Inéditos - Fernanda de Castro
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Mafalda Ferro


CONFRARIA CULTURAL BRASIL-PORTUGAL

Sede: Divinópolis, Minas Gerais, Brasil
Presidente Maria de Fátima Quadros

 Como descendentes de portugueses e interessados por tudo o que diz respeito à terra da nossa gente, terra amada, fundámos uma Confraria para ampliarmos as nossas relações de afecto, amizade e tradição e trabalharmos em prol de actividades afins, históricas, culturais, etc., trazendo Portugal aos brasileiros e levando para Portugal, o Brasil. Afinal, somos um só povo, uma só alma e um só coração. Brasil é Portugal e Portugal é Brasil.
Foram indicados pela fundadora e aprovados por aclamação os nomes dos padrinhos da Confraria, MARIA FERNANDA TELLES DE CASTRO E QUADROS FERRO e JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS e, para dar nome à Biblioteca, GENI BATISTA QUADROS.
Escolhemos Fernanda de Castro para madrinha por ser uma artista completa, célebre na poesia, nas letras e em tudo o que se relaciona com a arte. Figura feminina privilegiada, marco da literatura portuguesa, autora dos mais magníficos versos, a sua memória perpetua-se na eternidade. O seu trabalho não tem limites nem fronteiras, é simplesmente belo e magistral, assim como a obra de Machado de Assis, fundador da Academia Brasileira de Letras e filho de mãe portuguesa.
Quisemos prestar a estes grandiosos vultos uma singela homenagem mas os homenageados fomos nós. Este privilégio engrandeceu ainda mais a nossa Confraria.

Maria de Fátima Quadros

Fernanda de Castro

É mês de Natal
por Maria Ana Ferro

É mês de Dezembro e em Dezembro é difícil não me lembrar dos seus olhos. Eram olhos de dia frio, céu azul. E nós, os seus cobertores, deitados nas suas pernas, a aquecer a nossa e a sua alma.
Pedi para ficar com o cofre, quando morreu. É um cofre grande e pesado com uma chave, onde guardava “dinheiros”. Às vezes, havia lá dentro restos de tecidos antigos misturados com notas. O cheiro ainda é o mesmo e é onde hoje guardo os segredos e os escudos que me restam.
Não compreendi a poesia enquanto Fernanda de Castro esteve viva. Não tinha idade, maturidade, não era o tempo.
Tive essa pena.
Deixei-me só ficar por ali, naquele quarto onde estão condensadas todas as recordações que tenho daquela casa, daquela pessoa, avó, poetisa, amiga, com quem vivi.
E de lá, retirei tudo o que poderia vir a usar um dia. Pouco tempo depois finalmente percebi. Lembro-me de não conseguir respirar. Já não ia a tempo.
Lembro-me de ter medo que aqueles olhos, aquelas tranças e aquele cheirinho a pó de arroz desaparecessem um dia e achei que levaria consigo a poeta. Mas não, sempre que abro o seu cofre, sinto o frio de Dezembro, e há azul à minha volta, tudo continua e nada mudou. Há sempre a sua poesia..





Fernanda de Castro Fernanda de CastroFernanda de Castro


Casa Fernanda Palavra
Francisco de Almeida Dias, Università degli Studi di Roma Tre.


Imagino-a: uma grande casa de paredes sólidas e alvadias, de janelas e portas abertas sobre uma bela manhã de Primavera, cheia de flores, debruçada sobre um bairro antigo de Lisboa, sobre o rio visto da outra banda, ou sobre as extremas colinas de Marvão. Uma casa cheia de mistério, de presenças que atravessam as estâncias, de pequenos objectos sentimentais.

Tal deve-se ao facto de ter Fernanda de Castro habitado sempre casas excepcionais. Recordo, de relance, a casa pombalina de Cacilhas, a casa cor-de-rosa de Maria da Lua, tutelada pelas presenças de uma Avó velhinha e doce e de uma Tia severa de outros tempos. Recordo a casa da juventude, a Santa Quitéria, onde o acaso colocou os Leitão de Barros no quintal confinante e reuniu, no entre-cá-e-lá desse muro, a geração Segundo Modernismo português. E, enfim, a casa que mais completamente exprimiu a alma da Poetisa e da Mulher, onde viveu toda a vida desde o casamento: a casa dos Caetanos.

Este prédio histórico, em cuja fachada se acumularam em épocas sucessivas placas evocativas de celebridades que o habitaram, é certamente lugar de uma energia especialíssima, t“po loj fainw, loco de revelações. Tecto, pois, de pessoas luminosas como o foi Fernanda de Castro: ser iluminado e iluminante.

Emoção de entrar na sua grande casa da Poesia, habitar o tempo das palavras, o espaço das suas palavras, para, liberto de espaço e tempo, voar com as palavras...

grego:t“po loj fainw, significa revelação do sagrado

 
 
FERNANDA DE CASTRO, E O SEU JARDIM
Lisboa, 8/12/1900 – Lisboa, 19/12/1994)


Lembramos, este mês, os 10 anos do Jardim Fernanda de Castro, na encosta do Restelo em Lisboa, aprovado no dia 19 de Julho de 1999.

Em termos históricos, o processo teve início quando a Comissão Municipal de Toponímia aprovou uma rua com o nome de Fernanda de Castro. No entanto, o jornalista Appio Sottomayor, do jornal A Capital (membro da referida Comissão), sugeriu que lhe fosse designado, em vez disso, um jardim com o seu nome, em homenagem às flores que tanto amou e à Lisboa que tão bem cantou. E sublinhou, na altura: «… é urgente criar ou baptizar um espaço verde onde as crianças brinquem e tenham lugar privilegiado. Lisboa tem de perpetuar o nome da musa dos seus jardins. Nem que tenha de se plantar um para o efeito!» E assim nasceu o Jardim Fernanda de Castro.

NOTA: Fernanda de Castro fundou e presidiu durante 40 anos, à Associação Nacional dos Parques Infantis.
Fundação António Quadros in newsletter 1
 

Zé Carlos Ary dos Santos : um outro olhar

“Não, minha mãe. Não era ali que estava.
Talvez noutra gaveta. Noutro quarto.(…)”

©  Manuel Cardoso, 2009

Ainda é difícil escrever-se com total objectividade sobre José Carlos Ary dos Santos. Por várias razões. Uma delas tem a ver com o facto de ser uma figura pública que há pouco tempo desapareceu de entre nós, estando ainda vivos, felizmente, muitos dos seus companheiros e amigos. Morreu precocemente, quando contava 47 anos de idade (se fosse vivo teria hoje 72 anos, feitos em Dezembro, pois nasceu em 7 de Dezembro de 1936). Assim, a perspectiva está ainda muito desfocada pelo pouco tempo que nos separa desse 18 de Janeiro de 1984 na Rua da Saudade, em Lisboa. Outra, tem a ver com o forte ruído ideológico (para o qual concorreram diversos factores) sobre o José Carlos, tanto sobre o que foi a sua vida, vista de diante para trás, como sobre o que é a sua memória. Finalmente, há a dificuldade nascida dos anticorpos que, um pouco por todo o lado, geraram o seu comportamento e a sua conduta. Algumas pessoas, das contactadas para sobre ele falarem (das muitas que com ele conviveram e para lá das do costume que sobre ele discorrem…), mostram-se reservadas ou, pura e simplesmente, não querem que seja tornado público o seu testemunho, numa atitude em que essa reserva tem, precisamente, que ver com um determinado parti pris em relação ao homem e ao poeta ou com uma má experiência no seu convívio. Não era uma pessoa fácil, em muitos aspectos.
Para o definir com três palavras e de acordo com os testemunhos ouvidos, foi um homem inteligente, vaidoso (muito vaidoso) e só (muitíssimo só). A inteligência acompanhou-o a vida toda; a vaidade, prejudicou-o a vida toda e a solidão acabou com ele. A inteligência nunca lhe deixou ver disfarçado o vazio, o fosso que se foi cavando à sua volta ao longo dos anos e que o foi afastando de todos os seus afectos. Pelo contrário, a inteligência dava-lhe dia a dia um certíssimo quinhão de sofrimento pela consciência de que esse vazio existia e de que cada vez aumentava mais com o passar dos anos. A vaidade, amarfanhadíssima pelo silêncio que sobre si faziam quase todos os poetas do stablishment e seus contemporâneos, foi corroendo a sua capacidade de resistir à degradação dos valores em que se educara, opostos ao culto da sua imagem. Como fuga e compensação, aceitava o populismo que à sua volta crescia, passou a ceder à glória fácil de ter o aplauso dos que diante de si se babavam sem o compreender. Em nome da vaidade cometeu actos de irreverência que muitos confundiram (ou justificaram) com génio (que o tinha também). A solidão, nascida de um episódio familiar abrupto que o tomou de choque e o marcou para toda a vida, veio estender um céu de chumbo cujo peso imenso, em muitos momentos, lhe deu a insuportabilidade de tudo não crer e nada querer.
Um Zé Carlos incongruente com tudo e todos foi-se formando ano após ano. De tal modo que, hoje, há os que o idolatram e vangloriam sem o conhecer; os que o conheceram e sobre ele tudo dizem sem dizer nada e os que sobre ele mais não fazem do que inventar, intangível que lhes é como pessoa e incompreensível como artista, autor de letras de canções, poeta.
Há, assim, um outro Zé Carlos para além daquele que nos tem sido dado a conhecer. É o mesmo, claro. Está nos mesmíssimos versos, nas mesmíssimas atitudes e brincadeiras, nos mesmíssimos sítios com a força, a veemência, o génio, os palavrões, a impertinência, a truculência desconcertante e o humor sulfúrico. Mas é outro também, ao mesmo tempo, talvez visto ao espelho. Basta saber vê-lo. Sempre esteve e tem estado por aí. Talvez não tenhamos, mas é, reparado que sempre tem estado por aí. 

O primeiro livro

Quase todas as notas biográficas, publicadas em jornais, revistas e livros ou disponíveis na net, referem as datas do nascimento (por sinal enganando-se sucessivamente: nasceu em 1936 e não em 1937!) e morte, as origens “aristocrático-burguesas”, a “saída de casa”, o “génio literário-artístico”, o êxito profissional, o sucesso mediático das suas letras para cantigas, o espírito truculento e inconformista, o passado antifascista, a homossexualidade, a militância comunista e o seu primeiro livro, Liturgia do Sangue.
Contudo, acontece que o seu primeiro livro não foi Liturgia do Sangue mas, sim, Asas, que foi publicado muito antes da Liturgia do Sangue[ii]; a sua militância comunista, muitíssimo repetida por muitos biógrafos (e protagonizada pelo próprio em numerosos comícios e sessões do PCP), é uma colaboração com o PCP mas sobre o qual há dúvidas de que tenha, algum dia, sido militante filiado no partido ou que, pelo menos, o tenha sido ininterruptamente[iii]; a sua “homossexualidade assumida” não era uma bandeira da sua vida mas até, nalgumas ocasiões, desabafada como uma fatalidade infeliz[iv]. Foi abundantemente bandeirada por outros. E terá sido a razão para que, durante um longo período – senão sempre – lhe tenha sido vedada a filiação no PCP[v]. Daí que, com estas contradições entre a verdade oficial e verdade autêntica de si próprio (se é que se pode falar de verdade autêntica de alguém que criou imensos cenários de verdade aparente) se possa inferir que a maioria dos retratos com que é apresentado carecem ainda de muita da mesma verdade.
O Zé Carlos tinha qualidades humanas para lá dos rótulos com que têm sido embrulhados o seu carácter e a sua personalidade. Qualidades onde perpassam sentimentos de solidariedade pelos outros. Sob a superfície, em que o vemos num permanente desfrute, oferecimento e conflito, como era a sua postura perante a sociedade e o mundo, como se estivesse constantemente perante uma plateia e a divertir-se com ela, sob a superfície, diga-se, havia uma serenidade insuspeita para muitos, em que a tal solidão imensa deixava um vazio medonho.
Ele tinha um terrível medo de estar sozinho. Medo que entrava em erupção terminal nos seus momentos de catarsis, normalmente com um derradeiro confidente no fim de noitadas ou de etapas de várias noitadas em que se misturavam o cansaço, o gin e o excesso. Um medo que lhe vinha desde o dia em que sentiu que tinham sido traídas as dedicatórias que tinha escrito no seu primeiro livro, Asas, já que, a partir de então, tentou, para o bem e para o mal, apagar esse livro e o seu significado, como se o criador quisesse fugir à criatura.
A sua vocação poética foi exibida quando era ainda muito novo e há testemunhos de, em S.Martinho do Porto, onde ia para a praia com o grupo familiar, declamar na “Rua dos Cafés”, inflamados versos a uma rapariga, menina-de-família, alvo da sua paixão[vi]. Que não terá sido a única. Foi nesta esteira que foram escritos os poemas de Asas e, provavelmente, muitos mais que terão ficado por publicar. Os versos deste primeiro livro tiveram e têm um mérito reconhecido e auguraram tudo de bom para si, com um acolhimento favorável nos círculos das suas amizades e fora deles.
Asas foi publicado em 1952[vii]. ZCAS tinha apenas 15 anos de idade. Dedicou o livro “À saudade de minha Mãe, os meus primeiros versos, que nasceram da infinita dor de a ter perdido. À presença de meu Pai, o meu primeiro livro pelo tanto que lhe quero e que lhe devo”.
Desde o primeiro verso do primeiro soneto “Dispo a tristeza inútil que me invade.” – que  é uma afirmação de um acto – que está ali o José Carlos de sempre. Não está parado (ele dificilmente conseguia estar parado), está a agir, a despir-se. De quê? Da tristeza – a tristeza que foi uma das suas fobias – e não de uma tristeza qualquer, não daquela tristeza poética, inspiradora da melancolia dos poetas, não! Da “tristeza inútil”. Uma tristeza que não servia para nada, a não ser para o pôr triste. E esse soneto termina com uma outra afirmação que profetiza o seu modo de encarar toda a vida: “Que todo o mundo é meu e eu vou partir à conquista dos reinos da poesia!”[viii]. É um imperativo, um projecto de futuro.
Ler Asas é ler o prefácio da vida de José Carlos, como se o resto da vida não fosse mais do que capítulos no seguimento desse prefácio, o executar, secreta empreitada!, de um caderno de encargos.
Está ali tudo sobre si, em Asas, como num caleidoscópio que lhe antecipasse a vida e a obra: “Homens famintos, ébrios de vingança; Crianças que se matam e se odeiam; A morte a amortalhar a esperança; Os pobres, os mendigos e os ladrões”[ix]. “Caminho? Eu sei lá qual é o Caminho! Talvez por uma estrada de impossíveis para o país longínquo dos meus sonhos!”[x]. O seu tom excessivo e rasgado, transgressor, a roçar o libertário, está já na inspiração dum poema intitulado, algo profeticamente, Libertação: “Rasgou minha alma um grito agudo/ De libertação./ E eu desdobrei as asas nos espaços,/ Sem peias, sem pudor e sem razão,/ Abrindo os braços,/ Como um irmão,/ Ao mar e ao céu!”.
Em Incógnita, há um expressar da consciência da dualidade dentro de si, talvez involuntário, talvez demasiado explícito para ter sido reflectido mas, por isso mesmo, autêntico e franco:  “Mais para além de mim/ Havia outro./ Um outro que não via,/ Nem falava.”...  Este outro acompanhou-o toda a vida, mudo mas nem por isso menos presente.
A figura da Mãe, a saudade da Mãe, que motiva a dedicatória desta primeira obra do autor, vai ser alvo de recorrentes versos que vão sendo escritos ao longo da vida. É como se, de vez em quando (para não dizer sempre) a presença (ou omnipresença) da Mãe fosse invocada em momentos de extrema necessidade de companhia e carência de ternura. De tal modo que, no derradeiro momento da vida, 32 anos depois de Asas, na solidão da casa, já no seu leito de morte, o seu pensamento vai para a Mãe uma vez mais e compõe um último soneto, talvez dos mais sentidos e belos que escreveu, que é, simultaneamente, o fechar de um ciclo, o retorno ao regaço, um desejo (desabafo, talvez) uterino de descanso: “Talvez que a tua voz que ainda me fala.../ ...o meu berço enfeitado a buganvília.../ Tenho tantas saudades, minha mãe!”[xi].  

Depois de Asas, o Zé Carlos sai de casa. E sai de casa, ao que tudo e todos indicam, em ruptura com o pai. Uma ruptura que terá sido dilacerante e dramática[xii]. A saída é, até, mais do que isso. É uma fuga, um pânico sem retorno. Sem transigências nem condições. Deu-se em 1953, tinha 16 anos. Embora isso não tivesse representado um voltar de costas a toda a família. Continuou a dar-se, nomeadamente, com as suas irmãs. Mudou-se para um quarto alugado na Rua do Alecrim, onde permaneceria durante anos, bem dentro do raio de acção protector da sua avó paterna, Maria Guilhermina de Pina Manique Pereira, que vivia na Travessa da Espera, a escassos trezentos metros, e a cujos jantares de clã comparecia.

Em 1954 alguns dos seus poemas já publicados foram incluídos na Antologia do Prémio Almeida Garrett. Este reconhecimento público viria a ser importante por um pormenor que se prende com a sua ruptura familiar e com um aspecto patente da sua personalidade: é que nada melhor para o seu amor-próprio, num momento de grande carência, do que sentir um apoio como foi esse – apesar do desdém com que muito mais tarde ignorou toda esta fase ou o “revisionismo” que sobre ela fez cair…

A mãezinha, a Tia Fernanda ou a génese do Tempo da Lenda das Amendoeiras

Um dia, em 1963, o Alexandre Ribeirinho, director do Teatro Universitário, apresentou José Carlos a Fernanda de Castro. A empatia entre os dois foi imediata e desde logo surgiu o tratamento de mãezinha e de Tia Fernanda que passou a adoptar para com a grande senhora: “24 horas depois de me ter conhecido queria que eu fosse a mãe que ele já não tinha”[xiii]. Esse primeiro encontro deu-se no Algarve, em Alporchinhos, onde a escritora e autora tinha casa. José Carlos declamou o seu poema dramático Azul Existe, que hoje está incrível e misteriosamente eclipsado. Mesmo o ZCAS poucas vezes o mencionava e não o incluiu, nem excertos, em qualquer uma das suas colectâneas ou antologias. Também não consta da sua obra postumamente publicada. Mas então, nesse encontro com Fernanda de Castro, foi o clic definitivo para um período fecundo. Uma roda de novas relações, de que fazia parte Natália Correia e muitos outros, abriu-lhe horizontes e possibilidades que vieram a ser mais alargadas ainda com a frequência dos serões em casa de Fernanda de Castro, na Calçada dos Caetanos, ao Bairro Alto.
José Carlos e o seu irmão Diogo fizeram parte da trupe e da plêiade que, sob a direcção de Fernanda de Castro, com a coordenação e montagem de Alexandre Ribeirinho, José Francisco Azevedo, Mário Cardoso Pereira, Jorge Cenáculo e Edith Arvelos, incluía Manuela Machado, Catarina Avelar, Norberto Barroca e Maria Germana Tânger, tendo-se constituído como Teatro de Câmara António Ferro!
Fernanda de Castro é reveladora, ao referir-se a um ensaio para um dos serões seguintes, em que Zé Carlos tinha de declamar uns versos dela: “Desfolha-se em badaladas/ o velho sino de bronze./ As senhoras abastadas/ vão sempre á missa das onze/ (D.Aurora de mantilha,/ D.Francisca de véu,/ D.Gertrudes e a filha,/ de luvas e de chapéu.)”(…). Ao vê-lo, Fernanda de Castro desatou a rir e a cena resultou indelével na sua memória: “Jamais poderei esquecer a cara, os gestos, os ademanes, os olhares marotos e o riso contagioso do José Carlos ao falar da D.Aurora de mantilha, da D.Francisca de véu, da D.Gertrudes e a filha de luvas e de chapéu. Contado isto não tem talvez graça nenhuma, mas quem conheceu o Zé Carlos, tinha então 24 anos[xiv], compreende perfeitamente o que eu quero dizer e o efeito hilariante da sua recitação”[xv].
O próximo espectáculo deste Teatro de Câmara António Ferro já não pôde ser na Calçada dos Caetanos por falta de espaço, embora aí tenham decorrido numerosas sessões de ensaio, a que assistia um público variado e interessado de intelectuais e artistas. Foi realizado no Tivoli.
É importante notar que este, como o anterior e os seguintes, sendo espectáculos de poesia em que o mote era dado por Fernanda de Castro, muito terão influído em muitos dos vincos da obra, tanto no campo puramente poético como no campo das letras para canções, de José Carlos. Repare-se neste poema: “Se os poetas dessem as mãos/ e fechassem o Mundo/ no grande abraço da Poesia,/ cairiam as grades das prisões/ que nos tolhem os passos,/ os arames farpados/ que nos rasgam os sonhos,/ os muros de silêncio,/ as muralhas da cólera e do ódio,/ as barreiras do medo,/ e o dia, como um pássaro liberto,/ desdobraria enfim as asas/ sobre a noite dos Homens./ Se os Poetas dessem as mãos/ e fechassem o Mundo/ no grande abraço da Poesia.”. Trata-se de um poema de… Fernanda de Castro![xvi]
Difícil será não reconhecer, nos versos de José Carlos Ary dos Santos, muitas ressonâncias recorrentes destes mesmos versos. Neste Teatro de Câmara, no seu segundo espectáculo, o poema dramático Azul Existe foi encenado por Pedro d’Orey e foram seus intérpretes Heloísa Cid, Águeda Sena, Rogério Ferreira, Vasco Wallenkampf, Alexandre Ribeirinho e o próprio José Carlos Ary dos Santos, com a Edith Arvelos a ter a seu cargo os efeitos musicais.[xvii]
Houve ainda mais dois espectáculos deste Teatro de Câmara António Ferro, em Junho de 1964, e da trupe chegou a fazer parte Eládio Clímaco.
Seguiu-se o I Festival do Algarve, Verão de 1964. Foi um momento a desabrochar em esplendor para o José Carlos. O contacto com o exotismo, Larbi Jacoubi e os príncipes Ouazani, a comunhão vivida com os participantes e actores, a proximidade ganha com Amália Rodrigues. Sobretudo, a consagração do seu poema Tempo da Lenda das Amendoeiras, apresentado pela primeira vez no Castelo de Silves em 12 de Agosto, dedicado a Fernanda de Castro, que iria ainda editar nesse mesmo ano como edição de autor, impresso em Lisboa, na Tipografia Americana. 
No ano seguinte, acontece o II Festival do Algarve. Fados, folclore, poesia popular e erudita. Mais uma vez o Tempo da Lenda das Amendoeiras, dedicado a Fernanda de Castro. Este poema transforma-se num trampolim oportuno, até então a obra de maior fôlego de José Carlos Ary dos Santos.
A partir daí e até ao fim da vida manteve-se a amizade e, mesmo, cumplicidade, entre os dois escritores.
O suicídio do Diogo, seu irmão, em 11 de Março de 1965, tinha 21 anos, foi um momento de débacle.[xviii] ZCAS tinha-lhe dedicado “A Liturgia do Sangue”. Acompanhavam-se em trabalho e em noitadas, Diogo tinha participado também no Teatro de Câmara António Ferro. Irmão solidário e irmão-cúmplice, este desgosto ficar-lhe-ia indelével. Foi uma sombra, feita de profundo remorso e auto culpabilização, que nunca mais havia de o abandonar na vida. E que, sempre que pegava num gin, de algum modo evocava. Sigamos Fernanda de Castro: “O José Carlos Ary dos Santos era um amigo tão íntimo da casa que, durante certos períodos, como por exemplo o do Teatro de Câmara António Ferro, que ele viu nascer na década de 60, e mais tarde nos dois períodos que antecederam os dois Festivais do Algarve, foi um dos meus mais eficientes colaboradores, chegando a passar alguns meses na minha casa de Alporchinhos com o meu irmão Francisco, a Inês Guerreiro e a Edith Arvelos, a equipa que tão entusiasticamente me ajudou a levar a cabo estes empreendimentos.”
“Foi um colaborador precioso, honestíssimo trabalhador e ainda por cima alegre, entusiasta e cheio de força criadora. Era um bonito rapaz, afectuoso, que me dizia muitas vezes:
- Depois da morte do Diogo, a Tia Fernanda é a pessoa de quem eu mais gosto no mundo.”
“Nessa altura ainda o José Carlos não bebia, ou, pelo menos, bebia normalmente, como qualquer rapaz. Creio que foi o enorme desgosto que teve com a morte do irmão que o levou ao desespero, começando assim, sem talvez se aperceber, a vida dolorosa, triste e, sobretudo, estúpida que pouco a pouco inutilizou, deturpou ou corrompeu o que nele havia de melhor e era muito, muitíssimo”[xix].
Para ilustrar este “nele havia de melhor”, Fernanda de Castro cita dois exemplos reveladores. O de uma velhinha sem abrigo a quem ele encontrou e a quem durante anos vestiu e pagou um quarto e comida e o de que, todos os anos, no aniversário de uma sua senhoria de quarto, a vestia como uma dama, levava a jantar e ao teatro. Questionado por Fernanda sobre esta sua atitude, respondeu: “Porque cada vez que eu tinha gripe ou anginas ela punha-me papas de linhaça e levava-me chá de limão à cama.”
- Só por isso? – perguntou Fernanda.
- Só?! Se soubesse como é importante, quando se vive sozinho, um chazinho de limão, uma conversinha amiga, um cobertor suplementar!...”
“Este era o Zé Carlos verdadeiro, o que me fez perdoar-lhe, durante anos, o gin, as palavras irreverentes, os extremismos, a incoerência de muitas das suas atitudes. Não se passava uma semana sem me convidar para jantar. (…).[xx] 

1969 ou o charco da pedrada

Para muitos e para o próprio, 1969 foi um ano fulcral. Não o foi por acaso, inserido na vida do país e com a efervescência que quase todos os sectores então atravessavam, na aurora da Primavera marcelista. A sua aura de poeta tinha vindo sempre em ascensão e o seu nome era assumido em quase todos os círculos da capital. Mesmo no fim do ano anterior, um serão em casa de Amália Rodrigues tinha-o juntado com Vinicius de Moraes, Natália Correia, David Mourão-Ferreira, Alain Oulman e Hugo Ribeiro, tendo sido feito e editado um disco de vinil com as poesias, fados e guitarradas dessa noitada que ficava como uma antevisão do frenesi de 1969.
Foi o ano da militância política na CDE, Comissão Democrática Eleitoral, e o ano da vitória da Desfolhada no Festival RTP da Canção. Este último facto foi importantíssimo e decisivo. Experimentou uma euforia que lhe demoraria anos a passar, um certo sentir-se ébrio com a projecção e, até, o poder, que, de repente, lhe deu esse triunfo. Parecia que todas as facetas da sua vida lhe estavam a sorrir. Na poesia, na publicidade, na política. A sua criatividade e produção estavam num expoente[xxi]. Mas nem por isso se libertava de uma persistente ingenuidade, duma certa deriva que toda esta euforia lhe veio fazer, ofuscando o sentido de profundidade. Natália Correia notou-o bem e passou a ter para com José Carlos uma pendência de diferença de pontos de vista que duraria toda a vida – mas sem pôr em causa a amizade entre os dois, assanhadíssimos a discutir em numerosas ocasiões!... Para Natália Correia, o poeta estava a sacrificar a poesia, calcada sob o género mais superficial das canções[xxii]. Contudo, se não tivesse sido a projecção que lhe foi dada pela “Desfolhada” e toda a fase vertiginosa que iria viver a par da fama de Simone de Oliveira e do grupo “dos festivais”, dificilmente a sua vida teria sido como foi. Nunca seria como foi.

A revolução ou o fim da qualidade

Com o golpe do 25 de Abril e no período revolucionário que se lhe seguiu, Zé Carlos enveredou decididamente pela militância política e abandonou, ou pelo menos arrefeceu, algumas das suas anteriores amizades. Foi o caso de Fernanda de Castro, com quem, apesar de tudo, haveria de fazer uma reconciliação já na década de 80, e ainda o de Amália Rodrigues, que desabafa: “(...) Dávamo-nos muito bem os dois. De repente, dá-se o 25 de Abril e nunca mais aparece. Telefonou umas três vêzes a perguntar se eu precisava de alguma coisa. Mais nada. Fiquei um bocado zangada com ele. Era um amigo de todas as noites, de uma convivência quotidiana, não tinha nenhuma razão para ter aquela atitude.”[xxiii]
Surpreendentemente ou talvez não, durante o Prec e depois dele manteve a mesma postura elitista do seu modo de vida, sapatos de marca italiana, camisa e fatos de seda, a ponto de um dia ter sido interpelado por um camarada de partido que lhe reprovava o traje e a sua casa burguesa e a quem terá respondido que “o meu comunismo vem-me por via Czarista”![xxiv]
Certa vez, Fernanda de Castro questionou-o sobre a sua razão de ser comunista. A resposta pronta teve como contraponto da escritora que o que ele tinha era um fundo cristão e que aquele “comunismo” já tinha uma idade de dois mil anos e chamava-se cristianismo...
De facto, apesar do show off, da militância e das suas proclamações veementes, José Carlos não esconde, na sua poesia, nas suas letras de canções e nos seus gestos de solidariedade para com o próximo, um sentido espiritual, na concepção, e de amor, na concretização, de que nunca se afastou – ou de que nunca se quis separar.
Num dos últimos sonetos que escreveu, “Poesia-Orgasmo”, há um verso revelador: “que transporte do humano ao infinito”, e também no “Soneto de Inês” há “amor que torna os homens imortais”[xxv]. Ora, o infinito e a imortalidade escapam ao cânone do materialismo dialéctico marxista...
José Carlos Ary dos Santos nasceu em Dezembro e morreu em Janeiro. Foi como se tivesse escolhido um ano velho para aparecer e um ano novo para desaparecer. “Escolhido” está mal dito. Porque o Ary raramente terá escolhido fosse o que fosse de decisivo ao longo da sua vida. Alguma vez os poetas escolhem seja o que for? Não são, antes, eles os escolhidos pela vida, pela sorte, pelas musas, pelo génio, para nos verter em palavras traduzidas o que a nossa vida nos põe à frente e nós, tantas vezes, não vemos?

Uma forma de fim

Não houve inocência na vida do Zé Carlos. Nem houve inocentes na vida do Zé Carlos. Parece-me que esta poderá ser a característica mais marcante que fica deste pequeno esboço sobre o poeta e o homem, uma primeira aproximação sobre poder haver “um outro olhar sobre a vida de José Carlos Ary dos Santos”. Como se pudesse ter havido um fenómeno de contágio de uma não-inocência. Ele, aliás, convidou a isso com o célebre “falem de mim, bem ou mal, mas falem!” repetidas vezes proferido. Não admitia uma atitude neutra, uma atitude tolerante. Este estado de espírito fê-lo antecipar a ideia e a encenação da sua morte. Morte, aqui, em sentido literal, com toda a coreografia imaginada e desejada como algo de fantástico e teatral. Chegou a confidenciar a ideia de que o seu enterro fosse marcante pelo espectacular. Mas com o fim da sua vida, que não chegou serenamente com uma velhice madura mas de modo súbito com a mesma violência com que ele passou pela vida – a começar pelas violências sobre si próprio –, algumas atitudes e frases, alguns versos e gestos de quem está para abandonar um palco, fazem pensar ou, pelo menos, deixam espaço para isso, que pela Rua da Saudade passava uma aragem de verdadeira saudade da inocência perdida.
Quando?
É uma pena não ter ficado terminada, ou em vias disso, a autobiografia romanceada em que trabalhava, “Da Estrada da Luz à Rua da Saudade”. A morte que se lhe fizera anunciar como uma presença solitária num período em que alguns dos seus mais chegados o abandonavam, não lhe deu tempo a concluir os projectos que já sabia serem os últimos. Contudo, ironia de poeta, havia de morrer precisamente nessa Rua da Saudade a viver da saudade. Forma de morrer tão portuguesa! E não de uma saudade qualquer. Nem da saudade da cidade que amava, nem saudade do país que tratava com uma certa distância: “Será possível que depois de Abril/ ainda adormeçamos acordados/ neste país-raiz de sofrimento?”[xxvi]. Não.
A sua vida acaba depois de voltar à infância, com muitas saudades:
"Tenho tantas saudades, minha mãe!" [xxvii].
Pois tinha.


Notas


 José Carlos Ary dos Santos, Infância,VIII sonetos, in Obra Poética. Edições Avante!, 1994
[ii] A fotobiografia, que sobre José Carlos Ary dos Santos foi escrita e elaborada por Alberto Benfeita –Alberto  Benfeita, Ary dos Santos, o Homem, o Poeta, o Publicitário, Fotobiografia. Editorial Caminho, Lisboa, 2003. – vai  um pouco mais longe e é um livro bem estruturado e com episódios, fotos e documentos importantes e reveladores. Faz referência ao Asas, embora omita completamente alguns  períodos e factos importantes da vida de José Carlos Ary dos Santos. Citando o autor a partir de uma entrevista, nela é referida a desvalorização que ZCAS fazia, a posteriori, deste seu primeiro livro e da poesia nele versada. Seria por causa da dedicatória ao pai que o abria? Seria o querer apagar, ao seu jeito iconoclasta, toda e qualquer imagem do pai da sua memória?
[iii] Provavelmente, o Zé Carlos terá sido filiado episodicamente no PCP em 1969 e posteriormente expulso. Eduardo Pitta, Blog da Literatura, na entrada “Ary dos Santos”, publicada também em livro, Intriga de Família, Edições Quasi, Lisboa, 2005, afirma mesmo que ZCAS nunca foi militante filiado do PCP por oposição da direcção deste partido, avesso a homossexuais, e apenas terá sido inscrito no MDP-CDE. Durante um determinado período, soube-se no inner circle do poeta que não estava inscrito no partido. A sua colaboração era equivalente à de um compagnon de route e foi mais a seguir ao 25 de Abril que a sua colagem ao PCP foi pública e notória. Nas pessoas ficou a ideia de declarações públicas do desejo do poeta, feitas pelo próprio “de ser comunista” e da vontade de “ser do partido comunista”, sendo que nenhuma das quais atesta a sua efectiva filiação. É evidente que agora, a posteriori, ainda por cima tendo sido herdeiro de ZCAS, o PCP terá todas as razões para afirmar algo diferente.
[iv] “(...)A única coisa que me falta é um filho, mas tal como sou, acho que não teria sido um pai suficientemente atencioso e não poderia dedicar ao meu filho toda a atenção necessária”, Jorge Figueiredo , “Ary dos Santos – Assumir a solidão acompanhado”, Revista Gente, 11-1-1984, citada por Alberto Benfeita in obra citada, pág. 115.
v] Segundo Zita Seabra, in Foi Assim, Editora Aletheia, Lisboa, 2007, pág. 35, terá sido com o pretexto da homossexualidade que Júlio Fogaça, “principal teórico e dirigente do Partido” foi suspenso e expulso do PCP. Não cremos que tenha sido aberta uma excepção para ZCAS, a menos que tenha havido um especial acordo para o facto e mesmo este só tardiamente, após o 25 de Abril, dado que o poeta veio a fazer testamento da quase totalidade dos seus bens ao partido. Uma outra hipótese é a de ZCAS ter sido encarado como um dos “desvios de direita do PCP”, dados os seus antecedentes familiares e a sua postura social.
[vi] Chamava-se Lisa.
[vii] O livro foi impresso “nas oficinas da Sociedade Industrial Castor, Lda.” com um prefácio de Ramiro Guedes de Campos. in José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética, Edições Avante!, 1994, sendo que nesta edição as poesias de Asas estão relegadas para o fim, fora da ordem cronológica, e escritas num tipo mais pequeno de letra!...
[viii] Conquista, Asas, in Obra Poética.
[ix] Poema sem Nome, Asas, in Obra Poética.
[x] Escuridão, Asas, in Obra Poética.
[xi] Infância, VIII sonetos, in Obra Poética. Segundo a nota de Francisco Melo da página 392 desta edição, citando Manuel Gusmão, este soneto poderá ter sido escrito precisamente no dia da morte de Zé Carlos.
[xii] “Que a terra lhe seja pesada./ Que lhe apodreça o corpo e os olhos fiquem vivos, ...”, In Memoriam, A Liturgia do Sangue, in Obra Poética.
[xiii] Fernanda de Castro, in Ao Fim da Memória, II Volume, pág. 184, Ed. Verbo, Lisboa, Abril de 1988.
[xiv] Na verdade tinha 27 anos dado que este episódio se passou em 1963 mas o José Carlos foi quase sempre muito ilusivo quanto à sua idade…
[xv] Fernanda de Castro, obra citada, págs. 209 e 210.
[xvi] Fernanda de Castro, obra citada, pág. 211.[xvii] Fernanda de Castro, obra citada, pág. 212.
[xviii] Ocorrida em casa de família na Travessa da Espera, 8, 3ºandar, em Lisboa.
[xix] Fernanda de Castro, obra citada, págs. 310 e 311.
[xx] Ibidem, pág. 312.
[xxi] Foi nesta época que terá aparecido na televisão a célebre frase de segundo sentido “Pescadinhas de todos os mares, uni-vos!”, um paralelismo irónico com o lema parafraseado de Marx, “Proletários de todos os países, uni-vos!”. Segundo Zita Seabra, in Foi Assim, Editora Aletheia, Lisboa, 2007, pág. 22. Contudo, esta versão inicial de Zita Seabra terá sido posteriormente e pela própria tornada mais exacta, tal como me foi transmitido pela minha amiga Drª. Isabel Lopes: «E, já agora, a tal frase célebre, a Zita Seabra cita-a mal, já o reconheceu numa entrevista; era assim: «Peixes de todos os mares, congelai-vos»; inspirada em «proletários de todos os países, uni-vos», e foi utilizada numa campanha para divulgar as vantagens do peixe congelado, indústria que as frotas pesqueiras do Henrique Tenreiro começavam a explorar, e a graça da história era essa! ».
[xxii] Natália Correia tinha incluído poemas de José Carlos na sua Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, editada no Rio de Janeiro em 1965. Defendeu esta inclusão em numerosas ocasiões e foruns. Sentiu-se algo traída quando posteriormente assistiu à cedência do escritor perante a facilidade comercial da poesia das letras para canções e mesmo de alguma “poesia militante” que considerou menor e algo indigna do vate. Ficaram célebres as discussões entre os dois, nomeadamente as provocadas pelo José Carlos, que não perdia a oportunidade de uma provocação e de um protagonismo do género. Tal como sucedeu no Casino de Afife, num recital, e em muitos outros momentos. Natália Correia havia de dizer um dia “(...).Confesso que fui excessivamente dura com ele quando o vi desviar-se do caminho que então considerei a via nobre da sua poesia e que continuo a assinalar no seu livro Adereços, Endereços, para enveredar por aquilo que na altura lhe verberei como publicismo poético”.(...), in Natália Correia, “Ary: um poeta da comoção até ao grito”, Jornal de Letras, 24-1-1984.
[xxiii] Vítor Pavão dos Santos, Amália. Uma Biografia. Lisboa, contexto, 1987.
[xxiv] Este episódio é referido com o mesmo sentido mas contado de maneira um pouco diferente por Benfeita, obra citada, pág. 114.
[xxv] Vide VIII sonetos, in Obra Poética, já citada.
[xxvi] Insónia, in VIII sonetos, in Obra Poética, já citada.
[xxvii] José Carlos Ary dos Santos, Infância,VIII sonetos, in Obra Poética. Edições Avante!, 1994

 

«Elegia à Fernanda de Castro» 

Fiquei feliz por saber da existência de uma página na Net sobre Fernanda de Castro. Ela mais que merece.
Fui, provavelmente, o primeiro e o único africano a privar-se intensamente com Fernanda de Castro pouco tempo antes da sua morte, numa altura em que ainda concluía a licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa.

Vale talvez a pena que aqui recorde as circunstâncias em que travei conhecimento com Fernanda de Castro: corria o ano de 1985 e já tinha eu decidido encetar um profundo estudo sobre a imagem do Negro na literatura colonial portuguesa, durante o Estado Novo. Leituras aqui, contactos acolá, facilitadas ou recomendadas pelo meu sempre mestre, Prof. João Medina, permitiram-me que tivesse aguçado a curiosidade de conhecer alguns literatos coloniais ainda vivos na altura.

Assim, esses contactos proporcionavam-se-me, cada vez mais, a oportunidades de privar com literatos coloniais vivos. Da longa lista, efectivamente, figurava a incontornável Fernanda de Castro. Conheci-a, efectivamente, em Lisboa, pela mão de uma das suas melhores amigas, no caso, a portentosa escritora Maria Graça Freire (irmã de Natércia Freire), tal como, de resto, o era também a Fernanda de Castro.

Quando se vislumbrou pois a possibilidade de a entrevistar, já sabia, de antemão, que iria estar na presença de uma nonagenária, acamada, mas uma mulher de fibra e com uma extraordinária força interior. Aprazado o dia e a hora, não sem antes me munir de um sugestivo arranjo floral para a oferecer, lá me pus a caminho das imediações do Bairro Alto, onde então vivia Fernanda de Castro. A ansiedade e as expectativas eram mais que muitas, pelo que já no elevador da Glória, imaginava de mil maneiras a figura da escritora, pois as fotografias que dela vira, até então, datavam já de umas valentes décadas.

Quando cheguei a casa de Fernanda de Castro e conduzido depois à sua presença, tornou-se visível para todos os presentes (cerca de quatro ou cinco pessoas) a minha emoção, mas igualmente a alegria contagiante de Fernanda de Castro que, ao ver-me, cumprimentou-me efusivamente, remexendo-se, inclusivamente, da cama, como se dela quisesse erguer-se para me abraçar.
Ainda me lembro das palavras que seguiram à minha calorosa recepção:

- Sabe, Leopoldo, é com enorme prazer que lhe recebo em minha casa. É pena ter de o fazer acamada, mas espero que, por tanto, não se estranhe e que possamos conversar, pelo menos o suficiente. Sabe, estou ultimamente a escrever um último livro que talvez se intitule “Memórias In Extremis”, aliás, é isso que estava justamente a fazer, antes da sua chegada, ditando as coisas a esta minha sobrinha que vai escrevendo o que a digo, pois já não dá para ser eu própria a escrever.

- Mas quero que aqui se sinta à-vontade e que saiba que a Guiné, pelas recordações que possuo das suas gentes, pelo cheiro da terra e por muito mais, está no meu coração, e que a levarei para a minha última morada, pois lá repousa eternamente a minha mãe, que foi lá enterrada.

Enquanto devolvia com palavras simpáticas a calorosa e afectuosa recepção de que fui alvo, Fernanda de Castro prosseguia:

- Sabe, Leopoldo, a sua presença traz-me, profusamente, recordações da minha rica adolescência, vivida em parte na Guiné, em Bolama, onde meu pai chegou de servir como capitão dos portos. E digo-lho, convictamente, que éramos mais fortes. A nossa mística, sabe, ainda há-de consumar-se, pois acredito piamente no mito de um Portugal imperial e no Quinto Império, algo que seja capaz de nos irmanar na fé, na igualdade, na justiça e na crença de um mundo melhor, sem que para isso tenhamos que olhar para a cor da pele ou para a condição social da pessoa humana. É isso, aliás, que procurei plasmar nos três ou quatro livros que escrevi sobre a Guiné e sobre a África.

- O Leopoldo devia ler o meu grande poema intitulado “África Raiz” de que, aliás, lhe vou oferecer um exemplar autografado. Em boa verdade, Leopoldo, África marcou-me profundamente. Leia “O Veneno do Sol” e o “Aventuras de Mariazinha em África” ou o “Mariazinha em África”, livros meus que foram até hoje dos mais vendidos em Portugal, com tantas edições – talvez duas dezenas ou mais – já não consigo lembrar ao certo quantas.

- Sabe, Leopoldo, os dois últimos livros, “Aventuras de Mariazinha em África” e o “Mariazinha em África” são autobiográficos. Procurei neles narrar a inolvidável experiência que a África, a minha África mística, provocou em Mariazinha, de resto, personagem central a quem literariamente emprestei a minha experiência.

Aliás, outros personagens, como o Vicente, também eram reais. O Vicente acabou por vir para Portugal connosco e aqui veio até veio a ser campeão de atletismo e acabou mesmo por se casar com uma portuguesa, de quem teve dois filhos.

Porém, nas semanas e meses que se seguiram, foram de intermitentes mas intensos contactos entre mim e a Fernanda de Castro, resultando tudo numa grande entrevista que a própria fez questão de caucionar e que, pela sua valia e importância, sobretudo pela sua profundidade, darei um dia desses a conhecer ao grande público.

Efectivamente, sobre Fernanda de Castro e a sua produção literária, sobretudo àquela que mais directamente diz respeito à Guiné, muto escrevi, quer em revistas científicas, quer em jornais, aqui e acolá. Fi-lo pela necessidade de dar a conhecer esta grandiloquente escritora que, um dia ou anos, que sejam, tal como Castro Soromenho o fez em relação a Angola, logrou narrar a Guiné com uma extraordinária mundividência e lucidez literárias que, não obstante ter feito recurso a um discurso oficial ou oficioso e ainda ter abordado uma realidade social matizada pela colonização – curiosamente –, os discursos ontológicos, neles subjacentes, não raras vezes, raiam os limites de um humanismo universal e mesmo universalista.

Talvez não fosse despiciendo, antes pelo contrário, a reedição na/para a Guiné de algumas obras de escritora sobre a Guiné, as quais podiam ser lançadas, quiçá, em Bolama, de resto, ilha onde repousa os restos mortais da mãe escritora e, igualmente, torrão que acolheu Fernanda de Castro e que, afinal, inspirou a componente africana da sua abundante e profícua produção literária.

Seria, sem dúvida - afora as politiquices – uma forma sublime e altruísta de, merecidamente, homenagear alguém que, no Mundo lusófono, quer se queira quer não, escreveu das mais belas páginas literárias sobre a Guiné e sobre a África.


Leopoldo Amado
Agosto de 2010.