um riso fresco e cheio, possui desde sempre um indefinível magnetismo que atrai as pessoas.

E a «Calçada dos Caetanos» é uma casa aberta, sempre foi; tem permanentemente rosas frescas nas jarras, um piano aberto e um bule de chá quente, em prata, para acolher as visitas.

Às quintas-feiras, sem falhar, Fernanda de Castro manda servir chá e torradas a quem aparece. Amália lancha com ela algumas vezes, mas são muitas e variadas as pessoas que a procuram; além   dos irmãos, dos netos, dos bisnetos e dos sobrinhos, numerosos, também as suas amigas Maria Luísa Garin, Margarida Homem de Gouveia, Inês Guerreiro, Manuela Novaes, Mané Lima de Carvalho, Maria Germana Tânger, Heloísa Cid, Eugénia Aurora, Teresa Mayer, Elvira de Freitas e Barbara Benini, com quem joga canasta ou «trivial», e ainda um naipe variado de artistas, estudantes e jornalistas que a procuram para a conhecer e trocar ideias.

Para além destes, o seu filho António Quadros e a sua nora Pó, bem como o seu filho Fernando, de novo a residir em Lisboa, mantêm um convívio diário com a mãe.

Fernando Dacosta é um dos escritores que, já no fim da vida, tem um convívio privilegiado com a poetisa. 

Outro aspecto singular do seu convívio: no dia 8 de Dezembro, dia dos seus anos, prepara anualmente uma grande festa, para a qual não envia um único convite. E todos os anos, a casa se enche para rodear Fernanda de Castro de presentes e de mimos, tradição que se mantém mesmo depois desta adoecer e até ao fim da sua vida.

Em 1986, publicado o I volume de Ao Fim da Memória (1906-1939) pela Editorial Verbo, tendo na capa uma reprodução do seu retrato a óleo, por Sarah Afonso. 

A neta, Rita Ferro, que se oferece esporadicamente para escrever o que a avó dita, é exortada, na obra, a seguir as suas pisadas e a escrever. 

Ao Fim da Memória obtém um grande êxito junto da crítica e do público, esgotando-se rapidamente.

Tanto os estudiosos do Estado Novo como o público em geral, pensavam poder ler nas suas memórias importantes revelações políticas, mas Fernanda de Castro, sempre mais presa à Vida e à Poesia, relata a sua vida cheia num tom optimista e redentor. Afirma que viveu toda aquela época como uma portuguesa qualquer e mulher do seu marido. Conta que uma vez, num banco de Nice onde quis trocar dinheiro, participou que tinha dólares, francos suíços e escudos e que se orgulhou de ouvir formular em bom francês prefiro escudos. Recorda Duarte Pacheco não por pertencer ao Estado Novo, mas ao seu tempo: Trabalhava vinte horas por dia e foi por isso que morreu num desastre de automóvel, quando dizia ao seu chauffeur: «depressa, mais depressa!» E refere o próprio Salazar, sem subterfúgios: Para mim, ele era o homem que acabara com as revoluções, com a desordem, com os assaltos às mercearias, com a propaganda do bacalhau a pataco, o homem que liquidara a dívida externa, que valorizara o escudo, que conseguira que erguêssemos a cabeça, com orgulho, onde quer que estivéssemos. Diz que pensava nele, também, como num grande Português que dedicara inteiramente a sua vida ao País, a ponto de renunciar à tentação de casar e de ter filhos, e acrescenta: Também não podia impedir-me, egoistamente, de pensar nele como no amigo que várias vezes nos demonstrou a sua estima e que, por isso, estará sempre vivo na minha recordação e na minha saudade.

Em 1987, é  publicado o II volume de Ao Fim da Memória (1939-1987) pela mesma editora, reproduzindo na capa outro retrato a óleo seu, desta vez da autoria da pintora brasileira Tarsila do Amaral. Idêntico êxito esgota também este volume, em pouco tempo.  

Começa então a ditar um novo livro, dedicado a amigos desaparecidos, intitulado Cartas Para Além do Tempo.

O nº  100 da revista Colóquio Letras insere dois poemas seus, inéditos, a abrir um conjunto comemorativo deste aniversário: As Dunas Onde Estão? e Quem Pudera, Cecília!, sendo este uma evocação da sua grande amiga Cecília Meireles.

São publicados, em 2ª edição, os dois volumes de Ao Fim da Memória, que Esther de Lemos, na Colóquio/Letras, saúda desta maneira: «(…) longe de ser o superficial contentamento de quem colhe a flor do instante, é a assumida, consciente entrega à vida, com todo o seu peso de alegrias e dores. É a vitória do espírito sobre as contingências do tempo e do destino. Uma profissão de fé na Vida.».

A revista Leonardo, no seu 1º Número, publica duas das suas Cartas Para Além do Tempo dedicadas aos seus saudosos amigos Mircea Eliade e Maurice Maeterlink.

Em 1989, comemora 70 anos de vida literária.  

A Fundação Eng.º António de Almeida publica esta antologia da sua poesia com muitos inéditos. A Guimarães Editores publica o livro, até  aqui também inédito, Urgente! e a Europress publica as Cartas Para Além do Tempo que inclui uma carta sua, pessoal, para o marido.

Por esta ocasião, organiza-se uma grande festa de homenagem em casa de Fernanda de Castro, em que são oradores, entre outros, Natália Correia, David Mourão Ferreira e a sua nora, Paulina Ferro.

O Círculo Eça de Queirós presta-lhe, na sede, uma simbólica homenagem à sua vida e obra, que a autora, impossibilitada de comparecer, segue através de uma gravação directa.

Em 1990, é  galardoada com o Prémio de Literatura Infantil da Fundação Calouste Gulbenkian.

Quatro anos antes de morrer, escreve, também ditando, o seu último romance, em cujo título se pode entrever, apesar da idade avançada, o mesmo estado de espírito de esperança, confiança e juventude: um romance de 400 páginas intitulado Tudo é Princípio; a Ática propõe-se editá-lo, mas é o Círculo de Leitores que, juntamente com as obras completas da autora, se candidata à publicação.

Na mesma data, o seu filho António Quadros, já doente, escreve o romance Uma Frescura de Asas, enquanto a neta Rita Ferro lhe dá a alegria de publicar o seu primeiro romance, O Nó na Garganta, como réplica ao desafio que a avó lhe havia formulado nas Memórias. 

Por Coincidência, mãe, filho e neta escrevem concomitantemente um romance, partilhando entre si essa experiência tão rara.

Em 1991, a jornalista Manuela Gonzaga entrevista Fernanda de Castro numa casa de férias, descrevendo a admiração que lhe causa a poetisa: A sua memória prodigiosa leva-nos através do tempo e do espaço e a sua força é muito mais forte do que todas as tragédias ou todas as misérias, porque Fernanda de Castro é livre na prisão do seu corpo e o seu olhar continua lúcido, compassivo e luminoso, através dos véus da cegueira.

Em 1993, a 16 de Março, morre a sua amiga Natália Correia, de quem a revolução havia separado do convívio, não na cumplicidade que as unia. Fernanda de Castro sofre mais esta perda com a coragem e a filosofia habituais, e quando uma das netas a visita no propósito de a consolar, responde, serena: Já a vi depois de morrer. Esteve cá ontem, passou a tarde comigo…

Dias depois, viria a sofrer novo golpe, desta vez insuperável: o filho António Quadros, que a adora e visita diariamente, responde a todas as suas necessidades, lhe revê os livros e lhe gere as economias, morre, vitimado por um tumor no cérebro, no dia 21 de Março, dia em que começa a Primavera.

Mas para Fernanda de Castro seria o início de um longo e irreversível Inverno: imobilizada numa cama, não pode sequer comparecer às cerimónias fúnebres do filho, impossibilidade já experimentada anteriormente com a morte de alguns dos seus irmãos.

O desgosto é insanável.

Dilacerada por esta perda, nunca chegará a recompor-se animicamente.

Em 1994, no jornal Expresso, a jornalista Luísa Shmidt regista as suas impressões ao entrevistá-la: Recordo nela a falta de veneração íntima pelos poderes, porque o poder estava nela, na fascinada tenacidade com que sempre quis a vida. Os próprios sofrimentos que os tempos lhes foram trazendo nunca desfizeram a misteriosa força desta mulher tão viva…

Fernanda de Castro morre de morte natural no dia 19 de Dezembro de 1994. Apesar da enfermidade que a imobilizou durante 12 anos, e dos graves problemas ósseos e de visão que a atormentavam há décadas, a família nunca a ouviu queixar-se.

Dias depois da sua morte, num artigo de homenagem à sua vida e obra, um jornalista não identificado escreve a síntese:

Tinha a idade do século

e a força interior das mulheres de excepção.

Morreu. Mas era a figura singular

que a sua poesia e a sua prosa

há  muito remeteram para o historial da cultura portuguesa. 

E essa, naturalmente, permanecerá.

E também a sensibilidade de Laurinda Alves registaria n’ O Independente: Morreu há quatro dias, dizem, mas é como se nunca se apagasse a luz daquele quarto. A família impressiona-se ao ler estas linhas, porque é essa a sensação que experimenta sempre que sobe, ou desce, a antiga Calçada dos Caetanos.

No entanto, a sua «partida» já fora anunciada muitos anos antes, por ela mesma, no seu maravilhoso poema biográfico, com o mesmo estofo espiritual e o mesmo sentido de transcendência que a ajudaram a suportar a imobilidade e a dor nos últimos anos de vida:

Depois, depois,

a luz foi-se apagando,

a alma foi subindo,

o corpo foi baixando,

e o cavalo de fogo,

em linha recta,

lá  vai rumo ao Sol,

na direcção da Seta…


1995-1999
Três meses depois, nasce o Gonçalo, seu primeiro trineto.

A Comissão Municipal de Toponímia aprova uma rua com o nome de Fernanda de Castro, mas o jornalista Appio Sottomayor, d’ A Capital, membro da referida Comissão, sugere que antes lhe seja designado um jardim com o seu nome em homenagem às flores que tanto amava e à Lisboa que tão bem cantou. E insiste: … é urgente criar ou baptizar um espaço verde onde as crianças brinquem e tenham lugar privilegiado. Lisboa tem de perpetuar o nome da musa dos seus jardins. Nem que tenha de se plantar um para o efeito!

A proposta é bem acolhida, pelo que no dia 19 de Julho de 1999, é aprovado, no Restelo (Lisboa), um jardim com o seu nome.