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Mafalda Ferro
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NO CAMINHO DE ANTÓNIO QUADROS

O
pensamento de António Quadros – original, autêntico e inédito, não alinhado com os ismos dominantes e filosoficamente correctos da sua e da nossa época - continuará a inspirar os poucos que ainda teimam em percorrer caminhos não calcorreados, pensar ideias ainda não admitidas, propor hipóteses de estudo ainda não propostas. O que os clássicos talvez tivessem chamado «maiêutica».

Ligar, uma a uma, as peças do puzzle universal, numa criatividade constante, não é para qualquer um e quem o quiser tentar precisa de boas ajudas: Quadros, Etienne e Agostinho são uma boa ajuda para o aprendiz de filósofo até 2013. E logo a seguir, Fernando Pessoa, mas esse está sempre na encruzilhada de todos os caminhos.
Lisboa, quinta-feira, 17 de Junho de 2010

I
3 PENSADORES DA UTOPIA 2013: ANTÓNIO QUADROS, ETIENNE GUILLÉ E AGOSTINHO DA SILVA
Vamos encontrar no pensamento de António Quadros (1986, «Portugal Razão e Mistério») o léxico que viria a ser sistematizado pela Gnose Vibratória de Etienne Guillé, desde 1983.

Arquétipo, Mito, Idade de Ouro, Atlântida, Legado megalítico, Hierofantes egípcios, Ideogramas, Hieróglifos, Morte Iniciática são apenas alguns bons exemplos.

Cada um à sua maneira e partindo de pressupostos necessariamente diferentes, estes dois autores – António Quadros e Etienne Guillé - convergem no mesmo objectivo principal : libertar a Razão do racionalismo, libertar Deus das religiões, libertar o Verbo da Babel das línguas, libertar a Essência de todos os acessórios que a limitam e desvirtuam, libertar os Arquétipos da tirania dos estereótipos, enfim, libertar a livre liberdade de filosofar do discurso único do filosoficamente correcto.

António Quadros e Etienne são, cada um na sua época, cada um no seu contexto cultural, cada um no seu campo de visão, pensamentos libertadores: que, ocasionalmente e desconhecendo-se um ao outro, coincidem.
Não esqueçamos, afinal, que les «beaux esprits se rencontrent».
A sincronia que um e outro defendem – e que ambos citam de Carl Gustav Jung – funciona aí e assim como um relógio de precisão.
Não será pela matemática mas pela inteligência que a filosofia se torna uma ciência de rigor.
«Ciência sem Consciência é ruína da Alma» : eis um postulado, atribuído ora a Francis Bacon ora a Rabelais, que resume a determinante destes dois pensadores contemporâneos mas contemporâneos no melhor e mais profundo sentido: coetaneos, contemporâneos e coeternos como diria genialmente o genial Agostinho da Silva, ao falar das 3 idades: Pai, Filho e Espírito Santo.
Não só porque viveram parcialmente no mesmo tempo cronológico mas porque viveram, pela intuição, por um apurado sexto sentido, por uma incessante e compulsiva criatividade, o mesmo tempo de consciência cósmica: e de novo nos surge a palavra «sincronia» que é uma sintonia à escala macrocósmica.
Atlantes e Atlântida, que a maior parte dos arqueólogos coloca na categoria dos mitos, são um ponto comum aos nossos dois investigadores: como não podia deixar de ser, diga-se de passagem.
Não só porque «les beaux esprits se rencontrent» mas porque há um ponto central no infinito e todos os que nos falam do infinito neste espaço finito, e da eternidade na nossa efemeridade, lá se encontram, tarde ou cedo. Mais cedo que tarde, à medida que o tempo acelera na contagem decrescente para o 21.12.2012.

Além do mais que poderá ter sido (continente, cultura, povo, fábula, utopia ou  História contada por Platão nos diálogos Timeu e Crítias) a Atlântida é, para Etienne Guillé, um sistema de memórias que estão no nosso ADN molecular, um nível de informação que podemos descodificar, uma frequência vibratória que traduz um nível de consciência que, através dos milénios, se foi perdendo : por razões cósmicas e astronómicas, diga-se, como um bom alibi para a espécie humana. É o  que a Bíblia nomeia com o nome de Queda e que Etienne Guillé situa 41 mil anos atrás da Era Cristã (Era zodiacal de Peixes, sublinhe-se).

Quase tudo, nesta Queda, nesta Decadência, é imputado no discurso moderno à malvadez da humanidade: mas os pontos altos e baixos dos humanos ou humanóides são resultantes da conjuntura cósmica ou, mais precisamente, da Era zodiacal.
Este pressuposto – o do ano cósmico, 25.920 anos «normais» segundo a estimativa mais fiável que conhecemos – está implícito nos nossos dois pensadores e, por vezes (mas raramente) se explicita, porque o modernismo das modas trouxe mais uma contrafacção que colocou a Sabedoria dos ciclos (ciclosofia) no limbo das iniquidades: que um intelectual deve rejeitar, se quer dignificar o nome e a classe ou elite a que pertence.

Refiro-me, evidentemente, ao equívoco da Astrologia kármica, que teve artes de reduzir ao horóscopo de 12 meses a sabedoria universal das 12 Eras zodiacais que nos foi legada pelas cosmogonias das grandes culturas da Terra: basta citar os taoístas, os hierofantes egípcios e os sacerdotes mayas (grandes astrónomos, diga-se de passagem).

Essas as fontes a que, na linha de Quadros e Etienne, deveremos recorrer cada vez com maior frequência, para saber de onde sopra o vento e qual é o rumo da viagem no caminho da Utopia, da 2ª Idade de Ouro, do Milagre.
Elas são a bússola que nos orientará no redemoinho do nosso tempo-e-mundo. Como todos reconhecem, caímos no fundo do fundo e não haverá saída sem a ajuda de um «guindaste» de grande potência.
A palavra Espírito será a que melhor se perfila para baptizar esse guindaste.
A Noologia ou Noosofia de Etienne é o estudo metódico e prático da Energia Espírito (a 3ª Idade de Joaquim de Fiore ou do Espírito Santo?).
Consideramos um desperdício não aproveitar esse método que o destino nos coloca de bandeja para individual e colectivamente superarmos o Inferno em que estamos.

Curiosamente, nem um nem outro dos nossos dois amigos, coloca explicitamente a premissa de uma contagem decrescente até 21.12.2012, cabo das Tormentas a transmutar em cabo da Boa Esperança.
Mas, implícita, ela está lá, quando ambos deixam no ar a necessidade de uma utopia. Ou seja: a situação deste tempo-e-mundo é de tal modo caótica e um buraco sem saída que só o impossível – um «milagre»?, uma «utopia»?– nos poderá individual e colectivamente salvar.
Como «milagre» continuará a ser palavra tabu entre as elites intelectuais do cientifismo racional positivista e enquanto o milagre não se tornar rotina quotidiana, vamos socorrer-nos do 3º filósofo da nossa Esperança: Agostinho da Silva.
Em linguagem simples, com palavras de toda a gente, ele vai traçando o roteiro para o caminho que leva ao impossível.
Teremos que dar um pouco mais de atenção ao que se está passando, portanto, através de poderosas iniciativas e movimentos inspirados por Agostinho, outro agitador de almas e construtor de mundos.
A mais recente dádiva que podemos e devemos agradecer já em 2010 é a revista «Cultura entre Culturas», dirigida por Paulo Borges, esse outro criador de mundos.

Será mais um impulso para – digamos – banalizar o milagre.
A construção do próximo futuro (do progresso) faz-se pelo regresso às fontes da Sabedoria: mais um ponto comum e coincidente aos 4 pensadores.
Para qualquer deles, «aprender é recordar», confirmando um outro postulado que o racionalismo e o positivismo e o cientifismo proibiram: «Somos um Espírito que tem um corpo e não um corpo que tem um espírito».
Este dizer, atribuído a Teilhard de Chardin, deixou de ter dono: as ideias, quando traduzem arquétipos da sabedoria universal deixam de ter dono e copyright.

A HIPÓTESE DE JOHN MICHELL: A SEGUNDA IDADE DE OURO

Ao postular a Utopia para 2013, podemos falar com todo o à-vontade de uma próxima Idade de Ouro, seguindo a hipótese de John Michell: a ele se deve uma viragem de 180 graus na abordagem até agora admitida de uma mítica Idade de Ouro.
Com a Atlântida e principalmente com a Lemúria teríamos vivido, de facto, uma Idade de Ouro: depois, tudo aquilo a que se chama progresso e que a Arqueologia oficial – totalmente dominada pelo darwinismo - tem reproduzido até à náusea foi apenas uma Decadência. Um dos lugares comuns da Arqueologia académica (e do darwinismo totalitário) é de que a «civilização» nasceu mais ou menos 4.000 a. C.
O que de facto se passou (e passa) e John Michell mostra é que existe hoje não uma única espécie humana mas duas: a dos que chamam progresso à Decadência e a dos que chamam Decadência à Decadência, onde fica implícita a próxima ou segunda Idade de Ouro. A Utopia conforme Agostinho da Silva a descreve, nomeadamente quando fala nas 3 Idades segundo Joaquim de Fiore.
E como o aprendiz de filósofo a formula e lega às gerações futuras.
Muito menos conhecido e popularizado do que Erich Von Daniken, o nome do britânico John Michell é uma referência incontornável na filosofia OVNI e nem só.
A sua tese sobre a evolução darwiniana virou do avesso todas as ideias estabelecidas.
Ele demonstra por A+B que viemos de uma primeira Idade de Ouro, rigorosa e meticulosamente situada na Atlântida, que por sua vez a herdou da Lemúria (Pátria de todas as Pátrias) e desde aí a decadência a que chamamos infantilmente progresso nunca mais parou.
Quem está a ver a fita ao contrário são os que ainda acreditam na ideia darwiniana de evolução e no progresso que o darwinismo adoptou como padrão para todas as patifarias e todos os cometimentos modernos.

II
FERNANDO PESSOA ENTRA NA LISTA DOS PRECURSORES

Se não fosse Fernando Pessoa e o estudo comprovativo que António Quadros lhe consagra, ainda hoje seriam tabu, entre a elite intelectual do Establishment, muitas das palavras do léxico tradicional, nomeadamente do léxico alquímico, o mais sedutor mas, convenhamos, o mais equívoco.
Arrumada esta temática no saco sem fundo da malfadada New Age e do titereteiro «esoterismo», ou do não menos patético «ocultismo», como se não fizesse parte da cultura oficial, Fernando Pessoa conseguiu tirá-la de lá e ajudou toda uma geração de intelectuais a falar sem se envergonhar, sem pre-conceitos, sem pressupostos nem estereótipos, de coisas tais como: fases alquímicas, conhecimento iniciático, graus hierárquicos de iniciação, sociedades secretas, teósofos e teosofia, filosofia hermética, adeptos, etc.
Cantonadas no gueto onde o pensamento filosoficamente correcto as metera, as correntes e escolas que se dedicaram a importar dos Orientes o discurso dito «esotérico» ficaram desde logo desbloqueadas; mais uma vez devemos a Fernando Pessoa ter quebrado o bloqueio criado à volta de coisas tais como: Sociedade Teosófica, Antroposofia, Ordem Rosa-Cruz, Tradição Templária, Maçonaria, Kaballah, Gnose e Gnósticos, Espiritismo, sempre oscilando – na corte de intelectuais do regime – entre o historicismo acrítico e pretensamente neutral e o simbolismo como artifício meramente intelectual. E mais uma vez, foi António Quadros, no estudo sobre Fernando Pessoa (capítulo 8, «Para Deus e em Deus», da obra «Fernando Pessoa – Vida, Personalidade e Génio», Ed. Dom Quixote, Lisboa, 1992) a redignificar nesse e em outros aspectos menos de acordo com o Establishment o pensamento de Fernando Pessoa e seus heterónimos.
Cantonadas, pela elite vigente, nas organizações, movimentos, livros e autores ditos «teosóficos», as ideias disconformes com a ortodoxia (ditadura) academicista, racional-positivista, cientifista, precisavam de uma forte personalidade para se impor à exigente classe dos académicos e dos intelectuais encartados.

Fernando Pessoa foi o entreposto ideal para essa transferência: não deu dignidade universitária (porque era plebeu) à teosofia e aos teósofos mas deu-lhe foral de crédito junto de alguns críticos e ensaístas mais flexíveis à variação dos léxicos (ditos) orientais ou de proveniências que não fossem as únicas geralmente admitidas pela Escolástica imperante: greco-latinos e arredores.
E vulgarizou (para o bem e para o mal, diga-se) o léxico básico que circula entre teósofos e várias escolas de Teosofia, antes enunciadas.
Desse léxico básico, podemos escolher 8 palavras-chave para uso dos que gostam de viajar com o Google na Internet:
Arcanos do Universal
Círculo iniciático
Conhecimento contemplativo
Conhecimento Oculto
Extase místico
Ocultismo
Sabedoria esotérica
Teurgia
 
Não podemos ignorar, evidentemente, os outros autores que, além de António Quadros, deram crédito e vigência às ideias «ocultistas» de Fernando Pessoa e de que é possível destacar nomes tão notáveis como António Telmo, Dalila Pereira da Costa, Pedro Teixeira da Mota, Yvette Centeno, todos eles largamente citados por António Quadros. Sempre que se trata de Fernando Pessoa, as convergências jorram de todos os lados e quadrantes…

ANTÓNIO QUADROS NA ENCRUZILHADA EXISTENCIAL

Entre a filosofia de sistema (onde positivismo e hegelianismo ocupam lugar de maior destaque), as «artes de filosofar» (consideradas pejorativamente pela ideologia dominante e predominante) e a «filosofia situada», António Quadros encontrou nas filosofias existenciais (não no existencialismo) o seu caminho para se decidir naquela encruzilhada.
Neste aspecto, dois autores parecem cruciais para fundamentar o seu caminho: Fernando Pessoa (existencialista avant la lettre) e Albert Camus, qualquer dos dois «irmãos» em espírito de António Quadros. Pelos meios de expressão utilizados, o poeta e o escritor poderiam dar forma a uma filosofia livre de compartimentos e gavetas, existencialmente situada e universal.
Não sei se, além de Quadros, houve outro nome da filosofia portuguesa que tivesse trazido «apport» semelhante ao seu: e que tivesse definitivamente consagrado, sem carga pejorativa, a «arte de filosofar» que aliás remonta aos primórdios da filosofia em todas as culturas e cosmogonias que nos deram legados universais e cada vez mais actuais.
Podemos atrever-nos a lembrar três desses legados: gnose egípcia, taoísmo chinês e cultura maya (maya galáctico). 

III
A DINÂMICA DE FILOSOFAR LIVREMENTE
PARA LÁ DO DOGMA, DA CRENÇA, DA TEORIA E DO TABU

Não se discute a língua portuguesa, não se discute a cultura portuguesa, não se discute a história portuguesa: porque havemos de discutir a «filosofia portuguesa»?
Para haver «filosofia portuguesa», aquilo que os entendidos delimitaram como tal, teríamos que postular algumas questões, umas que são dados adquiridos (estruturais, digamos) mas outras que são dados ainda em hipótese ou em tese de estudo.
Ou seja: há uma dinâmica a mostrar e a demonstrar e talvez que essa dinâmica seja o principal factor caracterizante da filosofia portuguesa, uma eterna diáspora… Talvez, sei lá, o que Paulo Borges designa de «visão armilar do Mundo».
Entre os dados adquiridos está o idioma, a língua portuguesa: é óbvio que qualquer acepção de filosofar em português, de filosofar em Portugal, deverá distinguir-se da de outras línguas.
Depois a história, mas aí é que se colocam os intermináveis desafios:
Vocação histórica de Portugal?
Há um sentido escatológico (providencialista e messiânico) no movimento dos portugueses?
Viajar será a metáfora para caracterizar a nossa maneira de filosofar?
Qual o papel dos mitos e símbolos  na caracterização-expressão do filosofar português, do filosofar em língua portuguesa?
Em terceiro lugar, a cultura.
Culturas são constelações de sabedoria em função de um determinado povo, de uma determinada comunidade, de um determinado idioma, de uma determinada tradição.
E aí coloca-se outra dinâmica em acção: até onde a tradição cultural portuguesa (e a tradição universal de símbolos e arquétipos) estruturam e modelam o filosofar de alguns dos nossos filósofos.
A dinâmica contraria basicamente a ideia de filosofia como sistema e, portanto, a história oficial que se ensina sobre os vários sistemas filosóficos.
Esse, de facto, é um dos imperialismos ideológicos que nos obrigam a suportar o dirigismo do pensamento dirigido na sua melhor forma.
Nesse sentido, esperamos ardentemente que a «filosofia portuguesa» nada tenha a ver com sistemas e filosofias de sistema.
Se a ideia de cultura é indesligável da ideia de filosofia, é evidente que para a cultura portuguesa (em língua portuguesa) haverá uma filosofia portuguesa. Sem discussão.
A razão de (ainda) se discutir a «filosofia portuguesa» talvez esteja, inesperadamente, algures onde não tem sido procurada. Na história e nos historiadores daquilo que se convencionou ser filosofia: os sistemas filosóficos.
A razão desta discussão estaria, portanto, na mania das grandezas: tudo o que não seja um grande sistema, um grande ismo, um hegelianismo ou um kantismo, não entra na categoria apriorística de filosofia. Fica quanto muito na «arte de filosofar» que ganha então um sentido pejorativo.
Só vejo nos filósofos ditos portugueses uma excepção que nunca compreendi nem consigo encaixar: o hegelianismo incurável de Orlando Vitorino… Ou, já agora, o anti-positivismo de Álvaro Ribeiro.
Toda a discussão, portanto, deriva de um pré-conceito, de um pré-juízo, de um apriori, em suma, de um dogma. Igual aos outros dogmas que a história regista: e nada como a ciência para produzir dogmas, a que se pode chamar «teorias».
O dogma da ciência (estruturalmente anti-científico…) consiste, como se sabe, em considerar que tudo está em compartimentos separados: arte, literatura, filosofia, arquitectura, etc. 
Em sentido literal, saber se existe ou não existe uma «filosofia portuguesa» é uma discussão puramente «académica».
A quem interessem as ideias e o pensamento como actividades autónomas, não classificadas em gavetas, a discussão é entre ideários e não entre sistemas.
A maior dificuldade para quem estuda o pensamento de António Quadros parece ser essa (aparente) contradição, mais ou menos expressa no trabalho que nos legou, entre uma abordagem global e uma análise específica, entre uma metodologia ensaística e uma metodologia científica (universitária?).
A natureza global do tema – a dinâmica filosófica portuguesa – contradiz um tratamento disciplinar, específico, analítico e académico - «obrigado a mote».
A autoridade académica, a disciplina científica encontra duas palavras muito usadas para ultrapassar essa dificuldade de fundo, para resolver este choque entre o universal e o particular (antinomia, aliás, totalmente artificial) : «interdisciplinaridade» e «(des)contextualizar», são expressões típicas da ortodoxia científica quando se trata de superar antinomias, reais ou imaginárias.
A incompatibilidade, no entanto, continua: o absoluto não pode ser explicado pelo relativo, o geral pelo particular, o abstracto pelo concreto, o intemporal pelo temporal, o dinâmico pelo estático, etc., etc.
Os cientistas da investigação fundamental em Biologia conhecem bem esta dicotomia básica quando referem a diferença de resultados obtida entre o que eles chamam «experiências in vitro» e «experiências in vivo».
São resultados completamente diferentes.
Resumindo e concluindo: a metodologia científica e analítica (universitária) é incompatível com a metodologia (dinâmica) ensaística: António Quadros terá conseguido ir até ao limite do possível nesta contradição. O que não será o menor dos seus méritos.

ULTRAPASSAR OS ESTEREÓTIPOS DO PENSAMENTO DIRIGIDO E OS EQUÍVOCOS DA NEW AGE

A chamada New Age (saco sem fundo onde cabe tudo, do mau ao péssimo) representa o melhor serviço prestado ao discurso dominante, estereotipando determinados temas, livros, autores e correntes que são decisivos e determinantes para pensar a complexidade do nosso tempo e mundo.
Afinal foi o que o escritor António Quadros fez no seu tempo: teve a coragem e a lucidez de adoptar temas, livros, autores e correntes que, de um lado e de outro, a elite intelectual decidira incluir no rótulo de «proibidos». Que as elites das letras, artes, ciências e universidades tornou tabus.
Ontem como hoje, há que desafiar, com coragem e criatividade, o «pensamento dirigido» pela ideologia dominante, os tabus, sofismas, estereótipos e preconceitos da ideologia dominante.
Honrar a memória e o exemplo de António Quadros é ter a coragem, como ele teve, de continuar estudando e pensando e criando à revelia da ideologia e do discurso dominantes.
Custe o que custar, há, em lista de espera, uma série de temas, autores, livros e correntes (variáveis que a elite intelectual decretou tabus) que terão de ser consideradas e principalmente integradas num projecto de estudo coerente até 2012, designado «Utopia 2013».
O que resta do espólio AC (livros e documentos) vai nesse sentido. 

IV
DAS NOMENCLATURAS DATADAS À LINGUAGEM UNIVERSAL

As discussões entre intelectuais que ainda hoje ocorrem nesta área dita «ocultista», andam quase todas à volta das nomenclaturas; muitas vezes os interlocutores estão a falar do mesmo, apenas com nomenclaturas diferentes.
Vale a pena recordar que «A Alquimia da Vida» e «A Linguagem Vibratória de base molecular», duas obras de Etienne Guillé, estabelecem hoje para todos os estudiosos um campo unificado de consciência sem as variantes lexicais. E talvez seja por isso que a obra gigantesca de Etienne é praticamente ignorada dos nossos intelectuais, mesmo os que se consideram nessa tal área da sabedoria sagrada ou talvez por isso mesmo: tendo cristalizado na nomenclatura que adoptaram (geralmente de fonte hinduísta filtrada por traduções/traições as mais diversas…), nunca conseguirão sintonizar a linguagem universal (convergente da Kaballah, aliás) criada e estabelecida por Etienne Guillé.
Mais uma vez, aprender a filosofar é uma aventura solitária e sem ajudas. Acima de tudo sem mestres. Acima de tudo sem argumentos de autoridade. Acima de tudo sem antecessores e sucessores. Acima de tudo, sem rede.

PARA LÁ DA BABEL DOS IDIOMAS
LÉXICO FUNDAMENTAL PARA GOOGLAR: 40 ITENS DE A-Z
Não é talvez o momento, mas podemos deixar aqui uma primeira amostra do léxico peculiar originado no estudo de Etienne e dos 5 livros que publicou para o grande público, uma tentativa, a nosso ver bem sucedida, de criar uma linguagem universal que estivesse para lá da Babel das Línguas…
São 40 itens para googlar:
1. A 2ª IDADE DE OURO
2. AS 9 CAMADAS DA ALMA
3. CONTINUUM ESPACIO-TEMPORAL
4. CONVERGÊNCIA HOLÍSTICA
5. COSMOBIOLOGIA
6. COSMOSOFIA
7. ECOLOGIA ALARGADA
8. ENERGIAS SUBTIS
9. ESCALA HIERÁRQUICA DE CONSCIÊNCIA
10. ESCALA VIBRATÓRIA
11. ESFERAS ENERGÉTICAS
12. ESPECTRO VIBRATÓRIO
13. ESTADOS VIBRATÓRIOS DE CONSCIÊNCIA
14. ESTAGNAÇÃO ENERGÉTICA
15. ESTUDANTE DE NOOLOGIA
16. CORRESPONDÊNCIAS MICRO/MACROCÓSMICAS
17. GNOSE VIBRATÓRIA
18. HIERARQUIA VIBRATÓRIA
19. HOMOLOGIA E ANALOGIA
20. IMUNIDADE DA ALMA
21. INTERFACES ENERGÉTICOS
22. LIMPEZA DE MEMÓRIAS
23. LINGUAGEM VIBRATÓRIA DE BASE MOLECULAR
24. MEMÓRIA CÓSMICA
25. MORFOGÉNESE CÓSMICA
26. MUNDO VIBRATÓRIO
27. CAMPO UNIFICADO DAS FREQUÊNCIAS VIBRATÓRIAS
28. PRINCÍPIO HOLOGRÁFICO DA SABEDORIA
29. ORGANIZAÇÃO VIBRATÓRIA
30. OS 12 SENTIDOS
31. PARA LÁ DOS 5 SENTIDOS
32. PIRÂMIDES VIBRATÓRIAS
33. RADIESTESIA ALQUÍMICA
34. RADIESTESIA HOLÍSTICA
35. RESSONÂNCIA VIBRATÓRIA
36. RITMOS CÓSMICOS
37. SINCRONICIDADE DE JUNG
38. TESE DE NOOLOGIA
39. UTOPIA PERSONALISTA
40. VALOR TEOSÓFICO DO NÚMERO
 Afonso Cautela
LIVRO DE FUNDO
A ANGÚSTIA DO NOSSO TEMPO
E A CRISE DA UNIVERSIDADE (*)


«Nós entendemos de que esta posição de esperança é ridícula, mas... (A Planície, 15/8/56)

O lançamento da revista 57, microfone avançado do mais importante movimento cultural que a nossa história regista, depois da Renascença Portuguesa, coloca de novo na ordem do dia o último livro do director, António Quadros, a que nos não referimos quando da sua saída mas que é agora a ocasião de salientarmos como obra capital, obra de tese, fecunda pelas hipóteses de trabalho que reúne, pela crítica que desenvolve às instituições universitárias, livro de juventude intelectual e, ao mesmo tempo, de maturidade, abordagem corajosa da problemática fulcral da hora que passa, a que nem sequer falta um memorandum bibliográfico final, necessário ao estudioso do tema a que se reporta: A Angústia do Nosso Tempo e a Crise da Universidade, um dos que deveriam vir a constituir o texto da Faculdade Central de Cultura Superior que nele se propõe.

Neste triste mister de ler livros e dizer o que se leu, é-se solicitado por tanta obra medíocre, desatento por tanto «verbo de encher», que nos sentimos desconstrangidos e à vontade por dialogar agora com quem fala uma linguagem afim da nossa, aquela que raramente ouvimos e de que andamos a aprender os balbucios, definindo-se e ajudando a definir-nos, por discordância ou concordância, na utópica ideia de um programa a que chamámos Convívio.

É claro que um livro de António Quadros, escritor de missão que é e se considera, não nos «leva para dentro», como, para citar uma nossa experiência recente, Os Cadernos de Malte Brigge ; não conheço livro que nos chame mais para o nosso egolatrismo, que mais violentamente nos reclua, que com mais força nos empurre para uma solidão que tememos, que odiamos, mas a que Rilke, o inefável, nos arrasta.

Claro: há um respeito, mais do que respeito, paixão pelos mundos subterrâneos, absurdos, essenciais, os do Anjo da Morte, os de uma longa corte de Anjos Negros.

Mas, com força igual, nos solicita o Anjo da Vida, o da Esperança, o da Aurora, o das solidões povoadas, o de Rolland, o de Bertrand Russell, o de António Sérgio, o de António Quadros.

Demasiado real, todavia, é a nossa experiência do Absurdo, por demais e tantas vezes o temos visto assimilar-se com uma essência que supomos próxima ou idêntica da Verdade, para que não receemos os entusiasmos excessivos, as filosofias salvadoras, os messianismos tromba d'água, para que tenhamos de crer os caminhos da esperança mais reais ou verdadeiros que os do desespero.

Mas haja ou não haja razão, neste final de Maio de 57, o barómetro acusa bom tempo e, climaticamente, acreditamos em António Quadros, acreditamos em todos os que falam na fé, na certeza, na esperança de redenção social do homem.

Acreditamos, enfim, em Convívio. «Lirismo e psicologia têm os seus lugares» -escreve António Quadros. Mas se estivéssemos sós, nós, poetas, escritores, filósofos, artistas, homens, deveríamos baixar a cabeça e desistir de pensar, pois a dignidade do pensamento reside precisamente na transcenção, na fuga a este cárcere ensombrecido que é o eu.

No caso português, o lirismo não será uma fatalidade do nosso condicionalismo cultural? Terá de considerar-se o lirismo uma doença estrutural ? Investigue-se a razão por que todos os dias aparecem «poetas líricos».

Poeta lírico é o homem que acorda, e o que pode o Jovem português, quando tantas ameaças o tolhem e espectralizam, fazer mais do que abrir os olhos e, de uma noite de séculos, acordar?

Mau grado a insatisfação que a tantos de nós provoca a onda lírica, teremos de continuar amarrados ao pélago inseguro mas ainda assim consentido do lirismo, do literatismo, do psicologismo, do subjectivismo. Como pode o jovem devotar-se aos grandes temas épicos de projecção futura, se o bloqueio, o assédio, só lhe criam e sobrepõem problemas e emblemas de inquietação?

Demasiado reais, esses problemas, para os meus irmãos do presente, para constituírem assim tão fantasmáticos entes do futuro. Congratulemo-nos que haja escritores para quem o menos importante de tudo seja a literatura. Mas lembremo-nos de que a literatura é ainda para muitos o único refúgio e a única vingança.

«Estamos no limiar de uma era sem precedentes na economia portuguesa», escreve António Quadros num artigo notável do Diário de Noticias, dia 9/5/57. A supremacia de uma pátria, contudo, como adverte António Quadros, não se baseia só no poderio económico mas também, acrescentamos nós, na equitativa distribuição das riquezas, pelo que me parece serem as teses de António Quadros completadas pelas de um cooperativista como António Sérgio; e na harmonia dos valores intelectuais.

Ora enquanto não descobrirmos essa nossa pedra filosofal, que é o cívico convívio de todos os intelectuais responsáveis, predipostos a uma empresa comum, não me parece que se consiga nada de estável nem de grandioso, entregue como está a nossa cultura às mãos de dúzias ou meias dúzias isoladas de homens que se hostilizam de grupo para grupo sem encontrarem, nunca mais, uma forma e uma plataforma de entendimento.

É neste futuro que acreditamos: quando todos os portugueses sintam que Portugal é a sua casa e, a maioria, não se veja obrigada a procurá-la em terras tantas vezes inóspitas, mas cujo acolhimento é talvez mais carinhoso. É preciso que nenhum português se sinta estrangeiro em sua própria terra. E só o movimento cultural que o conseguir dará corpo às profecias que o ano de 57 nos traz.

É esta também a profecia que nos achamos com o direito de buenadichar, como diria o Fialho.

(*) Este texto de Afonso Cautela foi publicado em «Inventário», página do jornal «A Planície» que sucedeu a «Ângulo das Letras», 15- 6 - 1957.
Afonso Cautela

O Jornal 57 : História & Memória
Álvaro Costa de Matos*

1. Do contexto...
O jornal 57 surge num ano, 1957, que, no que à imprensa periódica diz respeito, foi um ano historicamente importante. Hoje é até reconhecido pelos especialistas como um ano de viragem, em grande medida protagonizada pelo Diário Ilustrado, que aparece em finais de 19561. Se isto é verdade para a chamada imprensa de referência, para os principais jornais diários portugueses, também o é para a imprensa literária. Esta conhece nesta altura uma evolução não menos importante, quer pela consolidação de muitas revistas e jornais, quer pela dinâmica provocada pelo aparecimento de novas publicações periódicas, ao ponto de se detectar uma efervescência cultural de certo modo atípica, num país sujeito a um regime autoritário, autocrático, que fazia da censura à liberdade de expressão uma das suas traves-mestras2.

Estas revistas, por sua vez, representavam movimentos políticos, literários, estéticos ou mesmo filosóficos, sendo, portanto, da maior importância conhecê-las para uma melhor contextualização da época que aqui nos interessa, e que enquadra o nosso jornal, o 57.

A Vértice era o órgão por excelência do Neo-Realismo. Representava a militância, a literatura de compromisso, da arte empenhada. Protagonizou importantes tomadas de posição no plano cívico e político, congregando, desde o início (Maio de 1942), uma parte considerável da oposição democrática ao regime – atitude que manteve até 1974. Mas além da Vértice tínhamos a Serpente, de 1951, e as Notícias do Bloqueio, também criada em 1957, e que durou até 1961, ainda que estas duas publicações já representassem a segunda vaga neo-realista. O Globo (1943-1959), o conjunto de cinco números Unicórnio, Bicórnio, Tricórnio, Tetracórnio e Pentacórnio (1951-1956), de José Augusto França, a Anteu (1954) e a Pirâmide (1959) veiculavam as propostas estético-literárias do Surrealismo, movimento que tenta verter para a cultura portuguesa o compromisso com a fealdade, como “arma contra a cultura burguesa e as suas formas de censura estética, moral, etc.”3 A Panorama (1941-1973), a Atlântico (1942-1959), ambas editadas pelo Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), a Cidade Nova (1941-1961), o Esmeraldo (1954- 1956), a Ocidente (1935-1971; 1977-1995) e a Cidadela (1956-1957) defendiam o regime ou um sistema de valores condizente com os do regime: patrióticos, nacionalistas, conservadores e católicos. Algumas destas revistas, como vimos, são mesmo editadas por instituições do Estado Novo. A Ocidente, com a direcção de Manuel Múrias, foi uma apoiante incondicional do Salazarismo, defensora de um nacionalismo activo, exacerbado, fortemente empenhado, a par da apologia (supremacia) da cultura ocidental sobre todas as outras. A Tempo Presente, revista portuguesa de cultura, que saiu de 1959 a 1961, representava o fascismo puro e duro, situando-se assim à direita do próprio regime. Segundo Eduardo Lourenço, era “o texto fascista em ambiguidade”4, traduzindo um fascismo nostálgico, duvidoso do regime de Salazar, crítico da decadência das suas instituições e da decrepitude ideológica e política dos dirigentes do Estado Novo. Nas suas páginas, assumiam-se como “(…) universalistas, hierarquizadores, totalitariamente compreendentes, intolerantes para o erro, ultrapassantes e dinâmicos”5.

À esquerda do regime tínhamos, além da Vértice, já aqui referida, a Seara Nova, que surge em 1921, ligada à esquerda progressista, republicana, liberal, a Rumo, dos católicos, e a 3 ROCHA, Clara – Revistas Literárias do Século XX em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1985, p. 544.
4 Citação retirada de PINTO, António Costa, “Tempo Presente”, in Dicionário de História de Portugal, Coord. de António Barreto e Maria Filomena Mónica, Vol. 9, Lisboa/Porto: Figueirinhas, 2000, p. 509.
5 Para um estudo mais aprofundado de algumas destas revistas, sobretudo das mais políticas, ver MATOS, Álvaro Costa de (2006), Op. Cit. Para as literárias, completar com PIRES, Daniel -
Dicionário da Imprensa Literária Portuguesa do Século XX (1941-1974), Volume 2, Tomos 1 e
2, Lisboa: Grifo, 1999, e com ROCHA, Clara (1985), Op. Cit.
3 revista O Tempo e o Modo, publicada entre 1961 e 1977, adepta de uma democracia cristã e de um socialismo humanista, isto até à saída de António Alçada Baptista, em Fevereiro de 1969. A partir daqui a revista sofre uma profunda reorientação, no sentido maoísta, e que se traduz também numa oposição mais tenaz ao regime. Depois, existia ainda um conjunto de revistas que testemunhavam o incremento que os estudos filosóficos conheciam nesta altura, tanto dentro como fora da universidade. São disso exemplo, a Revista Portuguesa de Filosofia, da Faculdade de Filosofia de Braga, talvez a mais importante, a Revista Filosófica (1951-1958), fundada e dirigida por Joaquim de Carvalho, a Revista da Faculdade de Letras, de Lisboa, a Colectânea de Estudos, Itinerarium a partir de 1955, dos Franciscanos, e a revista Filosofia (1954-1961), órgão do Centro de Estudos Escolásticos de Lisboa. O interesse pelos temas filosóficos em geral, e especificamente portugueses, este ambiente verdadeiramente filosófico, talvez explique o aparecimento do último jornal deste breve inventário, o 57, órgão do Movimento 576, por sua vez inserido no movimento mais amplo da Filosofia Portuguesa. É sobre este jornal que agora nos vamos deter, ou melhor, sobre a sua história e memória.

2. O jornal 57
O jornal 57 que, por determinação epocal, assim se designou, estreia-se em Maio de 1957, com o subtítulo de folha independente de cultura, que apregoava um ecletismo cultural que se manteria até ao fim da publicação. O jornal mantém-se, com alguma irregularidade, até Junho de 1962, publicando no total 11 números: três em 1957, com um número duplo, já referido (n.º 1, Maio; 2, Agosto; 3-4, Dezembro), um no ano seguinte (5, Setembro), dois em 1959 (6, Março; 7, Novembro), três em 1960 (8, Junho; 9, Setembro; 10, Dezembro), e um, o último, em 1962 (11, Junho). Esta irregularidade na edição condicionou muito o 57, não só porque não se compadece com a opção pelo jornal, que pede uma periodicidade diária e regular, como não ajuda a fixar 6 Sobre o movimento propriamente dito é de leitura obrigatória a obra GAMA, Manuel – O Movimento 57 na Cultura Portuguesa. Col. Biblioteca Breve, 116. 1.ª Edição. Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa/Ministério da Educação e Cultura, 1991.
4 leitores. A posteriori, julgamos que o 57, pelas suas características, talvez tivesse funcionado melhor como revista, num formato mais pequeno.

O 57 foi dirigido por António Quadros, que partilhou a função com Fernando Morgado e Orlando Vitorino que partilhou a função com Fernando Morgado e Orlando Vitorino a partir do número 5, de Setembro de 1958. No número seguinte, Vitorino desaparece da direcção, para não mais regressar. A redacção era composta por Avelino Abrantes, Afonso Botelho, que acumulava com a função de editor, José Antunes Ferreira, Fernando Morgado, Ernesto Palma, António Quadros, Rui Carvalho dos Santos, que também era administrador, Francisco Sottomayor, António Telmo, Orlando Vitorino e Luís Zuzarte. Fernando Morgado, além de director e redactor, era também o “orientador artístico” do 57, enquanto Carlos Silva estava incumbido do secretariado do jornal. O corpo redactorial sofreu poucas alterações ao longo dos 5 anos de existência: a partir do n.º 2, de Agosto de 1957, passa a contar com Afonso Cautela e Azinhal Abelho, edição que regista ainda a saída de Luís Zuzarte. Ao todo, tínhamos 12 redactores. Azinhal Abelho, Rui Carvalho dos Santos, Orlando Vitorino e Ernesto Palma cessaram as suas funções como redactores a partir do n.º 6, de Março de 1959. António Telmo sai no número seguinte, de Setembro. A partir do n.º 8, de Junho de 1960, desaparece da ficha técnica do jornal a referência ao corpo redactorial do 57. Nas outras funções as mudanças também foram pouco significativas: a partir do n.º 5, de Setembro de 1958, Francisco Sottomayor assume o secretariado; no número seguinte aparece como administrador; no último número, de Junho de 1962, substitui Afonso Botelho como editor.

O 57 tinha redacção e administração em Cascais, na Rua Afonso Sanches, 30, era composto e impresso em Lisboa, nas Oficinas Gráficas Manuel A. Pacheco, Lda., de Lima, Victor e Lima, na Rua João Saraiva, 12 – A (Alvalade) e distribuído pela Livraria Bertrand. A partir do n.º 5, a redacção e a administração são transferidas para a Rua do Quelhas, 25, em Lisboa, com nova mudança no número seguinte, de Março de 1959, desta vez para a Rua do Século, 34. A distribuição do jornal passa também, a partir deste número, a ser feita pela Agência Portuguesa de Revistas, localizada na Rua Saraiva de 5 Carvalho, 207. Até o final do jornal, a redacção e a administração saltaram de poiso por mais duas vezes, mas sempre em Lisboa: no n.º 8 vamos encontrá-las na Rua do Arco de Carvalhão, 197; a partir do n.º 10, de Dezembro de 1960, na Rua Quirino da Fonseca, 37. A distribuição do jornal não ficou imune a estas alterações, provocadas sobretudo pelas constantes mudanças de casa do seu director, António Quadros, com o 57 a conhecer, a partir do n.º 8, de Junho de 1960, um novo distribuidor: Gonçalo W. de Vasconcelos, da Avenida António Augusto Aguiar, 126. Esta instabilidade só era possível devido à periodicidade alargada do jornal, com 2/3 números por ano. Não há referências à tiragem do jornal. Cada exemplar, em média com 20 páginas, custava, no início, 5$00. Aumenta para 7$50 a partir do n.º 5, conhece uma redução para 6$00 com o n.º 9, para voltar ao preço anterior logo no número seguinte, preço que se manterá até ao fim do jornal. No que toca às condições de assinatura, eram as seguintes: séries de 3 números, 15$00; de 6,
30$00; de 12 números, 60$00. Para o Ultramar e estrangeiro acrescia 10% sobre os preços indicados. Para cativar assinantes, o jornal oferecia um desconto de 30% nos volumes da “Colecção 57” e nas obras de que o 57 era depositário, como, por exemplo, a Introdução a uma Estética Existencial, de António Quadros, ou o Acto – fascículos de Cultura. Beneficiavam ainda de entrada livre nos colóquios organizados pelo jornal e de 50% de desconto nos espectáculos realizados. A subscrição do jornal era feita por postal ou carta.

Encontramos três tipos de publicidade no 57. A publicidade estritamente comercial, que servia para pagar o jornal; a publicidade institucional, nacional e estrangeira; e a publicidade da casa, aquela que visava publicitar os colaboradores mais importantes, através da divulgação e dos elogios às suas obras. No primeiro caso, destacamos, pela quantidade e tamanho dos anúncios, a publicidade da Companhia Nacional de Navegação, com 9 anúncios, quase um por cada número, dos chocolates Belleville, da Favorita, com 7, da Companhia União Fabril (CUF), com 6, da Sacor, com 5, da Swissair, com 3 anúncios, entre outras empresas e companhias, com dois ou apenas um anúncio: os rádio-gramofones estereofónicos SABA, os frigoríficos da General Electric, a Altitália, a Air France, os binóculos JENA, as canetas 6 Parker, a Guimarães Editores, a Portugália Editora, as Publicações Europa- América, o Banco Comercial de Angola, as cervejas “Cuca”, etc. No segundo caso, na publicidade institucional, temos anúncios da Agência Geral do Ultramar, promovendo as suas muitas edições, da Direcção Geral do Turismo
Francês, mas sobretudo do Centro Nacional Suíço de Turismo, com 6 anúncios, convidando os leitores do 57 a visitar o “país dos lagos encantadores”, dos “sítios pitorescos”, com “cidades de aspecto medieval”, ou a passar as suas férias nas suas “montanhas nevadas”. No último caso, encontramos publicidade a livros ou publicações periódicas editadas por colaboradores ou directores do 57, com relevo para Afonso Botelho, António Quadros e Orlando Vitorino, ou referências elogiosas a escritores “queridos” do movimento, como Virgílio Ferreira.

A novidade do 57, além do programa e das suas ideias, de que nos ocuparemos mais adiante, e presente também no núcleo duro dos seus colaboradores (António Quadros, Afonso Botelho, José Marinho, Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino), que se auto-denominavam de “os novos”, está desde logo na opção pelo formato do jornal, bastante ousada, reconheça-se, para uma publicação que pretendia falar de filosofia, arte, ciência e literatura, num mercado pequeno, pouco predisposto para consumir este tipo de produtos, sujeitos à concorrência da imprensa diária, mais barata e, nalguns casos, com excelentes suplementos literários. O elevado analfabetismo também não ajudava, assim como a censura prévia à imprensa, ainda que esta visasse não tanto o controlo da crítica política ao regime ou da doutrinação e propagação de ideários políticos diferentes, mas sobretudo a protecção das figuras, instituições e estratégias imediatas do regime7. A novidade do 57 está ainda no arranjo gráfico encontrado para o jornal, moderno, atractivo, de que salientamos os seguintes aspectos:

7 Sobre os propósitos da censura política, ver, MATOS, Álvaro Costa de, Op. Cit., p. 52-53.
Completar com TENGARRINHA, José, “A Censura às Folhas Informativas (visão global)”, in Op. Cit., pp. 35-70. Para Tengarrinha, a defesa das figuras do regime (Chefe de Estado, Presidente do Conselho e membros do Governo) era, sem dúvida, um dos objectivos da censura, assim como a defesa da estrutura política do Estado e de todos aqueles assuntos que poderiam afectar a sua segurança e prestígio. No entanto, para o historiador, a censura foi essencialmente “um instrumento fundamental orientado para a tentativa de formação de um «bloco de opinião nacional”.

7
i) uma primeira página muito forte, a 3 cores, com uma boa combinação gráfica entre o cabeçalho, em plano de destaque, o sumário, à esquerda, e textos programáticos ou nucleares, não assinados, como é o caso do “Manifesto de 57”, “Manifesto sobre a Pátria” ou “Problemas Concretos da Cultura Portuguesa”, publicados, respectivamente, nos números 1, 2 e 5, à direita;

ii) uma estrutura interna muito flexível, a 2 cores (P/B), com predomínio das 5 colunas, a toda a página, não poucas vezes quebradas com ilustrações, publicidade, novas caixas de texto, ou, em menor número, a solução 2 + 1 (duas grossas colunas + uma coluna standard, reservadas quase sempre para os grandes ensaios dos principais articulistas do 57, mormente o quinteto acima referido, ou nomes sonantes como Agostinho da Silva), ou, ainda, a solução 3 + 1 (três colunas standard + uma coluna grossa), com poucas secções regulares ao longo do jornal, utilizadas sobretudo para a crítica literária, de arte e espectáculos, ensaios ou estudos diversos8;

iii) uma última página mais discreta, repetindo as 3 cores da primeira, muitas vezes utilizada para a conclusão de textos vindos do interior.
Foram efectuadas mudanças na imagem do jornal, primeiro com uma discreta alteração no cabeçalho, a partir do número 6, de Março de 1959, com a colocação do título, “57”, à direita da caixa “Movimento de Cultura Portuguesa”, quando antes estava à esquerda; depois, com algumas remodelações gráficas ensaiadas nos números 8, 9 e 10, prevalecendo a terceira, continuada no número seguinte, o último, ainda que num formato mais pequeno e com outro tipo de papel, mais frágil, a pronunciar o fim do jornal. O último número tem ainda a particularidade de introduzir as três cores noutras páginas, que não a primeira e a última, realçando assim alguns textos importantes, como é o caso do “Manifesto à Nação”, assinado por António Quadros, Fernando Morgado, Francisco Sottomayor, Fernando Sylvan, Jorge Preto, Luís Carlos do Espírito Santo, António Braz Teixeira e Alexandre Coelho. Finalizamos este capítulo com a colaboração literária e plástica do 57, que foi muito significativa e diversa. Na primeira, destaca-se, quer pela quantidade 8 Identificámos apenas as seguintes secções regulares, por ordem de importância: “57 Leu”, “Crítica”, “Artes Simbólicas”, “Artes da Palavra”, “Notas Políticas e Económicas” e “Artes espectaculares”. 8 quer pela qualidade, a de António Quadros, de longe o principal colaborador, com uma produção que ultrapassa os 40 artigos. Depois, num outro patamar, temos Francisco Sottomayor, com 16 artigos, Orlando Vitorino, com 12, Ernesto Palma, com 11, Fernando Morgado, com 10, Azinhal Abelho, com 9,
Avelino Abrantes, com 8, Afonso Botelho e António Braz Teixeira, com 7, Afonso Cautela, António Telmo, Alfredo Margarido, Ana Hatherly e José Antunes Ferreira, com 6, e Jorge Preto, com 5 artigos. Estes foram, sem dúvida, os principais colaboradores do jornal, mas o 57 contou ainda com a colaboração importante de Álvaro Ribeiro, José Marinho, Luís Zuzarte, Natércia Freire, Baltazar Covões, Carmo Vaz, Jonas Negalha, Fernando Sylvan, Agostinho da Silva, Sant’Ana Dionísio, Augustina Bessa Luís, José Valle de Figueiredo, entre muitos outros. Na segunda, isto é, na colaboração plástica, sob a forma de ilustrações e desenhos, temos Jorge Costa, Santiago Areal, Vieira da Silva e António Botelho. No conjunto do jornal, trata-se de uma colaboração pouco significativa, e escassa, dada a clara opção pelo texto em detrimento da imagem.

O 57 reproduziu ainda textos de Aarão de Lacerda, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Álvaro Ribeiro, Domingos Monteiro, Afonso Botelho, António Quadros, Álvaro de Campos, Cabral de Moncada, Kant, Cunha Seixas, Leonardo Coimbra, Georges Limbour, André Chastel, António Ferro, Sampaio Bruno e W. Ostwald.

O lugar de destaque ocupado por António Quadros merece que nos detenhamos um pouco na sua vasta colaboração. Quadros assinou grande parte dos ensaios publicados no 57, com textos sobre filosofia da história, estética e arte, existencialismo, ensino e educação, cultura e ciência, política e filosofia, estudos inovadores sobre dança, cinema, comemorações, ou, ainda, recensões sobre exposições. Temas perfeitamente enquadrados no espírito do
Movimento 57, de que ele era, afinal, um dos principais mentores e dinamizadores. Foi também um dos principais críticos literários do jornal, com recensões a Fernando Namora, Vergílio Ferreira, entre outros escritores.

Das iniciativas do jornal registe-se, por exemplo, os “Inquéritos aos Pensadores Portugueses”, com testemunhos de Álvaro Ribeiro (N.º 3-4, Dezembro 1957), 9 Afonso Botelho (N.º 5, Setembro 1958), e Sant’Ana Dionísio (N.º 6, Março 1959), pequenas antologias, com textos de António Ferro, a propósito do primeiro aniversário da sua morte (N.º 3-4, Idem), de Sampaio Bruno, assinalando o “1.º Centenário do Fundador da Filosofia Portuguesa” (Idem), com um estudo de António Telmo, de Cunha Seixas ou Leonardo Coimbra (N.º 7, Novembro 1959), uma “Pequena Antologia do Moderno Pensamento Estético Português”, com textos de Aarão de Lacerda, Fernando Pessoa, Almada Negreiros, Álvaro Ribeiro, Domingos Monteiro, Afonso Botelho e António Quadros (N.º 5, Idem), a campanha a favor da valorização e dignificação do escritor português, ao longo dos seis primeiros números, com estudos sobre a situação social do escritor, os editores, as influências estrangeiras, a liberdade de expressão, a par de outros assuntos, e, por último, os dois inquéritos realizados a estudantes acerca da crise da universidade (N.º 3-4, Idem, e N.º 7, Idem).

3. Do programa e das ideias...
O jornal 57 apresentava-se como “folha independente de cultura”, “principalmente escrita por novos”, o que desde logo mostrava uma intenção de independência política face ao regime, mas também a outros movimentos ou correntes políticas. Apresentava-se também como uma publicação doutrinária, que se pretendia portadora de uma “autêntico movimento” que teria por objectivo central uma “profunda renovação dos conceitos e das hierarquias que campeiam abusivamente a terra portuguesa”. E que conceitos e hierarquias eram estes para os homens do 57? O Escolasticismo, o Materialismo Dialéctico, o Positivismo, o Criticismo, numa palavra, as correntes estrangeiras, que definiam na altura a cultura portuguesa, mas que contribuíam para a ruína dos seus “brilhantes pilares”, para a ausência de uma “autonomia cultural”9.

Como consequência, os intelectuais demitiam-se e abdicavam da sua “liberdade de conceber, de imaginar e agir, por uma cega adesão, seja a corpos doutrinários anacrónicos, isto é, gerados fora do nosso tempo; seja a concepções utópicas, isto é, que não tomam em consideração o factor 9 Para uma análise mais detalhada do ideário do movimento 57, dos seus pressupostos teóricos, ver GAMA, Manuel, Op. Cit., sobretudo o capítulo 2, “O Ideário do «57», pp. 35-85. 10 específico que é o espaço e visam a espartilhar os homens de todos os espaços segundo a rigidez sem cambiantes de uma mesma lei; seja no retrato fotográfico de uma realidade imóvel, a uma natureza conhecida apenas através dos sensos, sem que a penetre a visão superior do espírito; seja no egoísmo narcisista da auto-contemplação, da auto-piedade ou da auto-flagelação”.

Impunha-se, portanto, um programa, que libertasse a cultura portuguesa do “imobilismo paralisante” de “escolas e políticas que nos são estranhas” e de “fins egoístas”. Este programa, de acordo com o “Manifesto de 57”, publicado no primeiro número do jornal, logo a abrir, passava pelo recurso a “estudos antropológicos e cosmológicos que garantam as teses propostas”, ou melhor, pela adopção de “formas antropo-cosmológicas em que o Espírito ou a Razão se particularizam, isto é, as pátrias”. E logo a seguir acrescentavam: “Não é possível servir Portugal sem conhecer Portugal. Não é possível servir o homem português sem conhecer o homem português”. Por outro lado, esta tarefa, de libertação da cultura portuguesa, encontrava-se facilitada porque o país dispunha de imensas possibilidades e meios, pois segundo os “novos”, Portugal guardava “nos seus arcanos uma extraordinária potencialidade criadora, uma capacidade de viagem, descobrimento e invenção, da qual a nossa história dos acontecimentos, das ideias e dos símbolos, dá explícitos sinais e claras notícias”, capacidade esta que era diminuída persistentemente pelas “mentalidades abstracionantes e internacionalistas”. A história de Portugal não era feita de uma “cadeia de eventos fortuitos dominados pelo acaso, provocado pela luta das classes ou dependentes das flutuações do comércio e da indústria”. Pelo contrário, obedecia em “finalismo, a um destino e uma missão”, por outras palavras, a uma “necessidade”, como o tinham afirmado os nossos primeiros poetas épicos, Camões, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa. Esta “necessidade”, que resistira “as pressões do grandes povos”, exigia, para o grupo do 57, numa crítica à influência das correntes estrangeiras mas também ao poder político, que a nação recuperasse a sua “autonomia filosófica, artística e cultural”, que valorizasse as causas espirituais, “que são de expressão concreta e portanto nacionais”, em detrimento das materiais. Desta forma, evitava-se que a autonomia política, a independência, fosse um “capricho de governantes que ambicionam o poder temporal ou teimosia de passadistas, anacronicamente 11 presos a hábitos mentais e a lembranças, atavismos, nostalgias”.

Consequentemente, era fundamental adoptar um outro caminho, que, coadunado com a nossa identidade, contribuísse para o seu florescimento. Esse caminho era, para o 57, o existencialismo e a filosofia portuguesa. Estas seriam as correntes/filosofias que acabariam por dissolver a influência das teses positivistas, do materialismo e do abstraccionismo na cultura portuguesa.

O interesse pelo existencialismo, que pode parecer uma contradição, pois combatiam tenazmente as correntes estrangeiras, advém do facto de ter dado conteúdo filosófico à ideia de filosofia de pátria. Era isto que interessava ao movimento, apenas isto, a redução do objecto do conhecimento “à situação concreta dada e específica, ao englobante, à espacio-temporalidade”. Como referências, o 57 destaca A. N. Whitehead e Karl Jaspers, dois filósofos que, nas suas palavras, “mais sistematicamente interpretaram a relação dos homens entre si e dos homens com o cosmos, como necessariamente radicada a sistemas culturais e autónomos”.

O recurso à filosofia portuguesa explica-se porque para o 57 ela era a via por excelência, a via, para, por um lado, a cultura portuguesa afastar as correntes estrangeiras, e, por outro, reencontrar-se consigo própria. E lá vinha a menção a Sampaio Bruno como o fundador da filosofia portuguesa, pois dele partiram “todas as grandes correntes de ideias que se prende a originalidade, não só da nossa filosofia, como da nossa arte e da nossa literatura”. Completada com a referência aos seus “discípulos confessos”, Junqueiro, Pascoaes e Pessoa, “todos ligados ao movimento da Renascença Portuguesa”, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro e José Marinha, estes dois últimos classificados como “as figuras mais representativas da filosofia portuguesa moderna”.

Resolvido o problema da teoria necessária à dinamização da realidade portuguesa, restava a prática, papel que caberia ao 57. Este seria o meio pelo qual, com a cobertura do existencialismo e da filosofia portuguesa, se iniciaria um novo ciclo da cultura portuguesa: “Sedentos de restituir à vida humana a sua responsabilidade transcendente e ao mesmo tempo solidários dos que não pactuaram com a cultura incultural, separada porque precisamente incultural, 12 de um movimento dinamizador para um futuro iluminado pelo espírito, para a Índia Nova em que Fernando Pessoa simbolizou a epopeia portuguesa, nós defendemos e queremos o progresso de Portugal em todos os caminhos desde a prosperidade material e da dignificação social até à invenção filosófica, artística e cultural. Mas divergimos de todos e combatemos todos quantos, quaisquer que sejam os seus credos políticos ou religiosos, pretendem chegar aos mesmos fins através de meios que, não se adequando à especificidade do espírito, da alma e do corpo da pátria portuguesa, mais não poderão provocar senão a dor, o mal-estar, a angústia, a divisão, e principalmente, a estagnação, pela luta aniquilante de forças contrárias que se anulam mutuamente, conforme se tem verificado tragicamente na Europa dos últimos 50 anos”. O desafio estava lançado. Vejamos agora os resultados do 57, através do estudo do seu impacto e recepção na sociedade portuguesa letrada dos anos 50.

4. A reacção ao 57…
O aparecimento de um jornal com estas ideias não podia deixar de agitar as águas da cultura portuguesa. A reacção surgiu, como era natural, nos jornais, com a publicação de vários artigos nada simpáticos para com o 57, a par, é certo, de alguma surpresa, pela positiva, e adesão às propostas dos “novos”:

“O primeiro número de «57» suscitou, a par de numerosas manifestações de simpatia, de solidariedade e mesmo de adesão, que aproveitamos a oportunidade para agradecer publicamente, a esperada, violenta e exclamativa reacção dos conformistas”, revelava o jornal logo no número 2, de Julho, num artigo intitulado “57 e a reacção dos conformistas”. E acrescentava: “Esperada porque já conhecíamos e prevíamos os seus velhos argumentos, todos eles afinal encobrindo o imobilismo conservador das suas posições e a dificuldade manifesta de evoluírem a partir de doutrinas aprendidas para sempre na adolescência. Violenta porque, na sua impossibilidade de refutarem a nossa posição, o que fizeram apenas foi substituir a razão pela vontade. Mas a energia voluntariosa das suas palavras desvela ainda melhor a fragilidade das suas próprias posições, em equilíbrio instável sobre o passado que já não retornará ou sobre o estrangeiro, que desconhece a nossa problemática específica. Exclamativa porque, ao fim e ao cabo, desde o Padre Gustavo de 13 Almeida no «DN», até ao Dr. João Gaspar Simões, em artigo de fundo no «JN» do Porto, praticamente toda a reacção do «57» se traduziu em exclamações mais ou menos iradas”. Ou seja, para o 57 as críticas estavam desprovidas de conteúdo, desmascaravam o imobilismo existente e o anacronismo e fragilidade dos seus pressupostos.

A reacção não ficou por aqui. Evoluiu para polémica, por exemplo, entre Adolfo Casais Monteiro e António Quadros, nas páginas do Diário de Lisboa. Originou até um debate, no Centro Nacional de Cultura, com Francisco Sousa Tavares em plano de destaque nas “farpas” ao movimento: “Aí (no CNC), a reacção tomou corpo com a intervenção veemente dos conformistas que quase pareciam querer julgar alguns dos redactores presentes numa espécie de tribunal inquisitorial. O principal advogado de acusação, em nome das potências conformistas, o Dr. Francisco Sousa Tavares, dirigiu-nos uma série de perguntas de exame: mas em que consiste a filosofia portuguesa? Mas o que dizem os livros de Sampaio Bruno, que o interrogador confessou nunca ter lido apesar da gritante oposição que lhe manifestou? Não há senão uma só filosofia universal? (A escolástica?) E quase exigiram, advogado de acusação, júri, presidente do júri, público alvoraçado, que nós, pobres criminosos que ali estávamos como simples assistentes e por cortesia, justificássemos o nosso crime, a nossa petulância e, naquela atmosfera agitada e social, com meninas da sociedade (bonitas, felizmente!) a aplaudir as tiradas mais retoricamente acusatórias, provássemos, provássemos por A + B, que havia uma filosofia portuguesa, que havia filósofos nacionais, em que consistia a originalidade dos nossos filósofos, em que se distinguiam dos filósofos de outros países! E, pelo verbo eloquente do Sr. Juiz Presidente, perdão, do Presidente da Mesa, o Padre Dias de Magalhães S. J. foi pronunciada a sentença contra o réu. Condenado, o 57? Parece que sim”. Ora, nada disto demovia o 57, como o atestava a publicação de novo número do jornal. O que interessava era os leitores e, particularmente, os jovens que não “estavam dominados por conservadorismos anacrónicos e utopias e com quem estamos prontos a estabelecer diálogo”. As condenações dos “ilustres padres jesuítas” e dos “ilustres críticos literários, como o Saint-Beuve português, o papa da crítica judicativa, o famoso Dr. João Gaspar Simões” não deixaram de contribuir, é 14 certo, para que o jornal fosse lido, discutido e vendido, mas tal aconteceu, segundo os “novos”, sobretudo porque o 57 não se integrou em qualquer dos conformismos “de historiador da filosofia a um sistema feito e perfeito, de crítica literária aos valores literários franceses de há 20 anos ou de professor universitário ao estatismo cultural positivista”.

Devemos, no entanto, matizar o êxito cultural do 57, como o fez o próprio director, António Quadros. A cultura portuguesa estava dominada por um pensamento estrangeiro e pela Universidade. Como tal, a acção do 57 desenvolveu-se à margem das culturas oficiais, que dominavam o panorama cultural. E aqui, nesta marginalidade, foi relativamente eficaz, nomeadamente junto dos estudantes universitários.

Terminamos com a crítica que, em nosso entender, foi a crítica mais importante e que mais incomodou os “novos”, a sua colagem ou comprometimento com o poder vigente na altura, o Estado Novo. Crítica que englobava todo o movimento da “Filosofia Portuguesa”. Para Eduardo Lourenço, um dos autores que mais vivamente faz essa associação, a “Filosofia Portuguesa” representava a “ideologia cultural de um fascismo lusitano”. Parece-nos, no entanto, que tal associação é precipitada, e dificilmente sustentável do ponto de vista histórico. É certo que algumas das posições do Movimento 57 eram coincidentes com a orientação política do Estado Novo, como, por exemplo, a defesa das colónias, bem expressa no “Manifesto à Nação” Portuguesa”, reproduzido no último número do jornal, de Junho de 1962. Mas esta posição apenas traduz a sua visão da cultura e território portugueses, e não comprometimento político. A política, para o 57, deve depender de valores superiores e a filiação “partidária” da pátria deve ser unicamente na sua tradição, como esclarecem logo na apresentação do “Manifesto sobre a Pátria”:

“A Pátria não é defendida por qualquer partido, facção ou classe (…)”. Ora, isto não coincidia, como sabemos, com a posição do regime, sustentado num partido único, a União Nacional, e na sua trilogia Deus, Pátria e Família.

António Quadros dá-nos também algumas informações importantes quando nos diz que “o 57 não teve nenhuma ligação com os poderes vigentes nem recebeu apoios oficiais” ou quando nos esclarece do porquê de se associar a 15 Filosofia Portuguesa a uma forma de nacionalismo político. Para Quadros esta associação assentava em 3 motivos: em primeiro lugar, pelo predomínio que o 57 dava à Filosofia, em detrimento da literatura ou da política; em segundo lugar, pela defesa que o 57 fazia de um pensamento ligado ao homem concreto; finalmente, pela importância que o 57 dava à Filosofia Portuguesa, facilmente identificável com o nacionalismo político, nomeadamente para os anti-nacionalistas.

5. Considerações finais
Apesar de algumas contradições, como a defesa do messianismo português num movimento avesso a qualquer internacionalização, que pressupunha a submissão de todas as pátrias a uma pátria, a portuguesa, e de alguns exageros, como o maniqueísmo das ideias expostas, de que é exemplo a menorização dos autores extrínsecos ao Movimento 57, ou a defesa acérrima da manutenção das então colónias portuguesas, é inegável o grande contributo do 57 para a dinamização e valorização da cultura portuguesa, sobretudo pela reflexão filosófica dos seus valores, e para a defesa teórica duma filosofia portuguesa, assente num pensamento ligado ao concreto e com raízes nacionais.

Num segundo plano, não podemos ignorar o contributo que o 57 deu para o conhecimento e divulgação de pensadores importantes, através das traduções das suas obras: Hegel, Nietzsche, Freud, Stuart Mill, Bacon, Camus, Voltaire, Balzac, Walter Scott, são alguns exemplos; o papel que teve na publicação de originais de autores portugueses, como Afonso Botelho, Natércia Freire ou Augustina Bessa Luís; bem como na promoção da literatura e da arte portuguesas, a partir das muitas recensões e críticas publicadas nas páginas do 57.


Álvaro da Costa Matos 
Lisboa, 24 de Junho de 2008

 DEVO A ANTÓNIO QUADROS

Devo a António Quadros ter podido fazer o que agora, pelos vistos, é cada vez mais difícil: transmitir, passar, aos outros o que vou estudando e aprendendo. Os cursos livres do IADE, ao fim da tarde, foram momentos únicos de encontros com portugueses desejosos de saber mais sobre Portugal e os Portugueses. E isso deveu-se à generosidade de um Homem e de um Português chamado António Quadros. Que Deus o ilumine ainda mais com a sua Luz -- já que, por aqui, as trevas se vão adensando.
António Carlos Carvalho

 

E HÁ-DE SER UMA ESCOLA...
No ano de 1968, meu pai, António Quadros, conhece em Moscovo um companheiro de viagem, António Perez de Castro, que lhe fala do seu IADE em Madrid, uma pequena escola de decoração e moda. Juntos, sonham e estruturam o projecto IADE em Portugal. Convidam a fazer parte da recém criada sociedade, cinco amigos (dois espanhóis e três portugueses), alugam à mãe de Sebastião Lorena (um dos sócios fundadores), parte do seu palácio, mas é ainda preciso encontrar a pessoa certa para dirigir a escola. Lembro-me de, em Agosto de 1969, na nossa casa de férias na Praia das Maçãs, ter assistido a uma conversa entre o meu pai e um senhor de baixa estatura, com barba e uns olhos muito vivos, era o pintor Lima de Freitas. O convite foi formulado e aceite à minha frente. Pouco tempo depois, a direcção é assumida por meu pai que ocupa esse cargo até 1992, ano em que eu o substituo até Julho de 2009. O Instituto de Arte e Decoração - IADE, abre as suas portas em Outubro de 1969. A Decoração evolui e o IADE transforma-se no Instituto pioneiro do ensino do Design em Portugal. Quando, em finais de 2007, os descendentes dos sete fundadores vendem as suas acções, o IADE é já considerado como a melhor Escola Superior de Design em Portugal, conferindo ainda Licenciaturas e Mestrados em Marketing e Publicidade.
António Roquette Ferro

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A OBRA DE ANTÓNIO QUADROS

                                      Por João Alves das Neves (*)

Conheci António Quadros muitos anos antes de o conhecer – os primeiros trabalhos que li dele foram talvez os artigos que publicava nos jornais, creio que no Diário Popular, o excelente vespertino ao qual dei assídua colaboração, assim como a O Primeiro de Janeiro. Confesso que já não sei qual terá sido o primeiro que li dele, mas os seus estudos que mais me aproximaram dele – embora à distância -  foram aqueles que publicou sobre Fernando Pessoa., entre os quais saliento Vida, Personalidade e Génio do Poeta da Mensagem.

Li quase todos os seus livros e desde sempre me despertou a diversidade cultural da sua acção. Admito, porém, que me preocupavam os seus laços com certas figuras do regime político, que eu não aceitava. Mais tarde, verifiquei o meu engano em relação a António Quadros - nunca discutimos política e concluí  que estávamos mais próximos um do outro do que eu pensara. Nem eu nem ele tínhamos pretensões políticas, ainda que tivéssemos opiniões próprias, apesar de me considerar sempre adverso das ditaduras.

A explicação é necessária num mundo cada vez mais fanatizado pelos partidos. Contudo, o que mais me aproximou de António Quadros foi o seu fervor pelos mil e um aspectos da Cultura Portuguesa. com relevo para as relações entre os 8 paises de idioma comum, perfeitamente caracterizados nos seus artigos e livros. É claro que um dos nossos temas ´preferidos foi a obra de Fernando Pessoa, mas os seus comentários sobre o diálogo cultural luso-brasileiro despertaram-me o maior interesse. 

Em 1988, coordenamos na Academia Paulista de Letras, em São Paulo, o I Encontro de Estudos Pessoanos, do qual participaram destacados ensaístas brasileiros e portugueses, assinalando, entre outros, João Gaspar Simões, Teresa Rita Lopes e António Quadros, conforme ilustra a revista cultural Comunidades de Língua Portuguesa (agora, com 22 volumes publicados!). Foi no decurso desse  diálogo lusíada que da admiração intelectual passamos à amizade.

Certa vez, fomos  Lisboa e recebemos convite  para uma reunião em casa da escritora  Fernanda de  Castro  - e lá fomos encontrar um admirável grupo de escritores e artistas de vários sectores, incluindo alguns discordantes (como nós) do fascismo ainda em vigor. Recordo que um escritor que mais ou menos me conhecia estranhou a minha   presença – e eu disse que viera sem preconceito, por se tratar de um encontro de artistas e intelectuais...certamente nas condições em que ele comparecera; No fundo, a reunião foi para conversar sobre artes e letras.

Mais tarde,  ainda escutaria a voz de D. Fernanda de Castro quando, por telefone, lhe pedi  para dizer algo sobre a sua presença em São Paulo, em 1922, meses após a Semana de  Arte Moderna. Não tive resposta ao meu pedido, mas a capa de Ao fim da Memória  (II volume) traz um retrato da grande pintora do modernismo brasileiro Tarsila do Amaral – cuja cópia chegou às mãos de António Quadros  por meu intermédio – em 1962 gravei um depoimento da artista plástica e foi-me mostrado esse retrato (estava à venda por 70 mil cruzeiros!), que veio a ser comprado pelo Governo do Estado de São Paulo e que fui  rever na residência  estadual de veraneio paulista de Campos do Jordão – pedi uma fotografia que enviei ao amigo Quadros. (Há mais um retrato Fernanda de Castro, pintado por Anita Malfatti – a outra musa do modernismo no Brasil) e tenho o projecto  de consagrar às duas pintoras um comentário, pois trata-se do testemunho da ligação de Fernanda de Castro e António Ferro (em 1922) com os “futuristas” brasileiros.

Voltando, porém, a António Quadros, observa-se que na sua obra são constantes as referências, conforme testemunham os livros Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista (com uma oportuna digressão pelo Sebastianismo Brasileiro), O Projecto Áureo ou o Império do Espírito Santo; Memória das Origens, Saudade do Futuro; Portugal, Razão e Mistério; A Idéia de Portugal na Literatura Portuguesa dos Últimos 100 Anos, O Romance Brasileiro Actual e, sobretudo, as aproximações sugeridas em  Fernando Pessoa/ vida. Personalidade e génio.

Alguns pesquisadores e professores brasileiros começaram já a freqüentar a Fundação António Quadros (cujo acervo reúne também vasta documentação das obras de Fernanda de Castro e António Ferro, pais de A. Q. - e tudo leva a esperar que a Instituição, fundada há cerca de um ano em Lisboa possa contribuir valiosamente para a aproximação das Culturas Portuguesa e Brasileira.

(*) O Prof. João Alves das Neves emigrou em 1958 para o Brasil e tem contribuído para o melhor conhecimento de Portugal e Brasil, graças à sua actividade na imprensa, no ensino universitário e nos livros que publicou sobre temas luso-brasileiros (os seus 2 últimos estudos foram Autores da Beira-Serra, editado em 2008,  e Fernando Pessoa, Salazar e o Estado Novo, publicado em 2009). Quem desejar contactá-lo poderá fazê-lo pela Internet: Este endereço de e-mail está protegido contra spam bots, pelo que o JavaScript terá de estar activado para que possa visualizar o endereço de e-mail , na qual coordena 2 blogs sobre os 8 países de Língua Portuguesa http://www.revistalusofonia.wordpress.com/ e http://www.joaoalvesdasneves.blogspot.com/

João Alves das Neves



Meu caro Amigo,

Não é a primeira vez que se me oferece o ensejo de escrever uma carta aberta a uma pessoa da sua família. Nesse reino – como chamar-lhe? – do esquecimento, não sei – quem sabe? – se há memória deste. Mas, se ao menos as boas lembranças permanecem, talvez recorde, perdoe-me a estultícia, uma que escrevi a sua mãe e que, por benevolência dela e pedido seu, veio a figurar como prefácio às admiráveis Cartas para além do Tempo. Ao lembrar essa carta, é que me decidi escrever-lhe, já liberto também o meu Amigo do tempo e das suas servidões. Não são as cartas, hoje quase uma recordação antiga, a via mais incisiva para um diálogo com quem está longe, tão longe que receamos que, em tão longo e incerto percurso, essas cartas se extraviem?

É da imemorial sabedoria das nações que o tempo, e só ele, minora as dores da alma. As grandes emoções, por sua mesma intensidade, não podem durar sempre.

Tal como um corpo, que, se vivesse em permanente estado febril, não resistiria muito. As dores intensas ou desaparecem ou matam. Para elas o tempo actua como um analgésico. Mas há uma outra dor – uma dor fina, que não rompe em gritos e nos acompanha discreta e surdamente. Julgo que escrevi algures que «as grandes dores são mudas»: não se manifestam por palavras nem por brados e gestos descompostos de carpideiras.

A morte de pessoas caras, por nos unirem a elas laços de sangue e laços, por vezes mais fortes, de espírito (não escreveu, e admiravelmente, sua mãe que os amigos são a família que escolhemos?), a morte dessas pessoas, mesmo que já esperada, abre sempre uma ferida. Com a passagem do tempo, o desgosto dá lugar à saudade.

Que falta nos faz, António Quadros, com toda a sua humanidade e iniciativa. Além de obras truncadas (penso no derradeiro volume de Portugal, Razão e Mistério), que outros livros escreveria quem não se dava tréguas? Com o escritor, sentimos a ausência do homem convivente e cordial, que lançava pontes onde outros parece que fazem gala em cortá-las. Firme nas suas convicções, não recusava a mão a quem pensava de modo diferente do seu.

Sabe uma coisa? A quem tanto publicou, eu atrever-me-ia a pedir, se isso ainda fosse possível!, que escrevesse ao menos mais um livro. E que livro lhe pediria? – Uma autobiografia intelectual, na linha de Berdiaef, autor tão do seu apreço. Lembro-me que, em Ficção e Espírito, escreveu sobre o Essai d’autobiographie spirituelle, uma das tais «autobiografias exemplares», como lhes chama e enumera: as de Ruben A., de André Malraux, de Nikos Kazantzaki e de Jung. E só não inclui nelas as Memórias de um Letrado, de Álvaro Ribeiro, porque ulteriores a Ficção e Espírito.

Como imagino a sua autobiografia? Como a de um homem de cultura, mais interessado nas ideias e no mundo interior que no vazio do mundo exterior. De certo modo, umas outras Memórias de um Letrado, como as de seu mestre Álvaro, e, quem sabe, se também com uma divisão em livros –«Iniciação Filosófica», «A Idade Mimética», «A Idade Poética» –, a que viria juntar-se um último, «Vida Política». Não sendo embora um político, não se alheava do destino colectivo o desassosegado autor da Arte de Continuar Português. Mas ao contrário dele, homem sem vida social, o António Quadros conheceu e cultivou sempre gente do mundo da cultura e gente da sociedade. Por isso, a sua convivência, sobretudo com escritores, pensadores, pintores, e o seu fértil percurso existencial não deixariam de ser contemplados na sua autobiografia. Mas, como Berdiaef, da sua vida exterior falaria «apenas o suficiente para logo partir à descoberta da sua subjectividade». Ou da sua alma. Sem fechar, porém, os olhos para o mundo exterior. Nós imaginamos Berdiaef vivendo, no seu exílio francês, como um eremita, entregue todo à meditação, espiritual, filosófica e estética. Ora o António Quadros descansava dos seus múltiplos escritos, leituras, reflexões, viajando e convivendo. Não vivia isolado, mas gozava da companhia dos outros e do espectáculo do mundo.

Seria pois uma autobiografia, não monótona, mas animada. Homem de gabinete e de tertúlia, gostava de prolongar nela o gosto e o debate das ideias, com mestres que escolhera, companheiros de geração, rapazes mais novos, que procuravam todos as vias do saber, pondo em prática o método socrático. A mesa do café substituía a cátedra universitária e o exercício dialéctico o magister dixit.

Se tivesse escrito a sua autobiografia, sou levado a crer que, não obstante as diferenças, algumas afinidades apresentaria com a de Berdiaef. Identificavam-se com os grandes autores russos, visionários e escatológicos, subjectivos mas não egocêntricos, e no homem provado como Job viam a imagem mesma do Deus humanado. Berdiaef, esse teve a audácia ou o cristão atrevimento de outorgar ao homem um atributo divino: o de criador, que, através da arte, «completa» a obra da Criação. Dante ou Miguel Ângelo, Camões ou Mozart não foram demiurgos, e grandes demiurgos, e como tais «divinos»?

Pressinto o seu júbilo quando no pensador russo encontrou uma filosofia criacionista, tão cara ao espírito do meu Amigo. No Essai d’autobiographie spirituelle de Berdiaef, há essa transposição do que é subjectivo ou, mais amplamente, personalista, para um alto plano de objectividade transcendente. Ou, por outras palavras, do «odioso eu» ao tu, à alteridade ou senso do Outro.

E creio que, na sua também exemplar autobiografia, António Quadros talvez escolhesse para epígrafe aquelas palavras de Berdiaef citadas em Ficção e Espírito: «A vitória sobre o tempo mortífero foi a ideia essencial da minha vida. Este livro é franca e conscientemente egocêntrico, mas aqui o egocentrismo, sempre desagradável, é compensado pelo facto de que de mim e da minha vida faço um objecto de conhecimento filosófico.»

Depois disto, que poderei acrescentar? Apenas palavras afectuosas de despedida, com a esperança de um reencontro não sei onde nem sei quando.  

Seu velho admirador
João Bigotte Chorão 
Lisboa, 9 de Março de 2003



DEPOIMENTO DE JOÃO D’ÁVILA
NO DIA DE HOMENAGEM A ANTÓNIO QUADROS


Conheci António Quadros em 1960, durante o mês de Novembro, exactamente vinte e cinco anos depois de Fernando Pessoa ter desaparecido.

Fernando Pessoa faleceu a 30 de Novembro de 1935.

Para comemorar os vinte e cinco anos desde o desaparecimento de cena de Fernando Pessoa, a “Casa da Comédia”, Grupo de Teatro criado por Fernando Amado, promoveu e encenou no Centro Nacional de Cultura, a reposição de Fernando Pessoa, através de um espectáculo onde o Poeta brilhou como jóia rara de requintado gosto, no mais belo poema dramático, jogado entre três personagens femininas, que falam e sonham com “O Marinheiro” na mais delirante e poética sonoridade que alguma vez a língua portuguesa alcançara na sua musicalidade, onde o som da palavra, clarifica e ilumina o significado, tornando o real, sonho e

onde o sonhado é ele próprio o Marinheiro, personagem inexistente, mas presente na acção mágica do Teatro musicado, através das vozes de três mulheres veladoras duma Marta que está morta.

O Marinheiro, é o V Império.

Completava o espectáculo, uma peça de Almada Negreiros “Antes de Começar”, no qual, eu, João d’Ávila, interpretava um dos personagens.

Resolveu, decidiu e quis o Secretariado Nacional da Informação, juntamente com o Instituto de Alta Cultura e a Fundação Calouste Gulbenkian, comemorar a morte de Fernando Pessoa, há 25 anos.

Para isso, eu, então finalista do Conservatório Nacional de Teatro, fui convidado para organizar espectáculos sobre Fernando Pessoa.

Criei, juntamente com outros jovens, o “Grupo Fernando Pessoa” que se estreou no Teatro do Palácio Foz, apresentando a encenação de Fernando Amado, para “O Marinheiro”, “Fernando Pessoa e seus Heterónimos”  e “Mar Português” encenados por mim (João d’Ávila).

Durante três dias houve acontecimentos sobre o Poeta, para além da apresentação teatral do “Grupo Fernando Pessoa”, entre os quais, uma palestra sobre “Fernando Pessoa e o V Império”, feita brilhantemente por António Quadros! Foi quando nos conhecemos.

Fernando Amado, Almada Negreiros e António Quadros, abriram-me as portas do mundo Pessoano. A palavra e o “persona” de Fernando, acompanham-me desde então.

Este ano, perfazem-se setenta e cinco anos desde o desaparecimento de Fernando Pessoa, cinquenta anos desde a minha estreia no mundo da Poesia, dezassete anos sobre o desaparecimento de António Quadros.

Setenta e cinco anos símbolo e realização da Terceira Era do Espírito Santo que revive no Povo Navegador da Nave Terra.

Povo, não já Profeta.

Povo Poeta, não anunciador. Presente! Agora! No sonho vivido do V Império.

O “Grupo Fernando Pessoa” apresentou-se também em dois “Festivais do Algarve”, imaginados e criados por Fernanda de Castro, grande Senhora das Artes, da Poesia e do Teatro, exactamente nos anos de 1962 e 1964.

Há cinquenta anos que sou admirador dessas duas grandes Personalidades do Século XX, Fernanda de Castro e António Quadros.

Recordo-os com saudade do futuro que na essência de ser português, é o som das palavras oníricas, mensageiras, arquétipos que fluem como Poesia amante da sabedoria e são, Número, Universo, Sonho, que se tece nas malhas do V Império.

Recordo-os com a admiração e saudade presente num ser que vive o sonho de ser tudo em todas as coisas.

Para todos, as maiores saudações e um sentido abraço do
João d’Ávila
21 de Março de 2010

 

ANTONIO QUADROS – O PERFIL DE UM PENSADOR

Não existe, infelizmente, proporção entre a informação biobibliográfica escrita publicada pela imprensa e a informação veiculada pela Internet a respeito do pensador e escritor português António Quadros(14.07.1923-21.03.1993). É profundamente precária a informação sobre o escritor na Internet. Isso prejudica muito o conhecimento do pensador por parte dos estudantes de nossas instituições universitárias muito dependentes das informações da Internet e a merecida divulgação de sua memória. Após sua morte em 1993, seus amigos mais próximos do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira de Lisboa, do grupo da Filosofia Portuguesa, e de outras correntes independentes ou não, promoveram relevante movimento em favor de publicações destinadas a testemunhar a memória do extinto escritor. Sublinhamos neste caso a publicação colaborada por vários autores, intitulada António Quadros, levada a cabo pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileira em 1993 e a Sabatina de Estudos da Obra de António Quadros, com a colaboração de vários autores, publicada em Lisboa pela Fundação Lusíada em 1995.

Com a intenção de preencher um pouco esse vazio na Internet, resolvemos escrever este pequeno ensaio. De um lado, para darmos aos leitores alguns dados biográficos e de produção crítica e literária do Pensador António Quadros e, por outro lado, para oferecermos algumas linhas de pensamento que formam seu específico perfil intelectual no seio da cultura portuguesa de que foi apaixonado e competente intérprete.

Enquanto ensaio feito para fins de informação, declaramos este trabalho provisório na medida em que aguardamos a oportunidade de, em Lisboa, junto a fontes credenciadas, podermos melhorá-lo, completá-lo e concluí-lo. Para a parte biobibliográfica servimo-nos substancialmente e provisoriamente das informações oferecidas pelas orelhas das publicações do biografado, pelos mini-currículos que muitas vezes acompanhavam a editoração de algumas obras e pelas achegas dadas pelos pesquisadores e seus melhores biógrafos. Entre estes, cito o artigo de João Bigotte Chorão em Biblos-Enciclopédia da Literaturas de Língua Portuguesa, vol. IV, Lisboa: Editorial Verbo, 2001 e a síntese de Paulo Alexandre E. Borges, publicada em Logos –Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. IV, Lisboa S.Paulo, 1992.

I – VIDA E OBRA
Trata-se de um dos mais ativos e produtivos escritores portugueses do século XX. Oriundo de uma família de intelectuais, teve em seu pai Antônio Ferro, amigo de Fernando Pessoa e editor do primeiro número da Revista “Orpheu” e na mãe, a poetisa Fernanda de Castro, incentivadores para uma avançada cultura, erudição e apego às letras.

Nascido em Lisboa em 1923, freqüentou em sua juventude, a Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa onde ganhou o diploma de Licenciado em Ciências Histórico-Filosóficas.
Sua trajetória de intelectual e de escritor, começou muito cedo. Foi um dos fundadores dos jornais de cultura Acto (1951), 57 (1957) e da revista Espiral.

Tornou-se um dos diretores do Serviço e Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, sucedendo a Branquinho da Fonseca e a Domingos Monteiro com quem trabalhou desde o início deste serviço. Foi um dos organizadores e membro da primeira direção da Sociedade Portuguesa de Escritores.Como poeta, ficcionista, crítico, pensador, filósofo e cientista da cultura, cultivou com brilho a literatura de idéias.

É claro que os arquivos da família Ferro, a Biblioteca Nacional de Lisboa, o Centro Nacional de Cultura, as editoras Europa-América, Lello & Irmão Editores e Publicações Dom Quixote, e os testemunhos dos membros ainda vivos do grupo da Filosofia Portuguesa e seus amigos intelectuais deverão ter ainda muitas memórias, informações e um rico arquivo bibliográfico para enriquecer sua memória. Apesar de estarmos longe dos arquivos lusitanos, vamos tentar agregar, mesmo assim, alguns dados ao alcance do nosso conhecimento para que não se prolongue por mais tempo na Internet o injusto vazio da memória desta grande figura da cultura portuguesa do século XX.

Há como homônimo na cultura lusitana o célebre artista plástico António Quadros, nascido em Viseu, que é um dos muitos nomes do poeta João Pedro Grabato Dias (n. Viseu, 9.07.1933-01.07.1994), ligado também à cultura moçambicana. Advertimos o leitor para que não caia na confusão misturando os dois autores. Nosso biografado é o escritor Antônio Quadros, lisboeta, fundador do movimento “57” e um dos expoentes maiores do grupo da filosofia portuguesa, criador e diretor da revista Espiral, um veiculo importante de cultura em Portugal nos anos 60 em Portugal. É desse que nos ocupamos. Quadros além de escritor de ficção, é um crítico, um filósofo, um culturalista, um conhecedor profundo da cultura portuguesa e um combatente da legitimidade e da originalidade do pensamento português. Toda a sua vida foi sacrificada na luta por estes valores. Os valores da tradição que nos dão o perfil histórico português antes e depois da estrangeirização operada desde D. João III. São esses valores, que formam o perfil identitário português, a primeira grande temática dos modernos analistas da história da cultura portuguesa, a partir de Sampaio Bruno, passando por Teixeira de Pascoaes, e por Leonardo Coimbra.
Acompanhei durante muito anos a atividade literária e filosófica de Quadros e fomos companheiros de luta defendendo a bandeira da legítima cultura portuguesa. Convivemos no grupo da filosofia portuguesa liderado por Álvaro Ribeiro e José Marinho juntamente com Afonso Botelho, Orlando Vitorino, Antonio Braz Teixeira, Antonio Telmo e outros.

Foi senhor de uma cultura rica, variada e enorme, sempre atento às correntes de pensamento crítico e filosófico. Cultivou uma profunda admiração pelas teses franciscanistas que vinham da tradição portuguesa desde a Idade Meia, veiculadas modernamente por Guerra Junqueiro, por Antônio Correia de Oliveira, pela Faculdade de Letras do Porto onde o filósofo Leonardo Coimbra, autor de uma Visão Franciscana da vida, passou aos seus discípulos Agostinho da Silva, Álvaro Ribeiro, José Marinho e Delfim Santos essa admiração. A par das teorias leonardianas, Antônio Quadros, ainda jovem, acompanhou o movimento existencial defendido por Jaspers, e Heidegger e o existencialismo de Jean-Paul Sartre, e também a fenomenologia que fazia suporte aos movimentos existencialistas e existenciais defendidos no após-guerra, sobretudo na década de 1950. Dotado de um profundo amor às coisas portuguesas e defendendo como tese o estranhamento que os lídimos representantes da cultura portuguesa sentiam pela dominação cultural estrangeira que a universidade portuguesa acolhia com estranha devoção, Quadros, na linha do neogarrettismo, e da escola de Teixeira de Pascoaes, de Leonardo Coimbra e de Alvaro Ribeiro, se postou na trincheira da defesa dos valores culturais portugueses, incluindo os valores espiritualistas que vinham da Idade Media Portuguesa, valores ortodoxos e heterodoxos que atravessaram a história com a bandeira do culto ao Espírito Santo, e que ainda hoje se manifestam em festas populares nas ilhas dos Açores e no interior de Goiás, em Pirenópolis, Brasil, e outros lugares. Tudo isto representa uma busca qualificada dos valores da cultura e uma renovação no campo do espírito. É preciso analisar com profundidade todo este trabalho desenvolvido por Quadros para resgatar o lado original da cultura portuguesa, a favor da qual se bateu a vida toda. Uma questão que o levava a se perguntar insistentemente: "Quem somos? Que deve a nossa identidade aos nossos pais e avós? Como nos marcaram eles na espiral genética e cultural? Até que ponto devemos ser-lhes fiéis e a partir de onde podemos ou devemos resistir-lhes afirmando a nossa liberdade? Para entendê-lo, precisamos de segui-lo na construção da sua obra e nas suas principais linhas de pensamento. Organizou com Branquinho da Fonseca e Domingos Monteiro o Serviço das Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, de que foi Inspetor Geral e depois Diretor até 1981. Foi um dos fundadores do Intituto de Arte e Design, IADE, de que foi Diretor e Professor em História da Arte. Foi Professor de Deontologia da Comunicação social na Universidade Católica de Lisboa, no Curso de Ciências da Informação. Foi membro da INSEA –International Society for Education through Art, órgão consultivo da UNESCO, de que foi delegado em Portugal até 1981.

Participou de vários congressos, simpósios, colóquios, e seminários, onde apresentou comunicações. Destacamos:
Massificação, uniformização e criatividade, no Colóquio “Nuevas Metas para la Humanidad”, Madrid 1982; Introdução à Teoria da Identidade Portuguesa, no “Seminário sobre a Expansão da Língua e da Cultura Portuguesa no Mundo”. Universidade de Santa Bárbara, Califórnia, Santa Bárbara, USA, 1983; O Homem Português, no Colóquio “Que cultura em Portugal nos próximos 25 anos?”. Lisboa: Biblioteca nacional, 1983; Ortega y Gasset, filósofo da razão vital, no Centenário do Pensador: Lisboa, Fundação Gulbenkian, 1983; Leonardo Coimbra: Fundação Eng. António de Almeida e Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 1983; Heteronímia e Alquimia, no “Simpósio Internacional sobre Fernando Pessoa”, efetuado na Universidade Vanderbilt, em Nashville, USA, em 1983; O Epos e o Mythos na Literatura Brasileira Moderna, no “I Congreso Português de Literatura Brasileira”. Fundação Eng. António de Almeida, Porto, 1984; Introdução ao Portugal Encoberto, no Colóquio “Que projecto para Portugal?”, integrado nas celebrações do Dia de Portugal. Viseu, 1984.Participou também do “Seminário sobre Fernando Pessoa” realizado em Paris em 1979, no Centro Gulbenkian de Cultura,

PRODUÇÃO LITERÁRIA, TEÓRICA E CRÍTICA
Introdução a uma estética existencial, 1954
A angústia do nosso tempo e a angústia da universidade, 1956
A existência literária. Ensaios. Lisboa: Sociedade de Expansão Cultural, 1959
Fernando Pessoa. A obra e o Homem. Lisboa: Editora Arcádia, 1960
O Movimento do Homem, 1963
Crítica e Verdade. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1964.
O espírito da cultura portuguesa, 1967
Ficção e Espírito. Lisboa, 1971
Portugal, entre ontem e amanhã, 1976
A arte de continuar português, 1978
Fernando Pessoa. Vida,Personalidade e Gênio. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1981.
Introdução à filosofia da história, 1982
Poesia e Filosofia do Mito sebastianista. 2 volumes. Lisboa 1982-1983. Prémio de Ensaio do Município de Lisboa.
Fernando Pessoa. A Obra e o Homem . Iniciação Global à Obra. Lisboa, Arcádia, 1982, 2 vols.
Portugal. Razão e mistério. I: Introduçao ao Portugal arquétipo. A Atlântida desocultada. O país templário. Lisboa: Guimarães, 1986.
Fernando Pessoa. Obra Poética e em Prosa. Introduções, organização, bibliografia e notas de Antônio Quadro e Dalila Pereira da Costa. Volume I. Poesia. Porto: Lello & Irmão Editores, 1986.
Na Introdução cronológico-biográfica, estudam-se importantes aspectos do pensamento português.
Fernando Pessoa. Obra poética e em prosa. Volume II. Prosa. Organização, introduções e notas de Antônio Quadros. Porto: Lello & Irmão Editores, 1986. 1352 pp. Os textos são precedidos de um importante estudo de A. Quadros "Situação de Fernando Pessoa na cultura portuguesa".
Fernando Pessoa.Obra poética e em prosa. Volume III. Prosa : Estética, teoria e história da literatura. Páginas de reflexão filosófica. A Realidade transcendente. Sobre Portugal e o homem português. Pensamento político (páginas polêmicas e doutrinárias). Teoria econômica. Poemas traduzidos do inglês. Bibliografia. Apêndice. Introduções, organização, bibliografia e notas de Antônio Quadros. Porto: Lello & Irmão Editores, 1986.
Na Introduçao cronológico-biográfica, estudam-se importantes aspectos do pensamento português).
Portugal. Razão e mistério. Volume II. O projecto áureo ou o Império do Espírito Santo. Lisboa: Guimarães, 1987.
A Idéia de Portugal na Literatura Portuguesa dos últimos cem anos, 1989
O Primeiro Modernismo Português - Vanguarda e Tradição, 1989
Memórias das Origens. Saudades do Futuro. Valores, mito, arquétipos, idéias. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1992.
Estruturas simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa, 1992.

POESIA
Além da Noite, 1949
Viagem desconhecida, 1952
Imitação do Homem, 1966

FICÇÃO
Anjo branco, anjo negro(contos), 1960
Histórias do tempo de Deus (contos), 1965, Este livro ganhou o Prémio Ricardo Malheiro, da Academia de Ciências de Lisboa e o Prémio de Novelística da Casa da Imprensa)
Pedro e o Mágico, 1973. Prémio Nacional de Literatura Infantil.
Artigos, colaboração em jornais e revistas, prefácios e introduções a livros

Quadros, António. "Mestre de mestres". Didaskalia 17, No. 1 (1987): 165-178. (Estuda o pensamento filosófico e pedagógico de Leonardo Coimbra).
"A filosofia portuguesa, de Bruno à geraçao do 57". In: Democracia e Liberdade, julho-dezembro (1987), número especial: Filosofia portuguesa actual, pp. 7-69.
“A Morte antes da Morte”.In: “Sílex”, Lisboa, n.° 4, Set. 1980, pp. 3-8
“A Propósito das «Cartas de Fernando Pessoa a Armando Côrtes-Rodrigues». In: Modernos de Ontem e de Hoje. Lisboa, Portugália, 1947, pp. 279-290
“Da Literatura Portuguesa. Ensaio de Interpretação Fenomenológica”. In: “Espiral”, Lisboa, n.os 4-5, Inverno 1964-65, pp. 57-71
“Dos Mitos dos Heterónimos aos Heterónimos dos Mitos”. In: Actas de Um Século de Pessoa. Encontro Internacional de Estudos Pessoanos (Lisboa, 1988). Lisboa, Secretaria de Estado da Cultura, 1990, pp. 247-251
“Fernando Pessoa (1888-1935)”. In: António Quadros «Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista». Lisboa, Guimarães Ed., 1982, vol. 1, pp. 113-1.30
“Fernando Pessoa, Filósofo”. In: “Diário Popular”, Lisboa, 12 Jun. 1969
“Fernando Pessoa, Patriota.” In: “O Dia”, 1, 15 e 22 Mar. e 19 Abr. 1980
“Fernando Pessoa. As Mensagens da «Mensagem». In: António Quadros «A Ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos Últimos Cem Anos». Lisboa, Fundação Lusíada, 1989, pp. 154-168
“Heteronímia e Alquimia ou Do Espírito da Terra ao Espírito da Verdade (1978)”. In: Actas do II Congresso de Estudos Pessoanos (Nashville, 1983). Porto, Centro de Estudos Pessoanos, 1985, pp. 457-474
Homenagem a Fernando Pessoa. Com os excertos das suas cartas de amor e um retrato por Almada Negreiros. Coimbra, 1936
“Introdução à Vida e à Obra Poética de Fernando Pessoa.” In: Fernando Pessoa - Mensagem e Outros Poemas Afins. Lisboa, Europa-América, 1986, pp. 17-95
“Introdução -II- Poemas a Portugal, 1913-1935”. In: Fernando Pessoa. Obra Poética e em Prosa. Porto, Lello & Irmão, 1986, vol. I, pp. 103-105 e 1137-1144
“O Existencialismo de Fernando Pessoa”. In: António Quadros «A Existência Literária. Lisboa, Sociedade de Expansão Cultural, 1959, pp. 121-128
“Pessanha e Fernando Pessoa: de São Gabriel à Mensagem”. In: “JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias”, Lisboa, n° 422, 7-13 Ago. 1990
“Poesia, Drama e Metamorfose em Fernando Pessoa”. In: “Jornal de Letras e Artes”, Lisboa, ano I, n.º 1, 4 Out. 1961, pp. 6
“Poesias Inéditas de Fernando Pessoa (1930¬-35)”. In: “Diário de Notícias”, Lisboa, Sup. Artes e Letras, 14 Abr. 1955
“Resposta ao «Inquérito sobre Fernando Pessoa”. In: “Rumo”, Lisboa, n.º 60, Fev. 1962, pp. 139-140
“Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa, Poetas da História”. In: A Teoria da História em Portugal. II – A Dinâmica da História. Lisboa, Ed. Espiral, Lisboa, s.d. pp. n.° 260, pp. 210-213

Entrevistas
“Mensagem Transmite Arquétipos Universais”. Entrevista a Cecília Barreira. Lisboa, “Diário de Notícias”, 28 Mai. 1989

III – PRINCIPAIS LINHAS QUE CARACTERIZAM SEU PENSAMENTO E PRODUÇÃO LITERÁRIA E CRÍTICA

No estudo da obra e do perfil intelectual de António Quadros, é fundamental detectar algumas linhas básicas que caracterizam sua luta cultural e toda a sua personalidade de pensador e de escritor. Entre elas, colocamos: o franciscanismo, a paidéia e a identidade portuguesa, o estudo da espiritualidade e da simbologia heterodoxa do movimento religioso do Espírito Santo em Portugal desde o reinado de D. Dinis, no século XIV, o império do Espírito Santo, a existência literária portuguesa, o marco da especificidade da culturalidade portuguesa, a existência da filosofia portuguesa, a figura poética e pensadora de Fernando Pessoa, o modernismo português, os marcos referenciais do movimento da Presença e do Neo-realismo Português, o maravilhoso, o sagrado e o mítico, artes símbolo e arquétipos, Agostinho da Silva, profeta do III milênio, misticismo e espiritualismo na cultura portuguesa, existencialismo como problemática da existência e a fenomenologia como método de análise e interpretação,etc. E muitas mais linhas são passíveis de estudo em sua obra.

3.1. Franciscanismo:
O Franciscanismo é uma das pesquisas preponderantes de Antônio Quadros dentro de sua busca no âmbito da espiritualidade portuguesa, que tem em Santo Antonio de Lisboa, no culto do Espírito Santo, e no misticismo a variante do franciscanismo, presente na simpatia de Leonardo Coimbra em A visão Franciscana da Vida e em suas próprias crenças pessoais. Não é sem razão que António Quadros é autor de um estudo sobre a espiritualidade cristã na moderna poesia portuguesa, onde dá especial atenção a poemas de Rui Cinatti, de Natércia Freire e José Blanc de Portugal.
No oitavo centenário do nascimento de S. Francisco de Assis escreve sobre “São Francisco, ontem e amanhã”, onde analisa a trajetória humana e espiritual de total doação do Poverello, o que representa para Quadros “a odisséia de uma vida radicalmente ofertada” que contrasta com a mediocridade egoísta da maior parte dos humanos que lutam por ligeiras satisfações.

3.2. Paidéia e identidade portuguesa:
Se há alguma tese fundamental perseguida por Antônio Quadros que merece destaque é aquela que poderíamos chamar de busca da identidade portuguesa. Em seu livro Memórias das Origens. Saudades do Futuro. Valores, mito, arquétipos, idéias, tem um capítulo dedicado à paidéia, história e identidade. Se quiséssemos perceber, de entrada, o que o preocupa é só analisar e ver que ele pretende sobretudo chamar a atenção para a paidéia portuguesa, que aristotelicamente seria uma chamada da educação para a plenitude da cidadania que é atingida quando alguém se integra na sociedade em que vive e contribui para sua perfeição e esplendor. Para atingir este estado da paidéia portuguesa é imprescindível a liberdade criadora para construir o reduto existencial em que os cidadãos se movem. Quando Antônio Quadros se lembra de expor para os portugueses sobre a paidéia portuguesa é para lhes dizer que a paidéia não abrange apenas a educação formal exigida a todo o que deseja dizer-se civilizado mas que ela requer também uma convergência onde entram fatores formativos, culturais e éticos assentes sobre “um tecido de valores religiosos e éticos”. Admitido este pressuposto, Quadros diz aos portugueses que é imprescindível uma “estrutura cultural autônoma e vivaz” para fundamentar uma independência acional. A partir daqui torna-se necessária a construção de uma paidéia que saiba avaliar as tradições de um povo com a capacidade criativa ou criacionista do próprio povo. A defesa de uma independência de ação parte portanto da defesa de uma autonomia cultural e política. Parar a capacidade criacionista, deixar de aceitar o desafio do crescimento é ditar a estagnação e a decadência. Analisando os ciclos da história portuguesa, Quadros analisa as linhas que fizeram se afirmar o espírito lusitano nos vários desafios históricos e advoga, nas circunstâncias hodiernas do Portugal europeu, uma razão de ser coletiva para Portugal, “uma alma e um destino a cumprir na História”, cuja base só pode ser um estrutura cultural de nação, que faz a essência do homem português.

Num futuro próximo desenvolveremos as outras coordenadas do Império do Espírito Santo, da Filosofia Portuguesa. Vamos ocupar-nos agora da existência literária e da Literatura Portuguesa.

3.3. A existência literária. A Literatura Portuguesa:
Além de poeta e ficcionista, Quadros é um bom analista do fato da literatura Portuguesa. Nascido em berço de ouro, onde havia toda a informação sobre Fernando Pessoa e a Geração de Orpheu, Antonio Quadros desde cedo se familiarizou com os nomes de Pessoa, Sá-Carneiro e Almada Negreiros. A Biblioteca da casa de Quadros era especificamente rica em bibliografia sobre o modernismo português e a geração de Orpheu. Sua iniciação com a poesia e o pensamento de Pessoa, fez dele um do maiores especialistas pessoanos contemporâneos. Estudou, pesquisou, comentou, analisou e editou as obras gerais de Fernando pessoa, nas duas melhores edições que há em Portugal e que são as edições da obra completa da editora Europa-América e os três volumes em papel Bíblia da Lello e irmão Editores, do Porto. Além de Pessoa, há vários escritores e obras que passaram por sua análise. “A existência literária”, publicada em 1959, é um livro interessante para se julgar em sua significação evolutiva dentro da obra do autor. O livro é publicado nos anos áureos em que Quadros debatia a cultura portuguesa, dois anos depois de seu jornal do movimento 57 ter sido lançado e quando o debate da filosofia portuguesa corria animado no café Palladium, na Avenida da Liberdade, em Lisboa, sob a batuta dos dois mestres Álvaro Ribeiro e José Marinho, com ouvintes e debatedores especiais como Sant’Anna Dionísio e outros. Neste livro destaca-se o teórico, o crítico e sobretudo o pensador literário. A estrutura do livro protagoniza o caso literário português. Em sua essência, o livro além de um capítulo sobre a teoria crítica do gêneros literários, tem como centro o notável capítulo III dedicado ao romance e poesia do neo-realismo português. Ao falar da poesia disserta sobre a imaginação e a magia da poesia de José Gomes Ferreira, neo-relista. E depois explana sobre o valor e a crise do Neo-realismo. No capítulo são destacados dois romances: “Fogo na noite escura” de Fernando Namora e “Os avisos do destino” de José Régio. Um e outro incluem na intriga romanesca o debate sobre a crise universitária e ao fazê-lo denunciam o método pedagógico estrangeirado da universidade portuguesa em desencontro frontal com a idealidade do jovem universitário português. Neste plano, Quadros aborda a estrangeirização da universidade e os reflexos dessa estrangeirização nos escritores portugueses desde os tempos de D. João III até aos Vencidos da Vida no século XIX. Em contraste com esse vazio identitário, Quadros elogia o romance de Fernando Namora que valoriza os universitários marginalizados que buscam seus próprios caminhos apesar do ambiente numa universidade positivista e estrangeirada.

Ainda no parâmetro do livro A existência literária, Quadros aborda no capítulo IV o Existencialismo de Fernando Pessoa e a personalidade literária de Vergílio Ferreira, romancista existencial para terminar com um artigo opondo a angústia germânica (fechada) à saudade portuguesa (que abre uma janela para a esperança). No capítulo V, além das tendências contemporâneas da literatura portuguesa, desenvolve dois ponto de vista sobre a obra de José Régio e consagra aos contos de Domingos Monteiro uma atenção especial, mostrando o universo novo do romance português e as novas tendências que grassavam na literatura portuguesa nos finais da década de 50.

Por esta amostragem de Existência Literária é fácil entender que as linhas de pesquisa de Antônio Quadros visam a gênese matricial da cultura portuguesa. Dentro deste horizonte, ele desenvolverá suas teses preferidas no jornal “57” e em todas as sua obras. Como complementação, neste quadro da Paidéia portuguesa, Quadros participará ativamente do debate nacional sobre a Filosofia Portuguesa. Grande parte de sua obra girará em torno do Modernismo Português, do movimento saudosista de Teixeira de Pascoaes, e sobretudo da obra de Fernando Pessoa . Defenderá a tese de que uma cultura tem de ser fundamentada numa base filosófica. Como ficcionista brilhante, o estudo do maravilhoso, do sagrado e do mítico ocupa relevante papel em suas exposições. Na fidelidade aos mestres que venerou e honrou, deu uma atenção especial a Agostinho da Silva, profeta do terceiro milênio e a Álvaro Ribeiro, mestre da Paidéia filosofia portuguesa.

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ESTUDOS SOBRE A OBRA DE ANTÓNIO QUADROS
AA.VV. António Quadros. Lisboa: Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 1993
AA.VV. Sabatina de Estudos da obra de António Quadros. Lisboa: Fundação Lusíada, 1995
BORGES, Paulo Alexandre E.. “Quadros(António)”. In: Logos- Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Vol. IV. Lisboa- São Paulo: Editorial Verbo, 1992.
CHORÃO, João Bigotte. “Quadros(António)”. In: Biblos- Enciclopédia das Literaturas de Língua Portuguesa. Lisboa- S.Paulo: Editorial Verbo, 2001.
GAMA, Manuel. "O movimento 57 e a filosofia portuguesa". Revista Portuguesa de Filosofia 44, No. 3-4 (1987): 383-400. (Inicia-se em 1957, com o Jornal "57", o "Movimento de Cultura Portuguesa", com vários membros do chamado "Grupo da Filosofia Portuguesa.
João Ferreira
Junho de 2005
António Quadros

Num blog que se chama Geometria do Abismo escrevi sobre ele: «se há momentos de uma filosofia que marcam um destino, o que ele escreveu sobre o mal do positivismo traçou-me a rota mental». Devo-lhe pois tudo. Sim, foi António Quadros quem me deu a conhecer a filosofia portuguesa, quando ela já era um corpo sedimentado e sistematizado. Pela sua mão fui percorrendo os caminhos de um Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, Santana Dionísio, José Marinho, para chegar a Brás Teixeira, Sinde Monteiro, Elísio Gala, a tantos outros que estou a ofender não lhes mencionando o nome. Conheci entre os vivos apenas Pinharanda Gomes, porque o entrevistei. O meu modo isolado de ser vedou-me outras companhias. Guiado pelas veredas íngremes da saudade e pelas alturas da Tradição, desvendando lápidas ocultas e submetido a sortilégios e outros encantamentos de um mundo maravilhoso,  foi sobretudo através dele que aprendi que só há uma filosofia magnífica da existência fora do que sofremos ser o raquitismo do existente, nas terras a que a razão não ascende, de que o racional ignora os segredos. A transcendência do humano alcança-se com essa leveza de asas, o céu como horizonte. Pressente-se quando por detrás de um sistema tranquilizante está uma angústia mansa. Eis a biografia deste homem. Um grande Homem. Deixou, mais do que uma obra, um exemplo. Faz hoje dezassete anos que se escondeu da nossa visibilidade para que o recriássemos com os remorsos da nossa memória. Ficou a obra como testemunho de que esteve aqui.

José António Barreiros
21 de Março de 2010

 

ANTÓNIO QUADROS

O homem inteiro, rijo, de gestos elegantes,
Impecavelmente vestido, de voz franca,
Com uma presença de sabedoria e educação
Supremas, veio cumprimentar-nos, a nós,
Os petizes sem nome. A mão era forte,
Segura, fraterna. Um mestre, um sábio?
Mais que mestre e sábio: um cavaleiro
De Portugal, porque só os que demandam,
Os que conhecem o valor do sacrifício e
O caminho na noite trazem para os outros
Um coração fundo e palpitante nas mãos.

Depois cerraram-se cortinas, lajes, portas.
Não a memória, não o exemplo e o Graal.
 
Autor: Klatuu Niktos



AS BIBLIOTECAS ITINERANTES

A propósito do Dia Mundial do Livro e dos Direitos de Autor, vieram-me à memória os tempos em que António Quadros, então responsável pelas Bibliotecas Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, percorria Portugal de aldeia em aldeia, de biblioteca em biblioteca. Acompanhava-o muitas vezes e gostava de observar o ritual dos que, a pé, iam chegando; aproximando-se como que de um santuário, escolhiam, calma e cuidadosamente, os livros que guardariam, leriam e releriam, até que a Biblioteca sobre rodas, um mês depois, voltasse a passar pela aldeia.

Por iniciativa de António José Branquinho da Fonseca, escritor e conservador-bibliotecário, as Bibliotecas Itinerantes criadas em 1953, representaram durante anos, uma das poucas hipóteses de leitura para quem não vivia nas grandes cidades. Nessa época, as crianças não costumavam frequentar Bibliotecas e o acesso aos livros não era tão fácil como hoje, principalmente nas terras mais isoladas de Portugal mas as crianças liam e sonhavam muito mais, beneficiando das aventuras e experiências escritas por grandes autores. Um livro era, de facto, um grande amigo. Deparei recentemente, no blog www.santa-nostalgia.blogspot. com o testemunho do seu autor que, tendo vivido numa dessas aldeias, escreveu: "São inesquecíveis as recordações da chegada da Biblioteca Itinerante, com a sua carrinha enigmática, a Citroen HY, que só por si irradiava uma magia fascinante. A que vinha ao largo da minha aldeia era de cor verde velho. Tinha duas portas na parte traseira que se abriam de par-em-par e uma parte superior que abria para cima, para dar acesso ao fantástico mundo dos livros, da leitura e do fascínio das histórias e das imagens. Essa aura de reino maravilhoso era reforçada pelo tipo de leitura dos primeiros anos, onde preferencialmente eu escolhia livros de contos de fadas, repletos de reinos, reis, rainhas, princesas, gigantes, anões, fadas, feiticeiras e todo o resto da família de seres que povoam o imaginário infantil. (...) toda a malta da minha geração tem uma profunda memória e admiração pelo serviço da Biblioteca Itinerante, já que graças a ele viajámos no tempo  por reinos maravilhosos, com histórias fascinantes e aprendemos coisas do mundo que nos rodeia. Enfim, crescemos ajudados por tudo quanto aprendemos através dos livros que num momento mágico chegavam ao largo da aldeia naquelas carrinhas maravilhosas".
 

Mafalda Ferro 
In Newsletter 11 da Fundação António Quadros
Maio de 2010.

Caros Colegas,
Caros Alunos,
Senhoras e Senhores

Em primeiro lugar o meu agradecimento ao Professor Carlos Duarte pelo convite que me endereçou para, neste dia do IADE, em que se celebra a memória do ilustre fundador desta casa, Dr. António Quadros, poder invocar a sua figura e acções inspiradoras em prol da renovação da cultura e do ensino artístico em Portugal.
Pensador, crítico e professor, também poeta e ficcionista, filho de dois vultos da cultura portuguesa do século XX, os escritores Fernanda de Castro e António Ferro, António Gabriel de Quadros Ferro de seu nome completo, foi, como certeiramente escreveu o Dr. Mário Soares, um homem movido por interesses espirituais, fiel às suas convicções, aberto ao diálogo, amigo do seu amigo.
Respeitador da inteligência e capaz de a despertar naqueles que tiveram o privilégio de ser seus alunos ou que com ele conviveram, António Quadros era intransigente consigo próprio, mas de carácter tolerante para com os outros e tinha como seu Pai, essa rara qualidade de congregar à sua volta gentes dos mais diferentes saberes e quadrantes.
Penso que foi essa sua atenção à pluralidade de ideias, que mais acentuou a sua paixão pela crença e vontade na unidade nacional – algo de que mais uma vez tanto se fala e pouco se constrói –, unidade que via não como estreita identidade, mas antes, como expressão de uma universalidade humanista.
Insatisfeito, António Quadros era assombrado pelos épicos que incansavelmente estudou na História e Cultura de Portugal, explorando no pensamento de Padre António Vieira a Fernando Pessoa o propósito de determinar uma razão de ser para Portugal e as virtualidades do mito e da saudade como sua expressão, sobre os quais escreveu com integridade e visão.
Homem livre, pertenceu à elite mais merecedora dessa designação: aqueles cuja influência transcende o prestígio de qualquer cargo, título ou função, radicando antes no poder intelectual e moral. Indiferente às modas, opunha à sociedade do espectáculo a Cultura e o sentido da História, atento aos sinais da sociedade contemporânea já em 1970 escrevia como estes eram, e cito:
clarificantes da distância que vai tardando a preencher-se entre os conceitos intelectuais e científicos de uma sociedade dita “desenvolvida” (a sociedade da abundância) e a pobreza moral e ética de certos estratos desta mesma sociedade.
Foi a este homem, intransigente na defesa e valorização dos elementos essenciais da cultura portuguesa como escreveu o Professor Artur Anselmo, no Diário de Notícias poucos dias após a sua morte em 21 de Março de 1993, que se deve a criação do IADE, sigla que rapidamente representou um projecto de renovação no âmbito do ensino artístico em Portugal.
António Quadros reuniu para essa tarefa um grupo de figuras de referência encabeçado pelo pintor, ilustrador, ensaísta e professor José Maria Lima de Freitas, que convidou para o cargo de director. Para professores desafiou outros nomes igualmente prestigiados da cultura artística, com destaque para o arquitecto, fotógrafo e pintor Manuel Costa Martins – fundador logo em 1970 do Curso de Fotografia, precursor da actual licenciatura em Fotografia e Cultura Visual –, e para o pintor, decorador e designer gráfico Manuel Lapa. Por sua vez, Mestre Lapa com o apoio incondicional de António Quadros convidou para assistentes, o pintor, designer de exposições e professor Manuel Costa Cabral, e o pintor, museólogo, especialista em cerâmica e azulejaria, Rafael Salinas Calado, a quem coube o gesto fundador do Curso de Cerâmica que, tal como o Curso de Fotografia de Costa Martins, começou a funcionar em 1970.
A todos o Instituto ficou a dever contributos decisivos para encetar uma experiência pedagógica que rapidamente evoluiu de um curso de Decoração (de início IADE, implicou Instituto de Arte e Decoração), para uma prática consentânea com uma nova disciplina do século XX, o Design, que só nos fins dos anos 50 e principalmente na década de 60 começava a ter expressão em Portugal.
Este carácter pioneiro no ensino do Design tornar-se-á ao longo dos anos a mais-valia da instituição, junto com o papel de constante intervenção cultural na sociedade portuguesa que António Quadros reservou ao IADE fosse através dos Saraus Culturais onde, para além da sua figura tutelar, intervieram muitas e variadas personalidades, como os escritores David Mourão-Ferreira, Natália Correia, José Carlos Ary dos Santos, José Gomes Ferreira, o pensador e ensaísta Agostinho da Silva, o cineasta Manuel de Oliveira; conferências e exposições sobre temas da cultura artística portuguesa com criadores como Tomaz de Mello, Eduardo Nery, Maria Flávia de Monsaraz, João Vieira, ou com estudiosos e curadores, casos de Egídio Álvaro e do engenheiro Santos Simões (fundador do Museu do Azulejo), ou ainda, com particular interesse para a História do Design em Portugal, a conferência do arquitecto e designer Eduardo Anahory sobre “A importância do design e dos designers”, tema ainda inabitual nos debates portugueses em 1970.
Caros colegas, caros alunos, cabe-nos agora a difícil tarefa de saber, 42 anos depois, honrar esta fundação e esta elite de homens e mulheres livres que tinham algo que se deseja e precisa nestes atribulados anos do século XXI: um desígnio cultural audacioso para Portugal, mas intransigente para com modas e facilitismos. Sejamos nós capazes de o construir.
Muito obrigada.
 

Maria Helena Souto
Professora Associada da ESD-IADE

Sessão Solene IADE
21.03.2011

 

Entrevista - Revista Ler "A ESCRITORA DESCONHECIDA"

É uma revelação da literatura infantil. Aos 25 anos, conquistou o Prémio Branquinho da Fonseca com O Pintor Desconhecido.
Licenciada em História da Arte e a terminar o mestrado em Museologia, Mariana Roquette Teixeira concorreu na modalidade de literatura para a infância. Nesta 5ª edição do prémio para autores até 30 anos, não houve vencedor na categoria de literatura para a juventude.

O Pintor Desconhecido (Livros Horizonte) é o seu primeiro livro. Pensou que poderia vir a ganhar o Prémio Branquinho da Fonseca – Expresso/Gulbenkian?
Concorri sem pensar muito se poderia vir a ganhar ou não. Durante o tempo de espera e até à divulgação pública do vencedor, pensei sempre que haveria trabalhos melhores do que o meu.
Deu a história a ler a alguém para ter feed-back e, eventualmente, modificar alguma coisa em função disso?
Mostrei a história a algumas pessoas muito próximas, mas nunca alterei nada em função das sugestões que foram surgindo. Isso provocaria um desconforto bastante grande; era como se um estranho tomasse posse de algo que há muito tempo me pertencia e o alterasse, provocando um desequilíbrio.

Quando começou a escrever, tinha algum autor ou livro como referência?
Nenhum em especial. Tinha algumas referências de livros que li na minha infância. Reli alguns contos infantis de Oscar Wilde, dois livros de Agustina Bessa-Luís, Dentes de Rato e Vento, Areia e Amoras Bravas; o Rapaz de Bronze, de Sophia de Mello Breyner Andresen, e Pedro e o Mágico, de António Quadros.

As ilustrações da Marta Torrão correspondem ao que tinha imaginado?
Sim. São ilustrações muito expressivas. Por um lado, adequam-se na perfeição a este livro, visto deixarem transparecer materiais e texturas – nesse sentido, tornam-se uma extensão da própria história. Por outro, acompanham o texto de forma surpreendente, através do modo como os personagens são retratados, bem como as ambiências e a própria imaginação, a fantasia.

Quer dedicar-se à escrita de livros para crianças?
Sim, ambicioso continuar a escrever. Para crianças mas não só.

Na sua opinião, o que faz um bom livro para crianças?
Um livro que desafie, desperte curiosidade sobre universos novos, suscite questões, transmita valores e ensinamentos de forma subtil, e que faça a criança sentir que aquele momento de leitura é um momento de prazer.

In Revista LER
Setembro 2010.

Agradecimento do Prémio "Branquinho da Fonseca"

À Fundação Calouste Gulbenkian e ao Jornal Expresso agradeço esta distinção, que recebo com grande entusiasmo. O Prémio Branquinho da Fonseca Expresso/Gulbenkian instituído em 2001, tem vindo a desempenhar um papel preponderante, como incentivo às novas gerações que aspiram seguir pelo caminho da literatura. Enquanto tal, é para mim um grande privilégio que o conto infantil “O Pintor Desconhecido” possa ficar a ele associado.

Esta história decorre na sala de um museu e tem como protagonista um rapaz que possui uma forte relação com o desenho. Mediante esta prática ele constrói histórias e vive aventuras num ambiente fantástico, habitado por personagens singulares. O desenho surge, deste modo, como extensão da sua imaginação. Ao mergulhar nesta actividade, a fronteira entre sonho e realidade dissipa-se, levando-o a acreditar estar na presença de uma figura exemplar: um pintor, cuja identidade todos desconhecem. Nesta ocasião é-lhe revelado um universo novo, o da Pintura, que aliado à sua capacidade de sonhar fazem dele um rapaz especial, com uma missão: ensinar as crianças a pintar, mostrando-lhes assim, as maravilhas e a singularidade do mundo interior de cada um. Esta é uma história que fala sobre as relações humanas, a devoção à arte, a capacidade de ver para além do imediato e a busca pela felicidade.

Actualmente ao ritmo acelerado em que vivemos e com a proliferação das novas tecnologias, transmitir aos mais novos o gosto pela leitura torna-se casa vez mais difícil. Para muitas crianças e jovens, a leitura deixou de estar ligada a um processo de descoberta e passou a ser encarada como uma tarefa árdua, imposta pelos pais e professores. Paralelamente, a biblioteca deixou de ser vista como lugar revelador da diversidade do mundo, como espaço universal, provocando em contrapartida, uma certa repulsa nas gerações mais novas.

Ao transportar as crianças para o interior do museu e da mente do personagem principal o conto “O Pintor Desconhecido” procura demonstrar a infinidade de imagens que podem florescer ao mais pequeno estímulo, desvendando os efeitos mágicos da leitura. Com a sua publicação, apoiada pela Fundação Calouste Gulbenkian, desejo que este conto proporcione ao leitor momentos únicos, de modo a integrar o seu arquivo pessoal de memórias afectivas, tal como fazem parte do meu: a “Menina do Mar”, “A Fada Oriana”, o “Rapaz de Bronze” de Sophia de Mello Breyner Andresen, “Dentes de Rato” e “Vento, Areia e Amoras Bravas” de Agustina Bessa-Luís, “Pedro e o Mágico” de António Quadros.

Assim, ao ter consciência da responsabilidade que é escrever para este público tão especial e da influência que a literatura infantil tem na formação e enriquecimento intelectual das crianças, espero que nos futuros momentos de busca pela palavra exacta, a encontre, e consiga transmitir as ideias da melhor forma possível, pois tal como proferiu Branquinho Da Fonseca: na escrita, “Tudo depende da palavra. Exacta, rigorosa, insubstituível. Sem a palavra exacta não é possível dizer o que mais importa daquilo que se diz. A sabedoria talvez seja isso, encontrar a palavra exacta.”

Mariana Roquette Teixeira
Dezembro 2009.

PROBLEMÁTICA CONCRETA DA CULTURA PORTUGUESA (I)

Prólogo

Fomos, recentemente, à Fundação António Quadros para analisar e apreciar, Ainda que ao de leve, a correspondência e aspectos afins entre António Quadros e algumas figuras insignes da política e da cultura portuguesa, entre elas Oliveira Salazar, Henrique Veiga de Macedo, Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino. A Fundação, na pessoa de Mafalda Ferro, pôde assim facultar-nos testemunhos de ordem histórica susceptíveis de novos elementos para a compreensão psicológica, cultural, artística e filosófica dos diferentes entre os semelhantes. E nisto nada melhor que a referida correspondência que esperemos seja o mais breve possível divulgada ao público interessado na relação objectiva e actuante entre o passado e o porvir da cultura portuguesa.

Conversando com Mafalda Ferro e António Quadros neto, não pudemos deixar de aflorar as relações entre António Ferro e Oliveira Salazar, assim como as relações entre António Quadros e a filosofia portuguesa. Dois mundos diferentes e distintos que figuras como Eduardo Lourenço e seus epígonos propositada e ideologicamente confundem, assim participando ex professo de uma historiografia oficial que é toda ela, como não podia deixar de ser, a história simplesmente contada pelos vencedores da organização revolucionária e marxista que se apoderou de facto, mas não de direito, de Portugal. A Fundação António Quadros pode, entrementes, contribuir, por via da cultura e da filosofia portuguesa, para que assim não seja, disponibilizando testemunhos e elementos valiosíssimos que levem pensadores e investigadores livres e independentes a pensarem e a descobrirem novos e supernos horizontes.

Não por acaso António Quadros neto nos indicara um livro significativo do avô, intitulado Problemática Concreta da Cultura Portuguesa. Datado de 1961, aí se espelha a decisão, não tanto histórica ou, sequer mesmo, passadista, mas filosófica quanto ao património económico, político e essencialmente cultural do povo e do Ultramar português. Daí que, ao contrário do que falsamente aventam as figuras labirínticas da cultura universitária em Portugal, tal decisão não teve por significado uma adesão ao regime de então, pelo facto de significar antes e, sobretudo, a consciência multissecular de uma missão teleológica de Portugal no mundo.

Por conseguinte, António Quadros, ainda que não perfilhando das razões históricas enquanto fundamento único e exclusivo da cultura nacional, compreendia que estava em questão a existência de Portugal enquanto Estado, Nação, Pátria e República. Por outras palavras, já sabia e compreendia, não obstante as contradições do regime em vigor, que o mais importante e vital, que é a autonomia cultural de Portugal, sem a qual não é possível a verdadeira independência política, não implicava a desistência e muito menos o abandono da missão universal e teleológica de Portugal na Europa, na África, na Ásia, na Oceânia e na América Latina.

Na verdade, reconhecemos que não é fácil a lídima percepção dessa missão universal e futurante de Portugal no mundo, até mesmo entre portugueses. E também não nos admiramos que se tenha escrito, por entre vicissitudes que atravessam a filosofia luso-brasileira, que António Quadros tenha sido «o primeiro a empreender a tentativa de instrumentalizar a filosofia», tal como a «Escolástica fez o mesmo a seu modo, atribuindo-lhe [à filosofia] a função de difundir o cristianismo» (cf. António Paim, As Filosofias Nacionais, 3.ª edição revisada e ampliada, 2007, p.148). Neste passo revela-se, pois, incompreensão no preciso sentido em que a filosofia, ao invés de ser instrumento para o que quer que seja, é antes, nos termos apropriados de Leonardo Coimbra, órgão de liberdade relativo ao sentir e à visão de um povo cuja feição atlântica nunca se pautou, nem mesmo para Oliveira Salazar, por simples imposição de factores geográficos ou, se quisermos, meramente territoriais (cf. A Política Imperial e a Crise Europeia, Discurso pronunciado pelo Presidente do Conselho na sessão extraordinária da Assembleia Nacional, de 22 de Maio de 1939, reunida para dar o seu assentimento à viagem do Chefe do Estado [Óscar Carmona], Edições SPN, p. 27).

Todo este processo implica uma intuição dirigida à capacidade distintiva que foge e escapa à maioria das pessoas, ao passo que outros, mais ladinos, se têm aproveitado disso para lançar ardilosamente a confusão preconceituosa e ideológica sobre a filosofia portuguesa, sendo já esse o caso potencial de Eduardo Lourenço em 1946, ao procurar reduzir a mesma a questões menores, tão filosóficas quanto podem ser, diga-se de passagem, «camisas ou água de colónia», ou ainda a «importação de batatas da Dinamarca e automóveis de Detroit» (cf. Vértice, Vol. II, f. 7, 1946, p. 157). Seja como for, a filosofia portuguesa lá seguiu o seu rumo até culminar na concepção da ideia de Pátria enquanto ideia distinta da imagem veiculada pelo território, pelo país ou pela paisagem, ou até mesmo da ideia militar de Pátria, confinada, eventualmente, à guerra e à destruição do inimigo (cf. «Ainda temos Pátria», in Escola Formal, n.º 4, 1977, pp. 11-12). Todavia, tal concepção tanto mais se impôs quanto Portugal deixou de existir historicamente com a revolução comuno-socialista de 74, confinado, em consequência de premeditada traição política e militar, ao território da primitiva nacionalidade.

Hoje, lançado num abismo político-económico, como fora, aliás, previsto desde há muito, Portugal, tendo até aqui vivido de esmola alheia e administrativamente dirigido por potências, organismos e organizações estrangeiras e internacionais, só é Portugal de nome e enquanto ideia. Desse ponto de vista está vivo, embora em termos patrimoniais esteja pura e completamente depauperado e hipotecado por uma oligarquia política que se apoderou dos poderes do Estado ao mesmo tempo que se mantém e reserva para si os privilégios do fisco republicano à custa da existência económica, política e cultural dos Portugueses. Prova disso são as mesmas figuras, sempre as mesmas, a quem se dá, no maior desrespeito pelo povo português, direito de antena nos órgãos radiofónicos e televisivos, como por exemplo os Medina Carreira, os Silva Lopes e toda essa cangalhada de socialistas que hoje vivem a sua reforma choruda apontando o dedo a tudo e a todos menos a eles próprios, como se fossem cidadãos de primeira água e sem culpas num passado bastante próximo.

Além disso, também é verdade que António Quadros, pese embora a sua obra crítica e antevisora do nosso trágico quão dramático destino, não imaginara até que ponto lastímavel e degradante os Portugueses haveriam de chegar. Ainda assim, o Liceu procurará dar ao leitor o conhecimento de algumas passagens da Problemática Concreta da Cultura Portuguesa, numa época em que a esperança era ainda mais viva em virtude, não de um regime largamente situacionista, mas de um Portugal que, para todos os efeitos, e com todos os problemas ora acrescidos, era, apesar de tudo, um Portugal histórica e politicamente existente. Logo, numa linha bastante divergente no que respeita a António Ferro, o autor do livro supracitado deixa, porém, transparecer o respeito quer pela posição assumida pelo pai quer para com Oliveira Salazar, a quem, efectivamente, cita em epígrafe do mesmo livro, a saber: «Estudar com dúvida e realizar com fé».

Entretanto, algo de curioso resulta dessa mesma epígrafe, quanto mais não seja porque também nós sabemos que Álvaro Ribeiro a apreciava enquanto tal, sem que isso, por si só, signifique que o filósofo português solidarizasse a filosofia portuguesa com o salazarismo, coisa que nunca fez e só a perfídia ideológica de um Eduardo Lourenço e outros que tais pode sugerir e academicamente fazer parecer o que não é. Aliás, já que falamos de filosofia portuguesa, o próprio José Marinho não deixava de se referir a Oliveira Salazar como «esse teimoso universitário», qual eco do influxo mental que o filósofo portuense também, em certa medida, recebera da figura altiva e ilustre que fora, sem dúvida, Jaime Cortesão, porquanto, já de si, um forte e contumaz opositor a Salazar, nomeadamente aquando da Guerra Civil Espanhola, chegando mesmo, ao lado de Armando Cortesão, a publicar «na imprensa estrangeira protestos contra a intervenção de Lisboa em favor dos nacionalistas» (cf. Franco Nogueira, Salazar, Livraria Civilização Editora, Vol. III, p. 44). E mais adianta o biógrafo do último monarca perante a respectiva oposição de ordem ideológica e política:

«Mas correm boatos alarmantes: organizada pelo Grupo de Buda, sob o impulso de Moura Pinto, Jaime de Morais e Jaime Cortesão, e com desconhecimento dos exércitos nacionalistas, estava sendo preparada algures em Espanha uma invasão de Portugal; e na fronteira estariam mesmo alguns tanques. Roque de Aguiar escrevia ao chefe do governo, exprimindo as suas preocupações perante a ofensiva comunista; e, de Paris, Virgínia e Castro e Almeida informa Salazar das actividades dos budistas, que seriam coadjuvados pelos serviços secretos britânicos (Efectivamente - anota Franco Nogueira -, a Inteligence inglesa seguia as actividades dos emigrados portugueses em França, para junto dos quais destacara um agente de nome Wilkins; mas não encontrei documento ou indício de que Wilkins, além de colher informações, prestasse ao Grupo de Buda qualquer auxílio contra o governo de Lisboa» – in ob. cit., p. 179).

Dir-se-ia que o permite distinguir, mais fundo e perspicazmente, Oliveira Salazar das insignes figuras da cultura portuguesa foi a singular intuição norteadora da sua acção pragmática que o levou, inclusivamente, a dizer, quando entrevistado por António Ferro, que o professor universitário não é, por natureza, um homem de acção. Ora, uma resposta deste teor de quem fora professor universitário durante uma parte considerável da sua vida poderá parecer uma flagrante contradição, e, no entanto, compreensível se observada à luz das circunstâncias do caminho tomado por quem igualmente se vira no dever de substituir a leitura dos livros pela compreensão dos homens e da vida (Oliveira Salazar, O Meu Depoimento, Edições SNI, 1949, p. 7). E mesmo quando, sabendo o alcance de tudo isso, talvez não o aplicasse tão escrupulosamente na predilecção que manifestava aristocraticamente pelos professores universitários a quem incumbia de constituírem a hierarquia civil do Estado.

Por outro lado, há ainda a questão da “Política do Espírito”, em relação à qual António Quadros tece algumas considerações na Problemática Concreta da Cultura Portuguesa. Como tal, por respeito e reconhecimento pela obra cultural do pai, considera, no entanto, que uma nova fase da cultura nacional, sem desdenho e indiferença para com as vicissitudes pretéritas, se deve traduzir na criação filosófica que caminhe a par da cultura popular espelhada no folclore e na poesia tradicional portuguesa. Nesse sentido, António Quadros reformula, pois, uma restauração da mentalidade lusa segundo directrizes científicas, artísticas e filosóficas que vão, significativamente, além das preocupações de ordem económica, política e cultural do Estado Novo. E embora fale em «centralização cultural», não deve ser esta entendida no sentido de uma planificação centralizadora por parte do Estado, em certos aspectos presentes no regime de então, mas no sentido de uma presença salutar e irradiante do Génio português em todas as actividades, leis e instituições relativas ao carácter fisionómico e espiritual do povo português.

Na sua obra intitulada Prémios Literários, António Ferro define a «Política do Espírito» como fundamental e estruturalmente oposta à política da matéria. Não se trata simplesmente de fomentar o desenvolvimento literário, artístico e científico do povo português, já que, no seguimento de Paul Bourget, em Le Disciple, a questão primacial reside em «estabelecer e organizar o combate contra tudo o que suja o espírito, fazer o necessário para evitar certas pinturas viciosas do vício que prejudicam a beleza, a felicidade da beleza, como certos crimes e taras ofendem a humanidade, a felicidade do homem» Enfim, defender «a Política do Espírito é combater sistematicamente, obra da vida ou obra da arte, tudo o que é feio, grosseiro, bestial, tudo o que é maléfico, doentio, por simples volúpia ou satanismo!» (in Prémios Literários (1934-1947), Edições SNI, 1950, p. 19).

Oliveira Salazar, naturalmente, comungava desta definição, conforme se adianta:

«Quando Bourget pôs em Le Disciple a tese da responsabilidade do escritor pelos efeitos da sua obra na inteligência e na moral dos seus admiradores ou sequazes, parece ter-se operado um movimento de espanto, sobretudo nos que tendiam a formar da literatura e da arte mundos à parte, bastando-se a si próprios, tendo em si mesmos a sua finalidade e razão de ser, e não viam nelas manifestações humanas, integradas na vida e susceptíveis de a embelezar, de a melhorar, de ajudar o homem na conquista dos seus fins superiores. Estes desconheciam as profundas realidades humanas, perderam a rota das grandes certezas morais, criaram o amoralismo e a arte pela arte, como frutos lindos de ver-se mas inaproveitáveis ou nocivos. Na melhor das hipóteses desperdiçou-se o génio, em prejuízo da humanidade.

A tese da responsabilidade pode continuar a discutir-se teoricamente, abstractamente; mas aos homens que sentem sobre os ombros o peso da direcção dos povos ensinou-lhes a História, quando não a observação própria, coincidir a decadência com certas manifestações mórbidas das inteligências e das vontades, com a pretensa emancipação do jugo de regras superiores, impostas ao homem e oriundos da sua natureza e dos seus fins. Para elevar, robustecer, engrandecer as nações, é preciso alimentar na alma colectiva as grandes certezas a contrapor às tendências de dissolução propósitos fortes, nobres exemplos, morigerados.

É impossível, nesta concepção da vida e da sociedade, a indiferença pela formação mental e moral do escritor ou do artista, e pelo carácter da sua obra; é impossível valer socialmente tanto o que edifica como o que destrói, o que educa como o que desmoraliza, os criadores de energias cívica ou morais e os sonhadores nostálgicos do abatimento e da decadência.

As literaturas costuma dizer-se que são o espelho das diferentes épocas; mas se tão fielmente as reflectem, é que ajudaram a criá-las. Neste momento histórico, em que determinados objectivos foram propostos à vontade nacional, não há remédio senão levar às últimas consequências as bases ideológicas sobre as quais se constrói o novo Portugal. Cremos que existe a verdade, a justiça, o belo e o bom; cremos que pelo seu culto os indivíduos e os povos se elevam, enobrecem, dignificam; cremos que ao alto sacerdócio de buscar e transmitir a virtude, é inerente a responsabilidade pelas devastações acumuladas nas almas e até pela inutilidade da obra produzida» (in Prémios Literários, pp. 11-12).

Nisto, poder-se-á objectar, invocando as palavras de José Régio, que há uma tendência para o «sectarismo voluntarioso, o dogmatismo sufocante, o propagandismo brutal, o simplismo sistematizado (…) inculcados aos novos como virtudes indispensáveis e modernas» (cf. Em Torno da Expressão Artística, Editorial Inquérito, p. 9). Talvez assim seja, pese embora seja de distinguir, em termos conceituais e até de oposição ideológica, a «Política do Espírito» da infraliteratura comunista ou, como então se designava, de neo-realista. Aliás, como dizia, para além disso, José Régio, «não faço o mínimo empenho em ser do meu tempo».

Fiquemos então, sem nos alongarmos mais, com algumas passagens da Problemática Concreta da Cultura Portuguesa, desejando, sincera e honestamente, que a Fundação e a Família Quadros enriqueçam a pobre mas providencial cultura portuguesa.

Miguel Bruno Duarte
in "Liceu Aristotélico"



António Quadros (1923-1993)

Foi um dos principais impulsionadores da geração do "57", impulsionado pelo magistério de Álvaro Ribeiro, e por isso fortemente empenhado na formulação de uma «filosofia portuguesa».

É pois relevante a leitura do manifesto do grupo reunido em torno da revista 57, de que António Quadros foi director. Aí se indicam as chamadas «enfermidades» da cultura nacional, analisadas na base de um muito claro comprometimento com uma «filosofia da pátria». Como causas da referida doença nacional elegem a influência exagerada de correntes estrangeiras, com os seus vários «ismos», fossem elas o escolasticismo, o positivismo, o racionalismo ou o marxismo, embora com uma significativa excepção aberta para o caso do existencialismo.

Esta excepção é relevante porque para António Quadros e de um modo geral para o «grupo da filosofia portuguesa», aqueles vários «ismos» impunham um universalismo sujeito à ideia de «mesmidade», esvaziando o heterogéneo em favor do homogéneo. Nesta base, a atenção dada por António Quadros ao existencialismo, para o qual fora sensibilizado pelo seu mestre Delfim Santos, na Faculdade de Letras de Lisboa, tinha menos a ver com o seu acolhimento e difusão em bloco, pois que recusa a ideia sartreana de uma moral sem Deus, do que com o que no existencialismo se abria como possibilidade de atenção ao concreto, ao homem concreto e singular, «esse desconhecido», levando-o a defender, em Introdução a uma Estética Existencial, que o conceito de existência se deveria assumir como primitiva categoria do ser.

Daí que tanto o existencialismo como a «filosofia portuguesa» lhe parecessem meios privilegiados para conduzir ao florescimento da nossa raça. Como pano de fundo, vislumbra-se a questão das filosofias nacionais e o valor da filosofia portuguesa, portadora dos valores futuros, muito na linha de Álvaro Ribeiro, que em vez da relação hegeliana entre o ser e o não ser, preferia a relação mais aristotélica entre a potência e o acto, sendo a potência a categoria do possível, donde emergia a tentação do profetismo e do messianismo. Não que para António Quadros a verdade possuísse fronteiras, mas sim que a filosofia, por ser via e caminho, as teria certamente, não tanto físicas, mas sobretudo espirituais.

António Quadros prosseguiu nesta linha de pensamento durante mais de três décadas, ligado ao que já alguns chamaram uma «patriosofia», desenvolvida em duas vertentes complementares: uma vertente estética, ligada à fenomenologia da arte portuguesa, com especial atenção ao que considerava ser a sua dimensão simbólica, como via de conhecimento indirecto do que de mais profundo e enigmático existe no homem, em linha prosseguida por Lima de Freitas e por Afonso Botelho (Introdução a uma Estética Existencial, 1954); e uma vertente orientada para a filosofia da história portuguesa, de feição escatológica, explorando as virtualidades do mito e da saudade como sua expressão sentimental (Introdução à Filosofia da História, 1982; Portugal Razão e Mistério, 1987; Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, 1982)

Em ambos os casos, o que confere unidade à sua obra é o propósito de determinar uma razão de ser para Portugal, fundindo «memória de origens e saudade do futuro», um futuro que generosamente acreditava estar reservado ao advento do Espírito Santo, assumindo-se aí Portugal na sua teleológica razão de ser, agente principal de um projecto aureo de realização espiritual da humanidade (Portugal, Razão e Mistério).

A abertura a estes domínios do simbólico em estética e do mitológico em história, participava também da recusa de um racionalismo estrito, defendendo antes uma razão que se não pode desligar da consideração dos diversos graus da experiência do ser, mesmo aqueles que se afiguravam anteriores à lógica e ao conceito, atendendo por isso ao lugar do mistério e do enigma.

Obras
Introdução a uma estética existencial, 1954; A angústia do nosso tempo e a crise da Universidade, 1956; A existência literária, Lisboa, 1959; Fernando Pessoa, a obra e o homem, 1960; Ficção e Espírito, Lisboa, 1971; Introdução à filosofia da história, 1982; Portugal Razão e Mistério, 1987; Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, Lisboa, 1982; A arte de continuar português, 1978; O primeiro modernismo português ou vanguarda e tradição, 1989.

Pedro Calafate


Este português que conheci

Era um homem bizarro: inquietava-o o enigma do ser, falava de Cristo com admiração, exaltava-se com a Poesia e levava a sério as crianças – tinha o direito de se fascinar mais com ideias do que com automóveis.

Vestia-se como os outros para não dar nas vistas, falava em voz baixa numa língua estranha, contrariava os seus instintos até aos limites e aprendeu tudo o que havia a aprender para experimentar sozinho a dor da limitação humana.

Ao mesmo tempo que se deixou arrebatar pelas pedras e pelas árvores, teve amigos feios, com caspa nos ombros e gravatas amarrotadas. Era tão crédulo e infantil que comovia: alugava a primeira casa que lhe impingiam, subscrevia revistas para ganhar o relógio digital, e passava cheques aos amigos sem qualquer apreensão; no fundo, no fundo, achava o dinheiro um trambolho.

Estava-se a borrifar para que os seus livros não se vendessem, porque não tinha pressa. Não precisava de se ter calado para que a sua voz se ouvisse, mas a culpa foi dele: preferiu sussurrar as suas ideias e cantar alto as dos outros. 

Inflamava-se com Homero e Sófocles, Camões e Shakespeare, Pascoaes e Pessoa, mas não fazia troça dos aspirantes ao Dom - tinha uma bondade disponível para companheiros e discípulos.

Não era desconfiado como os aldrabões e apertava a mão aos adversários porque se esquecia das ofensas.

Acreditava em coisas estranhas: que os contos de fadas não eram mentira, que havia uma transcendência nos homens e na História, que o seu País era eleito e os seus compatriotas homens de bem.

Desgostava-se com a pobreza espiritual desta geração, vestia luto pela Natureza como qualquer de nós, mas tinha uma Fé inquebrantável na fraternidade universal e cósmica.

Arranjou tempo para tudo: ajudar desconhecidos, fundar uma escola, jogar à bola com os netos, dissolver as vaidades. Uns, chamavam-lhe sábio, outros, maçador, mas ele não se ralava porque via «para além do Espelho», como só os poetas, os pensadores e talvez as crianças.

Devia ser bom, porque foi amado pela mulher durante cinquenta anos.

Partiu um dia «num barco em cuja vela branca se via uma cruz vermelha», e o bem mais valioso que deixou à família foi Portugal.

No cais, foi enternecedor encontrar todos os seus amigos e todos os seus inimigos de lenço na mão, a acenarem com a mesma saudade e a mesma vergonha. Apesar do nevoeiro, o nevoeiro mítico onde tantos heróis e poetas se perderam, houve pessoas que juram ter visto uma estrela enorme a piscar-lhe o olho.

Rita Ferro

IADE, 22:9/89

Meu prezado Amigo:

     Acabo de receber a sua conferência sobre António Ferro, que li emocionadamente, pois a sua memória e a sua saudade permanecem ambas na minha alma desde o dia fatídico de 11 de Novembro de 1956, quando morreu no Hospital de São José — já triste, angustiado e desiludido.

     Quando partiu para Berna, em 1950, foi porque já não sentia o mesmo ambiente de apoio. Nunca mo disse explìcitamente, mas eu sei que a sua acção era cada vez mais obstruída, mais objecto de intrigas e de inveja, por parte de alguns maiorais e ministros do regime. Não viam com bons olhos, sobretudo os universitários e catedráticos, que um homem sem curso superior (faltara aos exames finais do 5º ano de Direito para partir arrebatadamente para Fiume, entrevistar Gabriel d’Anúnzio e assistir ao seu momento de glória política) tivesse mais nome, fosse mais considerado do que eles.

     Foi-se sentindo cada vez mais só, aqui em Lisboa. Quando vinha a Lisboa, já depois de Ministro em Berna, gostava de ir ao S.N.I., visitar os amigos. Mas o seu sucessor no posto fez-lhe saber por terceiros que não gostava disso, que era inconveniente, que não devia ir porque perturbaria os serviços. Então, de quando em quando, ele ia lá apesar de tudo, mas clandestinamente, pela porta do cavalo (onde era antigamente o turismo). E o S.N.I. não continuou o plano de publicação dos seus textos e conferências, sob a epígrafe de Política do Espírito. Era um antecessor incómodo!

     Depois, a vida diplomática não correspondeu às suas expectativas. Pensava poder trabalhar em livros que tinha em mente, mas escreveu afinal os versos melancólicos de Saudades de Mim.

     Marginalizado afinal, dentro do regime, tendo sido enviado para Berna (quando tinha pedido Paris), desembocando em Roma, onde foi recebido com indiferença, era um homem magoado, que esperava morrer, do que dão sinais as três cartas que deixou: para a minha Mãe, para mim e para Salazar. A minha, li-a uma vez, e nunca mais fui capaz de a voltar a ler...

     Acho que tem razão. Fez muita falta ao regime. Não sei se Salazar o terá compreendido. Era, como muito bem diz, a outra face, a estética, a da imaginação, a cosmopolita, a futurista. Se Salazar o tivesse compreendido, teria vencido os preconceitos de classe universitária: um homem sem curso superior não pode ser Ministro e pertencer ao Governo, como não pode ser Embaixador em Paris.

     Foi um erro. Com António Ferro no Governo, será que as coisas se precipitariam como sucedeu depois? Ficou só o jurídico e o pragmático. Mas o jurídico e o pragmático não formam gente, não formam Portugueses. A desnacionalização avançou então vertiginosamente, já quase sem barreiras. Salazar, digo-o sem partilhar embora da sua adesão total, era indubitàvelmente um grande homem de Estado. Mas era humano, e todos os humanos erram.

     Há dias, recebi a notícia de que, por decreto-lei, fôra extinto o Museu de Arte Popular, que foi o seu último (de António Ferro) empenhamento. Já dei uma entrevista ao Independente a esse respeito. Já escrevi um artigo no Tempo, outras coisas farei — mas chocamo-nos com uma realidade inamovível. Esta gente não entende, não tem sensibilidade e já não sabe o que é ser patriota.

     Meu caro Rodrigo Emílio: ao ler a sua conferência, olhei-me como você é capaz de me olhar, como alguém que fez excessivas concessões e que portanto se degradou, pertence ao submundo da “plebe” de todas as classes, que compõe com o inimigo. Você nunca mo diria, mas julgo que será assim que vê uma pessoa como eu. 

     A verdade é que as nossas concepções encontram-se nalguns pontos e separam-se noutros. Eu sou aristotélico. Vivemos no mundo da geração e da corrupção, num mundo em que nada é estável, em que tudo muda, caiem os regimes porque é da natureza de todos os regimes serem submetidos às leis do tempo e à dialéctica das ideias e dos interesses.

     Então, se você, sendo o puro, o incorrupto, o intolerante, tem uma função insubstituível, os homens como eu, são os que ao contrário, tentam tocar por dentro, pelo diálogo, pela aceitação e pelo compromisso, aqueles mesmos com os quais para si não poderia haver o diálogo, mas o duelo.

     É possível que a minha atitude seja errada, ingénua e até nociva. E é bem verdade que, depois de todo o meu esforço durante 40 anos, pugnando pelos valores do Espírito e da Pátria através de dois regimes, procurando em cada um deles destruir o joio e enaltecer o trigo, poucos resultados tenho para mostrar. O certo é que não desisto, na esperança de que é capaz de dar algum fruto viver crìticamente no sistema, em vez de totalmente o repudiar.

     Julgo que lhe enviei A Ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos últimos 100 Anos, em que lhe dedico um subcapítulo. O Rodrigo Emílio é um grande poeta e os seus versos são lancinantes de verdade portuguesa.

     Mando-lhe O Primeiro Modernismo Português — Vanguarda e Tradição (com um capítulo sobre A. Ferro) e A Batalha de Flores, que prefaciei em reedição recente.

     Teria o maior prazer em lhe mandar alguns dos meus livros que acaso não possua, se é que tem paciência para os ler. Por ex., A Arte de Continuar Português, os 2 vol. publicados  de Portugal, Razão e Mistério, o livro sobre F. Pessoa ou Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista.

     Difícil, delicado, tem sido este combate, sobretudo porque vivo na fogueira das ideias e vejo em minha volta cada vez mais destruição. Trabalha-se, no entanto, para o futuro. Outra geração virá. E então, pode ser que a chama da portugalidade se reacenda...

     Minha Mãe, que muito o aprecia e admira, continua de cama (há 7 ou 8 anos), mas com uma admirável coragem e total lucidez. Vão agora sair uma antologia dos seus 70 Anos de Poesia (1919-1989), o seu livro de poemas Urgente! e as suas Cartas para Além do Tempo. Vou-lhe ler a sua conferência, mas se puder escreva-lhe, pois precisa de companhia. Já não tem ninguém da sua geração. Vai fazer em Dezembro 89 anos. Mas que exemplo nos dá a todos!

               Bem haja, seu admirador e amigo,

                                                     António Quadros   

*****

Capítulo IV do livro de António Quadros “A Ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos últimos cem anos” (Edição da Fundação Lusíada, Lisboa, 1989):

“As Sátiras Amargas de Rodrigo Emílio”
                        É preciso que se saiba por que morro
                        É preciso que se saiba quem me mata
                        É preciso que se saiba que, no forro

                        Desta angústia, é da Pátria tão-sòmente que se trata
                                                           De “Reunião de Ruínas,” 1977

     Se Francisco da Cunha Leão ficará como o poeta das lágrimas pela perda de Goa, talvez nenhum outro lírico, como Rodrigo Emílio, tenha reagido com tanta amargura, com tanto desespero, com tanta força de sátira, e de sarcasmo, à viragem do 25 de Abril, sobretudo à viragem do país de além para o país de aquém, sem contudo perder a sua poesia a qualidade lírica de recolhas como “Primeira Colheita” (1973), “A Segunda Cegueira” (1973) ou “Serenata a Meus Umbrais” (1975).

     Na verdade, “Reunião de Ruínas”, “Poema-livro d’Exílio e Viagens” (1974-1977), é uma obra sem concessões, duríssima para a revolução ou para a mudança, que testemunhará, goste-se ou não da sua atitude intransigente, de uma insatisfação e de um sentimento de queda, de abandono e de exílio, por muitos Portugueses partilhado, embora muitas vezes silenciado.
     O tema da perdição nacional surge desde logo nas duas epígrafes:
          —    Como o Camilo Pessanha
               “Eu vi a luz em um País perdido”
E ainda:
                        De povo de missionários
                        a povo demissionário...
Desde as primeiras páginas do livro, os Poemas do pátrio pranto, revelam a amargura imensa do poeta, projectando-se em pequenos poemas ácidos e sarcásticos.
Por exemplo:
                        Era este um lugar
                        de raíz duradoura.
                        Mas soou a hora
                        de deitar país
                        fora...

ou:
                        Pátria sem porte,
                        quando já chegou a ser
                        pátria sem par.

ou também:
                        É, hoje, um bairro-de-latas.
                        (Quem queira vir ver: retrate-A!)
                        Há, cravadas, quatro patas
                        em cima da nossa Pátria.

“Reunião de Ruínas”. O motivo obsessivo desta obra é efectivamente o da pátria arruinada:
                        Se já hoje longe estou
                        do coração do que sou, e do que venho...
                        Se de mim assim se desgarrou,
                        e em plena cerração se projectou
                        como um estranho,
                               D. Portugal — meu avô,
                               Frei Portugal, o d’antanho...
                               —    Não foi senão por que a traição
                               O privou
                               de dimensão:
                               O privou
                               do Seu tamanho!

Quanta desesperança no poema sobre os “Retornados”:

                        ... E ao rés de cada rua
                        arrastam, por desgosto,
                        um permanente impropério
                        —    que sempre de face nua
                        arremessam contra o rosto
                        reticente
                        do Império...

Ou ainda no poema intitulado “Edital do Poeta às portas da morte (a afixar em voz alta!)”, que assim principia:

                        É preciso que se saiba por que morro
                        É preciso que se saiba quem me mata
                        É preciso que se saiba que, no forro
                        Desta angústia, é da Pátria tão-sòmente que se trata.

E assim conclui:

                        —    É preciso que se saiba por que morro
                        No meio deste monte de sucata!...

                       É preciso que se saiba por que morro
                       —    E que és Tu, Pátria ingrata, quem me mata!

Desesperado em sua reunião de ruínas, só na evocação de Camões e dos Lusíadas, encontra o exilado algum bálsamo, porque

                               (...) à voz desse poder
                               convocatório —
                               que há nos versos adversos
                               que compões
                              — não tardaremos a ser
                              quem fomos
                                                                             Ouve, Camões:

                               Vai-te à História! Ajunta Povo,
                               em redor desse canto cardial!
                               Brande o gládio da glória,
                               — e, lá das brumas da memória,
                              vê se soergues, de novo,
                               o esplendor de Portugal!...

                                                                              ANTÓNIO QUADROS   


*****

A CÔRTE DO REI DAVID, NO SÚBITO ADEUS DE UM SÚBDITO

Balada de luto carregada, tangida por Rodrigo Emílio,
na hora da agonia, paixão e morte de David Mourão-Ferreira

Deu à rima um novo rumo
 e apôs, a tudo, o carimbo
do fumo
do seu cachimbo.

Era bom vê-lo jogar
aos quatro cantos do Tempo,
como com as quatro folhas
em flor de qualquer trevo,
como com as cinco pontas
de toda e qualquer estrela.
Era bom vê-lo reinar,
por fora assim que por dentro,
às escondidas com o espaço,
e com os seus quatro elementos;
dar as cartas, manejar
os naipes desse baralho:
água, fogo, terra e vento.
Era bom sabê-lo à mesa
dos reinos da Natureza,
a firmar com a beleza
um pacto de criação.
Havia, nele, a certeza
de ir do Tempo ao coração,
ao saudar a chama acesa
de cada nova estação.

(— ...Sabia lá que o poeta
estava, aqui, só de passagem,
como o dardo de uma seta
descendendo em linha recta
não desta, mas d`outra margem
mais desperta
que esta margem!?...

Celebro-o — agora que acerta
já por outra a sua imagem.

E, ao memor$á-lo, recordo
toda a gárrula e garrida
aleluia de halalis
que havia a bordo
da Vida,
nessas horas de arco-íris,
meias-tardes em conjunto,
nessas tertúlias sem mácula
com seus relentos de Távola,
—    nesse tempo, vário e uno,
de ser ele às de tr(i)unfo
e eu o cábula
seu aluno.

(O teu limite de idade
— traço de desunião... —
desabou sem piedade,
sem ter comiseração,
sobre os ombros da cidade
— ombros caídos, na tarde...,
sem vontade... Ao delandão... —
e já de mágoa a invade,
ó mago, amigo, ó irmão,
como se um si(g)no a rebate
de dilúvio, aluvião,
desse com o Carmo e a Trindade
em cheio, no meio
do chão...

A tempestade nos sabe
— tempestade de Verão —
o teu limite de idade,
ó mago, amigo, ó irmão!

— Por que há-de ser, o poeta,
gesto e voz que não reagem,
letra morta, dardo — seta
que se crava, se projecta,
cega, às cegas, na abordagem
de senda assim tão selecta
como a que, em vôos de névoa,
o leva,
aos ombros do vento, por tão
secreta viagem?!...

Por que há-de ser, tarde ou cedo,
o poeta — pista efémera
de férias grandes, eternas,
etéreas, desertas férias,
que nem férteis nem feéricas
se antevêem:
aéreas férias, apenas,
nos aposentos do ermo
(do puro ermo e seu termo...)
... e vasos, veias e artérias
se lhe hão-de tolher em gelo?!...

Porquê, mais tarde ou mais cedo,
ser ária, véu, arvoredo,
página em paz, e sem pajem...,
moeda cobrada ao medo,
areia, aroma e aragem?!...

— Passou, à mão e a limpo,
a lição toda de Dante;
conferiu-a à media luz do cachimbo
fumegante.

... Mas já David não há...
e eis mais deserta
a paisagem,
iniciada que está
a secreta
viagem.

(Já no templo do tempo,
atento, eu te contemplo,
como exemplo,
e já em vento de advento
te converto e reacendo, lentamente,
do negrume: chego lume
ao resplandecente vulto de caruma
que te enfuna
em túnica de fumo e espuma,
flâmula, nuvem, murta,
rama
que, de súbito, de súbito
se inflama,
a pleno contento
da arisca e brusca dama
que para si te chama:
a musa e medeia —
a meia-medusa
de lenço e blusa
que, em silêncio, soluça
solos de búzio e bruma,
e a si se acompanha
ao piano da loucura,
tangendo temas
de incêndio e hossana;
a intrusa e estranha
que usa e abusa
da paciente partitura
do poente,
num concerto de música:
de música-de-câmara.
De câmara-escura.
De câmara-ardente...)

... E escrito, inscrito está, o que está
dito e escrito.
Já o verbo se faz grito de granito,
já agora por agora é semente de
graal.

Resta,
ao poeta,
conjugar-se no infinito.

Falta, ao orpheu
que nos morreu,
para um devir
de pedra e cal,
flectir
o infinito:

o infinito pessoal.

(Soletro o alfa e o beta
desse alfabeto galante
de poeta
enfeitiçante
—    o alfa, o beta e o gama
dessa música de cama...,
que é núpcia
de sono e lua,
liame
de lume e lama,
viagem ao fim-do-mundo
nas volutas da volúpia
de um «tour» de fim-de-semana
pelo litoral da Úmbria;

cruzeiro de fim-de-curso
velejado em Citirama,
e evoluindo entre o vulto
(outrora azul) do Danúbio
e as dunas de Diana;
circuito ao túnel da dúvida,
sombra lúcida,
noite em chama,
anúncio
de longue haleine,
anel e amen
de quem ama...

Soletro,
sim, e celebro,
metro a metro,
o alfa e o beta
desse alfabeto galante
de poeta
enfeitiçante...)

— Ouvide,
senhores,
e lede,
se tiverdes fome e sede
(ou quereis matar a sede)
de fulgores
azuis-castores,
de esplendores
e reflexos,
furta-cores,
de flores
e sexos:
abride,
senhores,
lede,
ouvide
os versicolores versos
de David!

 Rodrigo Emílio.
(Casa de S. José, em Parada
de Gonta, aos 18 de Junho de 1996.).


   

Deus na tradição do pensamento português contemporâneo:
a contribuição de António Quadros

“A razão de Portugal, a razão de ser de Portugal é antes de tudo uma razão teleológica, isto é, uma razão aberta para com um telos ou um fim que é a justificação última do seu movimento no tempo e no destino”.
António Quadros, Portugal – Razão e Mistério, livro I

“Portugal é um balcão sobre o infinito”.
Hermann de Keyserling, Analyse Spéctrale de l’Europe

O pensamento de António Quadros (1923-†1993) acerca de Deus poder-se-á enquadrar, de um ponto de vista estrito, no seio daquilo que se convencionou chamar movimento da filosofia portuguesa e, genericamente, no contexto da tradição cristã e agostiniana que, desde Paulo Orósio, vigora em Portugal. Desta forma, na esteira de Luís de Camões, António Vieira, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Raúl Leal, Fernando Pessoa, José Marinho, Álvaro Ribeiro e Agostinho da Silva, o nosso autor defende que a nação portuguesa, na sua essência, conceitual e objectivamente, é dotada de um eschaton, de uma razão teleológica, que consiste num diálogo ou numa dialéctica entre o humano e o divino: “Talvez nenhuma história humana, como a portuguesa, em seu esplendor, em seu claro-escuro e em seu negrume, seja tão dramaticamente exemplar desta dialéctica” . Quadros apresenta-nos Portugal enquanto Pátria eleita por Deus, destinada a realizar fins universais. Tais asserções conduzem-no, inevitavelmente, a postular uma ideia de Deus que, embora não se distancie dos postulados de Santo Agostinho, por exemplo, em última análise, por causa das associações dilemáticas e tremendamente discutíveis a que está sujeita, não deixa de ser original e diversa.

A reflexão acerca de Deus desenvolve-se, portanto, no enquadramento de um conjunto de postulados que são caros aos pensadores da filosofia portuguesa e que se sintetizam nos seguintes aspectos: o ser divino, para além de ser caracterizado de um ponto de vista cristão, agostiniano e orosiano, apresenta denominações diversas, ou seja, é Deus quem tem o poder de inspirar as actividades criadoras de cada povo, concedendo a Portugal, curiosamente, a capacidade de realizar projectos áureos. O que António Quadros parece defender é que Deus, não obstante apresentar qualidades de omnipotência, omnisciência, omnipresença, ao mesmo tempo que é um concessor de gratuidade e liberdade, define-se, igualmente, como alteridade determinista e, quiçá, quase ao jeito do Deus do Antigo Testamento, parcial. Afinal de contas, à semelhança do povo de Israel, parece que Portugal é também um povo eleito por Deus. No pensamento do autor de Portugal – Razão e Mistério, esta questão emerge, quase logo, sem qualquer mediação, ou seja, se Quadros chega a afirmar que “a cada povo é proposto um ideal diferente de realização da humanidade ... E nem poderia ser de outra forma, porque os povos não são iguais, diferem pelo seu composto étnico, pela língua que falam, pela estrutura cultural em que se enquadram, pela sua religião ou religiões dominantes, pelas vicissitudes da sua história particular, pelo seu sistema de ideias, mitos e tendências afectivas, pelo seu ritmo evolutivo segundo um modelo próprio embora implícito, aliás adequado à substância específica da sua realidade humana e social, enfim pela revelação que a todos os níveis lhes é concedido em sua experiência de ser.

Mas no segredo da sua relação com a natureza e o mundo, no enigma da sua psicologia, arte, literatura e simbólica ou no mistério da sua cifra divina, realizam dentro de si o universal, são microcosmos exemplares da univocidade humana versus um eschaton uno e último” , imediatamente escreverá que “o povo português, formando no conjunto e na hierarquia intelectual dos seus estratos a nação portuguesa, teve um projecto, ou melhor, guarda nos seus arcanos, no seu inconsciente arcaico, na cifra da sua língua e cultura, na sua memória inconsciente, no seu imaginário, no seu pensamento implícito e por vezes explícito, um projecto, a que chamamos um projecto áureo de realização da humanidade” . Se, a priori, António Quadros discorre acerca da propensão particular e universal de cada povo, se apela para a diversidade natural de cada um, por outro lado, sublinha a universalidade e a pluralidade de Portugal. Embora todas as nações, em si, sejam, plurais, diversas e diferentes, parece que Portugal é mais plural, mais diversa e mais diferente do que todas as outras. E só o é porque Deus assim o quis, porque  a ele confiou um projecto maior, a saber, purificar a razão humana por meio do Espírito Santo. Independentemente de os portugueses terem sido eleitos por Deus ou, como preferia Agostinho da Silva, se terem auto-eleito para a edificação de uma empresa universal, o que importa realçar é a característica dessa demanda. Quadros sintetiza-a, à maneira camoneana e pessoana, enquanto epopeia de Deus através do homem português, como aventura de Deus na terra.

A partir dos pressupostos que já apontámos, é-nos perfeitamente legítimo considerar que António Quadros não os pensou e defendeu a partir do nada. O nosso autor, apoiado numa tradição de muitos séculos de filosofia providencialista, teleológica, mística e sebástica, dirá, quase ipsis litteris, o mesmo que Camões, Vieira, Pessoa e Agostinho da Silva, a seu tempo, disseram. Restar-nos-á, então, apenas questionar a validade de tais argumentos para os séculos XX e XXI? Ou, além disso, ser-nos-á possível consentir, admitir e perpetuar algo que, à partida, não passa de um dogma, de um dogma da portugalidade ou da lusitanidade, de um dogma que postula o nosso país enquanto periferia privilegiada? Parece-nos, desde já, que nada há de pejorativo ou judicativo nesta interrogação: um dogma é apenas um dogma, algo que apenas não pode ser questionado, nada mais.

Antes de tentarmos responder às duas questões acima colocadas, importa compreender todos os argumentos expostos por António Quadros. Se já víramos antes que Deus confiara aos portugueses um destino eleito, áureo e providencial, resta-nos, pois, analisar o cariz desse destino. O pensador descreve-o usando adjectivos precisos e, de alguma maneira, peremptórios e significativos: missionário, sacrificado, heróico, abismático, promissor, saudoso e esperançoso . Embora alguns destes adjectivos sejam contrários entre si, na sua essência revelam, curiosamente, a particularidade do ser português, tal como Teixeira de Pascoaes sugere e com o qual António Quadros concorda. A peculiaridade do destino dos portugueses resulta do decurso plural, multímoda e diferenciado da sua História . Quadros atribui-o especificamente à influência que São Bernardo de Claraval teve na construção do ideal templário que perpassou por todos os principais movimentos de criação e renovação de Portugal, desde, por exemplo, da iniciativa fundadora de D. Afonso Henriques até à empresa dos Descobrimentos; à característica messiânica do sebastianismo; à vertente criacionista do saudosismo; e, acima de tudo, ao projecto áureo de Portugal que se constitui e se revê integralmente no Culto do Espírito Santo. Todos estes aspectos confluem para o estudo da arqueologia da tradição portuguesa; para a assunção, por partes daqueles que se reconhecem herdeiros desta gesta, de uma missão que não é apenas terreal mas que é também paradisíaca (o fito do templarismo, do sebastianismo, do saudosismo ou até mesmo do pentecostismo é, no fundo, o estabelecimento da Jerusalém Celeste, do Reino de Deus na Terra; é o regresso às origens edénicas); para o enaltecimento da filosofia providencialista e, consequentemente, para a rejeição do positivismo histórico e do idealismo crítico (este último defendido, em Portugal, sobretudo por António Sérgio).

Ensaiarmos algumas respostas para as questões que temos vindo a colocar ao longo do texto, implica termos em mente alguns vectores de orientação associados essencialmente à ideia de Deus, à noção de Pátria e à crítica que, ao longo do tempo, se tem tecido em torno destas temáticas em Portugal.

Nesta perspectiva, e no que diz respeito à primeira temática - a ideia de Deus-, basta apenas reiterarmos o que já havíamos escrito anteriormente: para António Quadros, Deus é entendido de um ponto de vista cristão (às vezes até católico), providencialista, tradicionalmente agostiniano e orosiano, até porque, na visão do nosso autor, Paulo Orósio, para além de ter sido um discípulo de Santo Agostinho, foi aquele que primeiro concebeu uma visão histórica do devir humano. Ao jeito de Agostinho de Hipona, para Quadros, Deus é também um ser omnipresente , o supremo Bem , o sumo criador , a trindade divina . Além disso, é apreciador dos dons do Espírito Santo , considera Cristo como mediador  e concebe Deus como a plenitude do Ser.

Quanto à acepção de Pátria, começa Quadros por apontar no livro II da sua obra Portugal – Razão e Mistério que “se a Nação é a comunidade natural dos nascidos ou oriundos do mesmo território e se o Estado é a expressão política desta comunidade natural, ainda precária, a Pátria é a relação viva, profunda, substancial de um povo, não só com uma tradição contínua, transmitida de pais para filhos e articulada por laços culturais, políticos e jurídicos, mas também com um projecto teleológico original.

Por outras palavras, a Pátria, até etimologicamente, não é só a relação de cada um com a terra em que nasceu, é mais do que isso, é a relação com a terra dos Pais, com a comunidade dos antepassados, é uma vinculação antes humana e familiar do que telúrica ou territorial, implicando, por isso mesmo, desde que assumido dinamicamente o conceito, a prospectividade de um movimento para o futuro. Terra dos Pais, é necessariamente também a Terra dos Filhos e dos Irmãos. E, nesta transmissão amplificante, desenvolve-se um espírito personalizado, um projecto, uma teleologia nacional” . Ao fim e ao cabo, a Pátria é mais do que um conjunto de princípios jurídicos, estes absolutamente frágeis, exteriores e falíveis, defensáveis pelas nações e pelos estados para que a ordem, a legalidade e a sobrevivência não sejam ameaçadas, para que o estado natural, de barbárie e selvajaria, não volte a amedrontar os seres humanos. “Temos de considerar a nossa Pátria como um ser espiritual, a quem devemos sacrificar a nossa vida animal e transitória” , escreve Teixeira de Pascoaes na sua Arte de Ser Português. Para António Quadros, de igual modo, a Pátria, rege-se por princípios sagrados e fins superativos . Ora, para Portugal e para os portugueses, tais princípios e tais fins foram ofertados por Deus. Esta questão específica, como acima defendemos, é um dogma e, nesse sentido, talvez não seja despropositado sugerirmos uma distinção entre Pátria Real e Pátria Imaginária ou Mítica. Por Pátria Real entenderemos uma sociedade (enquanto Estado-Nação) que, para além de se reger por um conjunto de princípios e sentimentos superiores que prezam a sua unicidade, a sua tradição, o seu passado histórico e o seu porvir, acolhe, da mesma forma, uma série de categorias que lhe permitem actuar como Pátria moderna, aberta ao Mundo e às novidades do seu tempo. Os cidadãos de uma Pátria Real até poderão pensar que são seres predestinados a um fim universal e áureo, que são missionários de um Além Reino, mas não terão como descurar os processos históricos nos quais estão envolvidos, as matizes sociológicas e culturais que, a todo o instante, se lhes apresentam. Afonso Henriques foi um patriota de uma Pátria Real, os portugueses que navegaram todos os oceanos e criaram novas civilizações, fundindo-se com outras culturas, foram patriotas de uma Pátria Real. De outra forma, por Pátria Imaginária ou Mítica compreenderemos uma ideia de sociedade que se exprime na exaltação constante de princípios superiores e divinos, na sublimação de arquétipos messiânicos e proféticos e, simultaneamente, no corte com todos os movimentos sociológicos, materialistas, económicos, historicistas, progressistas e estrangeirados que naturalmente conduzem as nações para a actualidade e para as experiências do seu tempo. Dizemos Imaginária ou Mítica tão-só porque não é real e porque sobrevive apenas na imaginação, nas quimeras e nos mitos daqueles que a exaltam e nada fazem para que ela se torne real. A ideia de Pátria que António Quadros defende é aquela que definimos como Pátria Real (notemos que o auge da sua ideologia se centra na perpetuação da paideia dionisíaca  para o porvir de Portugal), contudo, a partir do momento em que o autor de Portugal – Razão e Mistério rejeita um par de princípios que, pela sua contemporaneidade, são fundamentais para a vivência das nações no seu dia-a-dia e se refugia apenas nos princípios superiores, divinos, predestinados que, supostamente, fundamentam a existência e o porvir de Portugal, a ideia de Pátria que acaba por vingar nos seus escritos é aquela de uma Pátria Imaginária ou Mítica, que vive somente no seu espírito e que, por não se embrenhar na realidade e no contexto da vida contemporânea, nele se estagnará. É neste aspecto que a consideramos um dogma, já que os pressupostos em que assenta não são passíveis de discussão racional, pertencem a outras ordens: da crença e do mito. Esclareçamos com estes exemplos: “A Pátria conquista, se e quando tal sucede, mais do que a frágil e aleatória legalidade jurídica, uma legitimidade transcendental, que já não deriva da simples ocupação e posse de um território, mas de princípios sagrados e de fins superativos” ; “Profetas e santos, filósofos, sábios e poetas, heróis ou até políticos são os motores da história, não porque exprimam forças materiais e sociais, não porque sejam agentes de um jogo de interesses económicos e nem sequer porque governem a existência pelo seu voluntarismo pessoal, de grupo ou de classe, mas porque se dá neles uma convergência da qualidade humana individual com a graça ou com a escolha divinas” . Na nossa visão, não basta exaltar uma ideia de Pátria para que ela se efective, é necessário que essa evocação se presentifique e se torne real, no fundo, se faça viver no quotidiano. Neste aspecto, é cada vez mais difícil interpretarmos comentários como os de Hermann de Keyserling, na medida em que, ao mesmo tempo, nada e tudo dizem. A que é que este autor se refere quando afirma que “Portugal é um balcão sobre o infinito”? Se, aparentemente, adjectivar Portugal enquanto balcão sobre o infinito significa muita coisa, tudo até, na realidade, poderá não significar nada, é algo muito abstracto, difuso. Tal expressão constitui-se, porventura, como uma daquelas frases que contribuem para o conceito de portugalidade como dogma e que está associada à assunção de Pátria Imaginária. De qualquer forma, a noção de Pátria que António Quadros nos apresenta, especificamente aquela que intitulámos como Pátria Real, e que se revê na paideia que D. Dinis concebera,  transcende qualquer polemismo e dilemática que, desde sempre, se tem gerado em torno desta questão e é perfeitamente defensável, no contexto da contemporaneidade portuguesa e lusófona, para o nosso século, para os nossos tempos. Tal projecto, cuja expressão máxima, é a vivência do Culto do Espírito Santo em todas as suas potencialidades, concretizar-se-á a partir do momento em que Portugal, enquanto Pátria Real, se assumir veículo para toda a lusofonia, para todo o Portugal que se multiplicou e re-descobriu no resto do Mundo.

Todos os aspectos que António Quadros trata na sua obra relativamente à ideia de Deus e à noção de Pátria estão intimamente relacionados com a crítica que, desde o século XVII , se faz a uma suposta estrutura psicológica e cultural do ser português e que ganhou mais evidência através do polemismo que António Sérgio lhe empregou. Na realidade, quando afirmamos que a hermenêutica de Quadros, no que concerne à compreensão de uma identidade nacional e à proposta de uma filosofia providencialista, depende da crítica que é engendrada por movimentos filosófico-culturais opostos ao seu, queremos especificamente dizer que, por um lado, o autor se beneficia de tais críticas na medida em que ao esmiuçá-las, salienta os pontos que mais lhe convém e esclarece os seus pontos de vista, por outro, porque a doutrina que pretende demonstrar só se compreende verdadeiramente na complementaridade do verso e do reverso em questão. Desta forma, a análise da polémica que António Sérgio erige em torno do sebastianismo torna-se fundamental por variados motivos. Em primeiro lugar porque o autor de Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista concede demasiada importância aos polemismos sergianos, ou seja, tende a qualificá-los como redutores e ameaçadores da sobrevivência da lusitanidade; em segundo porque considera que “o sebastianismo é um fenómeno com raízes profundas na nossa estrutura cultural. É um dado importante da psicologia portuguesa e brasileira. É um tema com fortes repercussões, não só na nossa literatura e no nosso pensamento, mas ainda no nosso devir histórico. E não pode ser visto unicamente como uma manifestação situada ou circunscrita num espaço e num tempo, porque adquire, nos seus assuntores e vivenciadores mais qualificados, ressonâncias que o religam à gesta universal do homo viator” , isto é, mais do que um fenómeno em estrito senso, o sebastianismo parece abarcar a essência do ser português; e em terceiro porque o ideólogo dos Ensaios permite-nos questionar acerca daquilo que está para cá da dimensão mitológica e imaginária do movimento sebástico e que, ao contrário do que supõe António Quadros, não é algo unicamente historicista, sociológico, reducionista e menor. Uma leitura entrecruzada da polémica sergiana com o projecto áureo português proposto por Quadros conduzir-nos-á a uma reflexão mais apurada sobre a conceptualização de uma filosofia da cultura portuguesa.

Em 1983, no II volume de Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, o nosso autor afirma, logo no início, que “a polémica contra o sebastianismo, tal como foi conduzida, sobretudo por António Sérgio, temos de concluir que a sua pontaria errou quase sempre o alvo. Foi, em suma, uma campanha ligeira e ao mesmo tempo grosseira, no decurso da qual Sérgio manifestou a sua total incapacidade de compreensão de um fenómeno tão complexo” . Fenómeno esse que António Quadros descreve como “um mito de protesto contra o presente decaído e ao mesmo tempo de confiança na salvação futura, mito com raízes fundas no inconsciente colectivo, já não diremos apenas português, mas universalmente humano” . Na visão deste pensador, o ideólogo seareiro não só não compreendeu a natureza, o fundamento e o objectivo do mito sebástico, como, igualmente, deturpou a densidade histórica de D. Sebastião, acusou o movimento sebastianista de falta de originalidade e qualificou os adeptos do sebastianismo de “patetas” e “psicopatas”. Mas Quadros vai mais longe quando escreve que “Sérgio viveu num mundo de quantidades intermudáveis, de estatísticas que tudo explicam, de figuras geométricas rectílineas, de demonstrações matemáticas e de teoremas cujos resultados são indiscutíveis, evidentes e universais – sujeitando, pois, a esse ponto de vista abstractivo todos os temas que lhe interessou discutir, mudar, reformar.

Foi um pensamento essencialmente redutor. Um pensamento constantemente apostado em reduzir o complexo ao simples, o enigmático ao claro, o curvilíneo ao rectilíneo, o múltiplo e o diverso ao uniforme, o imenso ao mínimo, o espiritual ao material e o antropológico ao sociológico. Por isso, polarizou e orientou os desejos obscuros de igualização pela mediocridade de uma burguesia desenraizada, céptica e materialista, à procura de justificações ou álibis para o seu pragmatismo de curto fôlego”.

Reconstituamos a polémica e analisemos, com isenção, os argumentos de cada lado. É a partir da sua colaboração na Águia, logo após a implantação da República em Portugal, que António Sérgio se manifesta contra os princípios que orientam, em certa medida, a edição dessa Revista por Teixeira de Pascoaes. Contudo, apesar de considerar o poeta do Marão como saudosista, ultramontano e lusitanófilo, colaborará com o Órgão da Renascença Portuguesa bastante tempo, diremos até que nele verá uma tribuna para se expressar livre, larga e contrastadamente: “todas as questões sociais devem na Águia ter lugar, desde que sejam tratadas com seriedade, sobriedade e certa altura de pontos de vista” . Mas a polémica de Sérgio acerca de uma identidade nacional e de uma psicologia lusíada inicia-se aí. Se no início de 1912, confessa a Raúl Proença que “os rapazes tendem a fazer da revista um campo fechado da seita poético-neo-místico- saudosa” , não tarda a endurecer as suas críticas e a proclamar que as correntes e os fundamentos que os membros, em geral, da Águia defendem não são coerentes e aplicáveis ao Portugal do século XX: “Não desejo ferir o Pascoaes, certamente, porém julgo-me não só no direito mas também no dever de protestar contra o saudosismo, visto que o creio uma tendência nociva e contrária à regeneração da vida, da inteligência, da educação e do carácter português. O temperamento saudoso (elegíaco, literatesco, voltado para o passado) é exactamente o maior defeito de que sofremos. Precisamos das qualidades contrárias de senso prático, inteligência lúcida, amor das actividades úteis e da ‘existência de comerciantes honrados’ que o Pascoaes estupidamente desdenhou. Precisamos exactamente de ser comerciantes honrados (tal era Bach, o mais altamente idealista de todos os músicos), em lugar do que temos sido: saqueadores, parasitas, fadistas, bacharéis inúteis, bandidos desonrados” . Se guerreia contra o saudosismo pascoaesiano, contraria, de igual forma, o sebastianismo que, na época, Fernando Pessoa já exaltava: “A Renascença, dando-lhe [ao Fernando Pessoa] a honra e o privilégio de substituir o seu chefe no artigo de fundo doutrinal, tornava-se solidária dessa revivescência do que houve de mais imbecil e decaído no espírito português: o desvairamento histérico em que nos deixou Alcácer”.

A bem da verdade, António Sérgio não conseguiu destrinçar o D. Sebastião histórico do movimento mítico-saudosista que se fundou a seguir ao seu desaparecimento no deserto marroquino e, nesse ponto específico, António Quadros tem razão. No entanto, este último relevou todos os aspectos negativos que conduziram a tomada do Norte de África, por parte do Rei Desejado, ao fracasso e à perda da independência portuguesa. Para o autor de Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, à semelhança de Pascoaes, o abismo em que Portugal caiu (o Portugal real e histórico), constituiu-se enquanto catarse  e permitiu que o país se elevasse para uma dimensão superior, espiritual, mítica que transcende qualquer queda histórica, objectiva e factual. Ao menosprezar esta vertente a favor de uma outra que enaltece apenas a poesia, o romantismo, a mitologia, Quadros também errou e, em certa medida, cometeu o mesmo pecado que Sérgio cometera: confundir dimensões que, a priori, não podem sequer tocar-se, quanto mais reunir-se. Uma coisa é filosofar a propósito daquilo que é misterioso, simbólico, enigmático, arquetipal, inefável, essencial, mitológico, - Quadros considera que “não é uma actividade menos racionalista pensar a saudade ou o mito, do que pensar a sensação ou a percepção”  -, outra é confundir ou misturar dimensões, como se cada uma pudesse influir categorialmente na outra. Tanto António Sérgio como António Quadros não conseguiram distinguir os erros do D. Sebastião histórico do romantismo do D. Sebastião mitológico, por exemplo. Ora, o âmago da polémica reside precisamente aqui. Sérgio, e outros como ele que defendem o racionalismo e o idealismo crítico, denunciam os malefícios que foram impregnados à educação dos portugueses por via de uma exaltação messiânica, profética, romântica e saudosista da historiografia lusitana e que, no seu entender, conduziram Portugal para a inércia, para o atraso social e cultural, para o conservadorismo, para a pequenez mental. Por sua vez, António Quadros, e todo o movimento da filosofia portuguesa, consideram que Portugal é detentor de um projecto áureo, universal e congregador para toda a humanidade e que, por esses motivos, não poderá ater-se somente àquilo que é temporal, contemporâneo, progressista, mas, acima de tudo, àquilo que extrapola este patamar e se ocupa do mito, dos símbolos, dos arquétipos e das formas. Contudo, Quadros não é totalmente justo com Sérgio quando afirma que o ilustre seareiro “adoptou desde o princípio e como princípio o modelo matemático-geométrico da realidade sociocultural e humana, em detrimento do modelo biológico. Foi um clássico e um anti-barroco. Mas foi um clássico maniqueísta, ao contrário dos Gregos, que reverenciavam ao mesmo tempo Apolo e Dionisos, Atena e Deméter, a Filosofia e os Mistérios, a Ordem Dórica e a Tragédia.

Ignorando a exuberância multímoda e sinuosa do impulso dionisíaco, passando ao lado do mistério do ser, da natureza e do homem” . Como sabemos, António Sérgio foi um opositor do materialismo em estrito senso; condenou a separação que comummente se faz entre razão e sentimento / emotividade ; defendeu a existência e a inefabilidade dos mistérios . No entanto, os objectivos que subjazem aos dois lados desta polémica que já se trava há mais de dois séculos em Portugal, não deixam de ser idênticos: ambos visam edificar uma filosofia da cultura portuguesa.

A filosofia da cultura portuguesa que António Quadros defende está associada ao projecto áureo e universal destinado aos portugueses, cujos pressupostos se baseiam na paideia dionisíaca, essencialmente no Culto do Espírito Santo. Esta apologia propõe uma visão ecuménica para o cristianismo e para o catolicismo. Quadros crê que, num tempo futuro, todas as grandes religiões se fundirão entre si por meio da Nova Aliança e estabelecerão uma nova Era - a do Espírito Santo. Tal Idade promover-se-á em direcção a um movimento universal e ecuménico e realizará a Profecia que está revelada no Apocalipse de São João: o re-estabelecimento da Nova Jerusalém. Este Tempo ou Idade do Espírito Santo que o nosso autor propõe, sobretudo no II.º livro de Portugal – Razão e Mistério, é inspirado na hermenêutica joaquimita das Três Idades que Jaime Cortesão e Agostinho da Silva discutem aprofundadamente nas suas obras. Deste modo, à semelhança de Agostinho e de Cortesão, António Quadros apresenta uma leitura muito mais fiel àquela que foi veiculada pela tradição do franciscanismo espiritual (ou até mesmo radical) do que à interpretação deixada pelo próprio Joaquim de Fiore.

Em traços muitos largos, na medida em que tal teoria da história é assaz conhecida de todos e porque já se encontra exposta e discutida neste volume , resta-nos sintetizar os seguintes aspectos: Joaquim de Fiore, abade cisterciense, nascido em Itália no século XII, propõe uma nova teoria da história baseada numa hermenêutica aprofundada dos Evangelhos. Na sua perspectiva, a história divide-se em três tempos ou em três idades: a Idade do Pai, a Idade do Filho e a Idade do Espírito Santo. A Idade do Pai corresponde a um tempo criador e legislador, a Idade do Filho a uma época de amor e de caridade e a Idade do Espírito Santo a uma era de graça plena. A primeira é uma idade já pretérita, a segunda é a idade do presente e a terceira e última é uma idade do futuro. Tal teoria terá sido supostamente difundida pelos franciscanos espirituais por toda a Europa e terá interessado a alguns cientistas, médicos, filósofos e clérigos. Dentre eles, Arnaldo de Vilanova, médico da Princesa Isabel de Aragão, futura mulher de D. Dinis e futura Rainha de Portugal. Algumas fontes afirmam que Vilanova iniciou a Rainha Santa nas teorias joaquimitas ou na perspectiva radical que os espirituais fransciscanos delas fizeram, que, ao serem partilhadas com D. Dinis, terão conduzido os monarcas portugueses a criarem o Culto do Espírito Santo. De um ponto de vista simbólico, tal culto consistia na eleição de uma pessoa como Imperador, que depois de ser coroado, saía em procissão pelas ruas, rodeado de muita festa e celebração. Era comum o tal Imperador conceder dote às donzelas pobres que estavam em vésperas de casar. Com a expansão do Culto do Divino Espírito Santo para as ilhas dos Açores e depois para a Índia e para o Brasil, a simbologia da sua adoração foi-se alterando gradualmente. De tal modo que, tal como Agostinho da Silva defende na sua obra, chega a uma determinada altura em que o Culto é vivido em três grandes momentos: a coroação de um Menino como Imperador do Mundo, a soltura dos presos e a realização de um banquete gratuito.
 
No que diz respeito à influência que Arnaldo de Vilanova imprimiu no pensamento de D. Dinis, António Quadros vai ainda mais longe. O autor considera a possibilidade do médico catalão ter visitado Portugal e, pessoalmente, ter colocado o Rei Poeta a par das profecias joaquimitas . Está convicto, aliás, de que D. Dinis é um dos homens espirituais a quem Joaquim de Fiore faz menção nas suas obras. Ou seja, é um dos eleitos a quem foi confiado fazer a transição entre a Idade do Filho e a Idade do Espírito Santo, tão simplesmente porque, pelos cálculos de gerações esboçados pelo monge, a Era do Espírito Santo teria início no ano de 1260. Curiosamente, D. Dinis nasce em 1261. Para Quadros, o monarca foi um dos escolhidos para encetar o ano 1.º da Idade do Espírito Santo. Para além de tudo isto, se tivermos em conta os obstáculos burocráticos que o Rei teve de enfrentar para ser coroado, conclui-se que D. Dinis foi divinamente eleito . Contudo, a leitura apresentada por Quadros, quanto a esta questão, não pode ser considerada definitiva e absolutamente: se considerarmos a flutuação do número de gerações depois de Cristo, o começo da Idade do Espírito Santo define-se no ano de 1200 e não no de 1260 . De todo o modo, o que é relevante equacionar, não é tanto as afinidades que a proposta de António Quadros sente com aquela que De Fiore apresentou (até porque, como já notámos, o autor, seguindo a linha de Cortesão e de Agostinho, descomplexifica e metaforiza alguns pontos da teoria da história joaquimita), mas antes compreender de que modo o Culto que Isabel e Dinis conceberam se pode constituir enquanto projecto áureo para o futuro de Portugal. Até porque, segundo julga António Quadros, “não foi uma festa que aconteceu. Não foi uma espontânea manifestação ingénua e popular. Foi um acto intencional e pesado de simbolismo, tão intencional e pesado de simbolismo, que sem uma reflexão sobre o seu sentido não se nos afigura possível entender o movimento teleológico da pátria portuguesa neste período áureo e axial”.

No livro II de Portugal – Razão e Mistério, António Quadros explicita de que forma é que o telos de Portugal, enquanto Pátria, se revê na paideia dionisíaca: “Não será excessivamente ousado dizer que a paideia original portuguesa (...) ganha realidade e estabelece os seus princípios com o reinado de D. Dinis, exprimindo-se visível e profeticamente com alguns gestos pesados de significado, de simbolismo e de energia genesíaca, rigorosamente coerentes e entre si complementares, porque exprimindo desde logo um sistema, como é próprio de toda a paideia, conforme o paradigma grego. (...) Assim no caso português foi com D. Dinis que a paideia geral oeste-europeia, cristã e católico-romana, românico-gótica e escolástica, cavaleiresca e feudal, recebeu uma interpretação, uma reorientação e uma direcção de algum modo inesperadas, abrindo-se então um novo ciclo teleológico na vida portuguesa, criando-se entre nós uma paideia original e surgindo uma dimensão inédita da cristandade e da europeidade. (...) O rei D. Dinis faz contudo um projecto concreto e novo, de surpreendente inventiva, de genial visão teleológica, de extraordinária coragem ética e intelectual” . No fundo, Quadros quer dizer que D. Dinis – o plantador de naus a haver -, ao instaurar o Culto do Espírito Santo, ao oficializar a língua portuguesa, ao fundar o Estudo Geral (Universidade Portuguesa), ao salvar a Ordem dos Templários transformando-a na Ordem de Cristo, ao viabilizar, em certa medida, a empresa dos Descobrimentos, acaba por estabelecer os principais fundamentos de uma paideia singular que concretizará um novo Portugal, que projectará o futuro deste país por muito séculos em diante. Tantos que, ainda hoje, há quem, como António Quadros, no século XX, acredite que o plano missionário dos portugueses ainda não se cumpriu integralmente, que a Idade do Espírito Santo ainda não foi instaurada de uma forma plena. Essa missão estabelecer-se-á a partir do momento em que o ecumenismo e o universalismo forem implantados, quando os portugueses, de toda a sua extensão lusófona, compreenderem que a sua incumbência é traduzir para os demais povos a linguagem do Espírito Santo.

Poder-se-á atestar, conclusivamente, que, no contexto do movimento da filosofia portuguesa, do qual António Quadros é um dos membros mais entusiastas, há um conjunto de pressupostos que caracterizaram a ideia de Deus ou que a ela estão associados e que se resumem aos seguintes itens: providencialismo, determinismo e liberdade, messianismo, profetismo, santíssima trindade, ecumenismo, humanismo universalista, cristianismo primitivo, franciscanismo espiritual, culto mariano, sensibilidade panteísta e saudosismo. No entanto, tudo isto se explica para António Quadros porque “são os portugueses a nosso ver os directos descendentes da cepa atlante sobre cujas sementes espalhadas pelo mundo, se ergueu o edifício da civilização mediterrânica. Tronco antigo e nodoso, que recebeu ao longo do caminho muitas enxertias, mas que permaneceu basicamente o mesmo. Parece ser seu destino a capacidade de criar os grandes ciclos da cultura e da civilização, para logo depois, como se esgotado pelo esforço ou como se castigado pelos desvios da sua fragilidade humana, demasiado humana, entrar em longos períodos de decadência de que aliás volta a emergir para de novo dar novos mundos ao mundo. Não para sermos uma nação feliz parecemos ter nascido, mas para sermos construtores de história em épocas axiais ou fundadoras...

Povo da saudade e do saudosismo, mas também povo teimoso, povo de esperança, ainda que absurda, projectada em última análise no mito quando tudo parece perdido ou já não há confiança nos dirigentes, nas elites, nas condições sociais, económicas e materiais”.

Romana Valente Pinho
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa

Pátria Real e Pátria Imaginária:
uma reflexão a partir da obra de António Quadros 

“A razão de Portugal, a razão de ser de Portugal é antes de tudo uma razão teleológica, isto é, uma razão aberta para com um telos ou um fim que é a justificação última do seu movimento no tempo e no destino”.
António Quadros, Portugal – Razão e Mistério, vol. I

“Portugal é um balcão sobre o infinito”.
Hermann de Keyserling, Analyse Spéctrale de l’Europe

Na esteira de Luís de Camões, António Vieira, Sampaio Bruno, Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Leonardo Coimbra, Raúl Leal, Fernando Pessoa, José Marinho, Álvaro Ribeiro e Agostinho da Silva, António Quadros (1923-†1993) defende que a nação portuguesa, na sua essência, conceitual e objectivamente, é dotada de um eschaton, de uma razão teleológica, que consiste num diálogo ou numa dialéctica entre o humano e o divino: “Talvez nenhuma história humana, como a portuguesa, em seu esplendor, em seu claro-escuro e em seu negrume, seja tão dramaticamente exemplar desta dialéctica”.

António Quadros apresenta-nos, então, Portugal enquanto Pátria eleita por Deus, destinada a realizar fins universais. À semelhança do povo de Israel, parece que os portugueses são também um povo eleito por Deus. No pensamento do autor de Portugal – Razão e Mistério, esta questão emerge, quase logo, sem qualquer mediação, ou seja, se Quadros chega a afirmar que “a cada povo é proposto um ideal diferente de realização da humanidade ... E nem poderia ser de outra forma, porque os povos não são iguais, diferem pelo seu composto étnico, pela língua que falam, pela estrutura cultural em que se enquadram, pela sua religião ou religiões dominantes, pelas vicissitudes da sua história particular, pelo seu sistema de ideias, mitos e tendências afectivas, pelo seu ritmo evolutivo segundo um modelo próprio embora implícito, aliás adequado à substância específica da sua realidade humana e social, enfim pela revelação que a todos os níveis lhes é concedido em sua experiência de ser. ¶ Mas no segredo da sua relação com a natureza e o mundo, no enigma da sua psicologia, arte, literatura e simbólica ou no mistério da sua cifra divina, realizam dentro de si o universal, são microcosmos exemplares da univocidade humana versus um eschaton uno e último” , imediatamente escreverá, na página 17, que “o povo português, formando no conjunto e na hierarquia intelectual dos seus estratos a nação portuguesa, teve um projecto, ou melhor, guarda nos seus arcanos, no seu inconsciente arcaico, na cifra da sua língua e cultura, na sua memória inconsciente, no seu imaginário, no seu pensamento implícito e por vezes explícito, um projecto, a que chamamos um projecto áureo de realização da humanidade”. Se, a priori, António Quadros discorre acerca da propensão particular e universal de cada povo, se apela para a diversidade natural de cada um, por outro lado, sublinha a universalidade e a pluralidade de Portugal. Embora todas as nações, em si, sejam, plurais, diversas e diferentes, parece que Portugal é mais plural, mais diversa e mais diferente do que todas as outras. E só o é porque Deus assim o quis, porque  a ele confiou um projecto maior, a saber, purificar a razão humana por meio do Espírito Santo. Independentemente de os portugueses terem sido eleitos por Deus ou, como preferia Agostinho da Silva, se terem auto-eleito para a edificação de uma empresa universal, o que importa realçar é a característica dessa demanda. Quadros sintetiza-a, à maneira camoneana e pessoana, enquanto epopeia de Deus através do homem português, como aventura de Deus na terra.

Apoiado numa tradição de muitos séculos de filosofia providencialista, teleológica, mística e sebástica, António Quadros dirá, quase ipsis litteris, o mesmo que Camões, Vieira, Pessoa e Agostinho da Silva, a seu tempo, disseram. Restar-nos-á, então, apenas questionar a validade de tais argumentos para os séculos XX e XXI? Ou, além disso, ser-nos-á possível consentir, admitir e perpetuar algo que, à partida, não passa de um dogma, de um dogma da portugalidade ou da lusitanidade, de um dogma que postula o nosso país enquanto periferia privilegiada? Parece-nos, desde já, que nada há de pejorativo ou judicativo nesta interrogação: um dogma é apenas um dogma, algo que apenas não pode ser questionado, nada mais.

Se, como já apontáramos antes, Deus confiara aos portugueses um destino eleito, áureo e providencial, resta-nos, pois, analisar o cariz desse destino. Quadros descreve-o usando adjectivos precisos e, de alguma maneira, peremptórios e significativos: missionário, sacrificado, heróico, abismático, promissor, saudoso e esperançoso. Embora alguns destes adjectivos sejam contrários entre si, na sua essência revelam, curiosamente, tal como Teixeira de Pascoaes aponta, a particularidade do ser português. A peculiaridade do destino dos portugueses resulta, portanto, do decurso plural, multímoda e diferenciado da sua História. O nosso autor atribui-o especificamente à influência que São Bernardo de Claraval teve na construção do ideal templário que perpassou por todos os principais movimentos de criação e renovação de Portugal, desde, por exemplo, da iniciativa fundadora de D. Afonso Henriques até à empresa dos Descobrimentos; à característica messiânica do sebastianismo; à vertente criacionista do saudosismo; e, acima de tudo, ao projecto áureo de Portugal que se constitui e se revê integralmente no culto do Espírito Santo. Todos estes aspectos confluem para o estudo da arqueologia da tradição portuguesa; para a assunção, por parte daqueles que se reconhecem herdeiros desta gesta, de uma missão que não é apenas terreal mas que é também paradisíaca (o fito do templarismo, do sebastianismo, do saudosismo ou até mesmo do pentecostismo é, no fundo, o estabelecimento da Jerusalém Celeste, do Reino de Deus na Terra; é o regresso às origens edénicas); para o enaltecimento da filosofia providencialista e, consequentemente, para a rejeição do positivismo histórico e do idealismo crítico (este último defendido, em Portugal, sobretudo por António Sérgio).

No livro II da sua obra Portugal – Razão e Mistério, António Quadros aponta que “se a Nação é a comunidade natural dos nascidos ou oriundos do mesmo território e se o Estado é a expressão política desta comunidade natural, ainda precária, a Pátria é a relação viva, profunda, substancial de um povo, não só com uma tradição contínua, transmitida de pais para filhos e articulada por laços culturais, políticos e jurídicos, mas também com um projecto teleológico original.

Por outras palavras, a Pátria, até etimologicamente, não é só a relação de cada um com a terra em que nasceu, é mais do que isso, é a relação com a terra dos Pais, com a comunidade dos antepassados, é uma vinculação antes humana e familiar do que telúrica ou territorial, implicando, por isso mesmo, desde que assumido dinamicamente o conceito, a prospectividade de um movimento para o futuro. Terra dos Pais, é necessariamente também a Terra dos Filhos e dos Irmãos. E, nesta transmissão amplificante, desenvolve-se um espírito personalizado, um projecto, uma teleologia nacional” . Ao fim e ao cabo, a Pátria é mais do que um conjunto de princípios jurídicos, estes absolutamente frágeis, exteriores e falíveis, defensáveis pelas nações e pelos estados para que a ordem, a legalidade e a sobrevivência não sejam ameaçadas, para que o estado natural, de barbárie e selvajaria, não volte a amedrontar os seres humanos. A Pátria, ao invés disso, rege-se por princípios sagrados e fins superativos. Ora, para Portugal e para os portugueses, tais princípios e tais fins foram ofertados por Deus. Esta questão específica, como acima defendemos, é um dogma e, nesse sentido, talvez não seja despropositado sugerirmos uma distinção entre Pátria Real e Pátria Imaginária ou Mítica. Por Pátria Real entenderemos uma sociedade (enquanto Estado-Nação) que, para além de se reger por um conjunto de princípios e sentimentos superiores que prezam a sua unicidade, a sua tradição, o seu passado histórico e o seu porvir, acolhe, da mesma forma, uma série de categorias que lhe permitem actuar como Pátria moderna, aberta ao Mundo e às novidades do seu tempo. Os cidadãos de uma Pátria Real até poderão pensar que são seres predestinados a um fim universal e áureo, que são missionários de um Além Reino, mas não terão como descurar os processos históricos nos quais estão envolvidos, as matizes sociológicas e culturais que, a todo o instante, se lhes apresentam. Afonso Henriques foi um patriota de uma Pátria Real, os portugueses que navegaram todos os oceanos e criaram novas civilizações, fundindo-se com outras culturas, foram patriotas de uma Pátria Real. De outra forma, por Pátria Imaginária ou Mítica compreenderemos uma ideia de sociedade que se exprime na exaltação constante de princípios superiores e divinos, na sublimação de arquétipos messiânicos e proféticos e, simultaneamente, no corte com todos os movimentos sociológicos, materialistas, económicos, historicistas, progressistas e estrangeirados que naturalmente conduzem as nações para a actualidade e para as experiências do seu tempo. Dizemos Imaginária ou Mítica tão-só porque não é real e porque sobrevive apenas na imaginação, nas quimeras e nos mitos daqueles que a exaltam e nada fazem para que ela se torne real. A ideia de Pátria que António Quadros defende é aquela que definimos como Pátria Real (notemos que o auge da sua ideologia se centra na perpetuação da paideia dionisíaca para o porvir de Portugal), contudo, a partir do momento em que o autor de Portugal – Razão e Mistério rejeita um par de princípios que, pela sua contemporaneidade, são fundamentais para a vivência das nações no seu dia-a-dia e se refugia apenas nos princípios superiores, divinos, predestinados que, supostamente, fundamentam a existência e o futuro de Portugal, a ideia de Pátria que acaba por vingar nos seus escritos é aquela de uma Pátria Imaginária ou Mítica, que vive somente no seu espírito e que, por não se embrenhar na realidade e no contexto da vida contemporânea, nele se estagnará. É neste aspecto que a consideramos um dogma, já que os pressupostos em que assenta não são passíveis de discussão racional, pertencem a outras ordens: da crença e do mito. Esclareçamos com estes exemplos: “A Pátria conquista, se e quando tal sucede, mais do que a frágil e aleatória legalidade jurídica, uma legitimidade transcendental, que já não deriva da simples ocupação e posse de um território, mas de princípios sagrados e de fins superativos” ; “Profetas e santos, filósofos, sábios e poetas, heróis ou até políticos são os motores da história, não porque exprimam forças materiais e sociais, não porque sejam agentes de um jogo de interesses económicos e nem sequer porque governem a existência pelo seu voluntarismo pessoal, de grupo ou de classe, mas porque se dá neles uma convergência da qualidade humana individual com a graça ou com a escolha divinas” . Na nossa visão, não basta exaltar uma ideia de Pátria para que ela se efective, é necessário que essa evocação se presentifique e se torne real, no fundo, se faça viver no quotidiano. Neste aspecto, é cada vez mais difícil interpretarmos comentários como os de Hermann de Keyserling, na medida em que, ao mesmo tempo, nada e tudo dizem. A que é que este autor se refere quando afirma que “Portugal é um balcão sobre o infinito”? Se, aparentemente, adjectivar Portugal enquanto balcão sobre o infinito significa muita coisa, tudo até, na realidade, poderá não significar nada, é algo muito abstracto, difuso. Tal expressão constitui-se, porventura, como uma daquelas frases que contribuem para o conceito de portugalidade como dogma e que está associada à assunção de Pátria Imaginária. De qualquer forma, a noção de Pátria que António Quadros nos apresenta, especificamente aquela que intitulámos como Pátria Real, e que se revê na paideia que D. Dinis concebera,  transcende qualquer polemismo e dilemática que, desde sempre, se tem gerado em torno desta questão e é perfeitamente defensável, no contexto da contemporaneidade portuguesa e lusófona, para o nosso século, para os nossos tempos, e não só, tal como o nosso autor propõe, para uma dimensão inédita da cristandade e da europeidade. Tal projecto, cuja expressão máxima, é a vivência do Culto do Espírito Santo em todas as suas potencialidades, concretizar-se-á a partir do momento em que Portugal, enquanto Pátria Real, se assumir veículo para toda a lusofonia, para todo o Portugal que se multiplicou e re-descobriu no resto do Mundo.

“Há três anos passados, na Véspera de Pentecostes, dia 1.º de Junho de 1935, pela estrada que liga à Vila de Estaca-Zero, vinha se aproximando de Taperoá uma cavalgada que iria mudar o destino de muitas das pessoas mais poderosas do lugar (...). Era, talvez, a mais estranha Cavalgada que já foi vista no Sertão por homem nascido de mulher. (...) A segunda singularidade era que a Cavalgada tinha, à frente, três homens, à guisa dos ‘matinadores’ que iniciam nossos desfiles de Cavalgada. O primeiro, o mais da frente, estava a cavalo, e conduzia na mão uma bandeira que, depois, devidamente instruído por mim e pelo Doutor Pedro Gouveia, o Cantador Lino Pedra-Verde descreveria assim, no ‘folheto’ que escreveu sobre o acontecimento:

‘Dividida por dois Campos
- um Direito e outro Esquerdo –
tinha três onças vermelhas
em campo de Ouro – o Direito –
e Contra-arminhos de Prata
semeando o Campo negro’
 
(...) Atrás, porém, desse primeiro matinador, vinha um segundo homem, a pé, conduzindo uma pesada haste de madeira, com outra menor cruzada em cima, sendo que esta, braço transversal da cruz, vinha cheia de Gaviões e Carcarás, amarrados pelos pés e argolinhas cravadas na madeira. Em seguida, a cavalo, vinha um terceiro homem, o mais esquisito de todos, creio. Era uma espécie de Frade-cangaceiro. (...) Entretanto, o nosso Monge-cangaceiro daquele dia não vinha nem com sobrepeliz nem com armadura de ferro. Envergava um burel branco, com um enorme Coração-de-Jesus sangrento e flamejante, bordado a seda vermelha, no peito. (...) O Frade conduzia ainda, (...) uma bandeira, mais alta do que larga, vermelha e com peças de ouro enfeitando o campo encarnado (...). Nos cantos,  formando uma “aspa” ou “santor”, havia quatro peças que pareciam ter sido bordadas em pano amarelo, imitando “ferros” de ferrar boi, mas que, de facto, ‘simbolizavam chamas’, (...) havia um Sol com dezasseis raios e com seu centro, vazio, formando um anel que circundava um pombo volante. Embaixo do Sol, uma Coroa Real, encimada por Esfera e Cruz, sendo todas essas peças ‘de ouro em campo de goles’”.
Ariano Suassuna, O Romance da Pedra do Reino

Romana Valente Pinho
Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa