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Mafalda Ferro
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Os contos de fadas na poesia de Fernanda de Castro1

As mulheres – detentoras da cultura oral milenar – são, sem dúvida, por excelência, as contadoras de histórias (G. S. Dias, 1998: 615); histórias de princesas, de reis e rainhas, de madrastas, bruxas malvadas, fadas boazinhas, passadas de geração em geração.
A mulher, encarregada da educação dos filhos e, muito particularmente, das filhas – que com ela passavam quase exclusivamente, até muito recentemente, a infância e a adolescência, contava-lhes histórias que tinha ouvido a sua mãe ou a sua avó contar. Diz-nos Consiglieri
Pedroso, na sua nota introdutória a Contos Populares Portugueses, que «os narradores a quem nos socorremos [eram] na maior parte mulheres, que conservam e transmitem mais pura e mais intacta a tradição» (Consiglieri Pedroso, 1992: 33).
Contando histórias, as mulheres criavam e recriavam mundos fantásticos, edificando vagarosa, mas solidamente todo um mundo maravilhoso que ficaria retido no inconsciente feminino e surgiria depois na sua poesia.
Mas qual é a função destes contos de fadas, e por que razão recorrem nos poemas de mulheres adultas? Nós acreditamos que os contos de fadas devem ser vistos como representações simbólicas de experiências de vida, e pensamos que é com esta função que as poetisas os utilizam, o que nos leva a analisar os poemas à luz das teorias psicanalíticas.2
As referências aos contos de fadas remetem-nos, geralmente, para episódios da infância dos sujeitos líricos. As poetisas servem-se dos contos para descrever um acontecimento iniciático e/ou assustador (os elementos do conto Capuchinho Vermelho desempenham um papel particularmente importante, visto este conto ser uma representação simbólica da entrada na puberdade e da descoberta do sexo). Os contos de fadas cumprem ainda o propósito de ilustrar temáticas do presente adulto da entidade lírica, e que se tornam mais facilmente exprimíveis  através do recurso a figuras universais, imbuídas de um simbolismo explicativo, permitindo a condensação de problemáticas por vezes difíceis de expor claramente devido à sua carga emotiva Fernanda de Castro, no poema «Menina Perdida», descreve uma menina que se perde no bosque, por caminhos duros «de pedras e espinhos» (F. Castro, 1989: 98). As palavras «menina» e «bosque» remetem-nos de imediato para o conto O Capuchinho Vermelho deixando, assim, antever uma experiência iniciática. O Capuchinho Vermelho, uma jovem entre os treze e os quinze anos, externaliza os processos internos da puberdade da criança que se torna mulher. A cor vermelha do capuchinho, assim como a referência às «mãos frias, em sangue», apontam para esse período da primeira menstruação para a qual ela não está ainda preparada: «os gestos errados,/ os passos incertos,/ os gestos cansados.» (1989: 98). O bosque representa o desconhecido, um emaranhado denso de situações novas, onde é fácil perder-se uma menina inocente. A dureza da experiência descrita («pés nús, alma exangue,/ vestidos rasgados,/ mãos frias, em sangue» (1989: 98) evoca um cerimonial iniciático do fim da infância e da entrada na idade adulta, quando a criança tem de enfrentar a realidade – que se apresenta dolorosa e assustadora – da vida. A situação implícita no poema de Fernanda de Castro é parecida àquela do conto original, quando o Capuchinho Vermelho se depara com o Lobo Mau. O faminto animal do conto (cuja acção sobre o sujeito do poema se subentende no seu «vestido rasgado») é, na nossa opinião, não apenas o sedutor, mas também o representante de tendências mentais e psicológicas dentro do próprio sujeito feminino, que este pode não saber como enfrentar e que podem levar a menina a expor-se perigosamente à possibilidade de sedução (B. Bettelheim,
1989: 170, 172, 173).
O sujeito poético - «Menina perdida/ no bosque da vida» - tal como o Capuchinho
Vermelho, não tinha forma de escapar ao inevitável: tomar consciência da sexualidade – que, aliás, se antevê na descrição dos «cabelos molhados», uma imagem sensual que surge com frequência nas cantigas de amigo3, mas cujas conotações eróticas estão presentes já desde os tempos bíblicos.
Atentemos na afirmação bíblica: Ora sucedeu que quando os homens principiaram a aumentar em número na superfície do solo e lhes nasceram filhas, então os filhos do [verdadeiro] Deus começaram a notar as filhas dos homens, que elas eram bem-parecidas; e foram tomar para si esposas, a saber, todas as que escolheram. (Genesis, 6:1,2). Diz-nos
George Ryley Scott, na sequência desta citação bíblica, que, tal como os anjos, também os demónios se sentiam atraídos pelas mulheres humanas, procurando, principalmente, aquelas que acabavam de atingir a puberdade e que tinham cabelos longos. Foi a consciência deste perigo que fez com que S. Paulo aconselhasse a todas as mulheres que cobrissem a cabeça. (George
Ryley Scott, 1966: 89). Daí que o Capuchinho Vermelho, que acaba de atingir a puberdade, cubra o cabelo com o capucho. Mas este é vermelho, símbolo da feminilidade e do sangue menstrual (Miles, 1988: 25), e símbolo de emoções sexuais violentas (B. Bettelheim, 1989:
173), para as quais a menina não está preparada, o que significa que a menina não conseguirá escapar ao Lobo Mau, e que esse será um encontro traumatizante, como vemos no poema: «vestidos rasgados / mãos frias em sangue».
O bosque desempenha um papel arquétipo essencial no imaginário dos contos de fadas.
Crianças e princesas perdem-se nele. Também nos bosques se encontram os seres sobrenaturais e as bruxas. E é para os bosques que se dirigem as virgens em Maio, à noite, para levar a cabo estranhos rituais. O bosque exerce um estranho fascínio, descrito em Novas Cartas Portuguesas deste modo: O bosque com as suas lenas sombras, as suas ternas saliências, o seu verde húmido de água; dunas. As suas dunas de pássaros adormecidos. A sua dormência uterina, a sua voragem quase mostruosa onde [Maria] mergulharia, se envolveria, despida de si por completo. (1974: 116) O bosque é, pois, como um ventre voraz. Mulher e bosque não se diferenciam, de acordo com o princípio ctónico que define a mulher como um ventre que engole e dá à luz (Paglia, 1991: 9, 10); um ventre nunca satisfeito, numa perpétua destruição do velho e criação do novo (Bakhtin, 1984: 240-243). Quando a entidade lírica do poema - ou o
Capuchinho Vermelho, com quem há uma identificação – se perde no bosque temível, onde habita o Lobo Mau, ela está, na realidade, a caminhar dentro de si mesma e a ver-se forçada a encarar algo que a assusta: a sua própria identidade sexual.
A tomada de consciência de possuir um sexo, de estar a tornar-se uma mulher, e de não estar ainda emocionalmente preparada para encarar essa realidade, é mais explícita no poema
«Ah, não», que nos parece referir o mesmo acontecimento do poema «Menina Perdida».
Chegamos a essa conclusão devido à coincidência entre o facto de ser uma menina e estar vestida de branco - «de branco vestida,/ de branco calçada.» no poema «Menina Perdida», e «eu
fui apenas/ a menina de Branco» (F. Castro,1989: 176-181) no poema «Ah, não». A cor branca é símbolo de pureza e virgindade, daí ser a cor escolhida para o traje da Primeira Comunhão, cerimónia descrita no poema «Ah, não» de Fernanda de Castro.
Mais uma vez, a poetisa recorre a um conto de fadas para sugerir a experiência iniciática.
Utiliza a imagética do conto A Bela Adormecida, sendo a entidade lírica comparada à princesa do conto, uma menina na idade de entrada na puberdade (como era o caso do Capuchinho Vermelho - «menina do bosque»). A idade púbere é-nos revelada pelo longo período de sono da princesa (antes de acordar com o beijo do princípe) que simboliza o estado infantil e inconsciente que antecede, nas mulheres, a primeira menstruação – a idade, portanto, na qual a
Bela Adormecida do conto «sai da crisália» e entra na puberdade. O «Príncipe Encantado» é ambíguo, ao mesmo tempo «perverso ou inocente» (1989: 180), com «cabelos de oiro,/ olhos de céu» (1989: 179) como os príncipes dos contos de fadas, mas também com «peçonha [no] olhar» (1989: 179) como o Lobo Mau. Este «Príncipe Encantado» fez a entidade lírica sentir «uma estranha vergonha» e «a ira, o fel/ [duma] dor sem nome» (1989: 179, 180), perante a antevisão de uma sexualidade para a qual não se encontrava ainda preparada. Esta iniciação e passagem para o mundo adulto é explicitada nas palavras da avó (que aparece no final do poema): «É a Vida,/ a Bela Adormecida/ que está quase a acordar...» (1989: 181). A entidade lírica está a acordar de um período de viagem interior e prepara-se para enfrentar vários perigos: deixar a segurança da infância, encarar as suas próprias tendências e ansiedades, conhecer-se a si própria (B. Bettelheim, 1989: 226). É importante notar que é a avó que se aproxima da menina e faz um resumo triste do acontecimento, já que a menstruação era vista como uma maldição que passava de mulher para mulher (B. Bettelheim, 1989: 233). Mas a avó é também a figura da anciã portadora de conhecimentos e contadora de histórias, talvez a única capaz – e com tempo - de compreender a menina.4
No seu poema Historiazinha Triste, Fernanda de Castro constrói uma história a partir do conto Cinderela. Há vários elementos que nos permitem identificar a presença do conto de fadas no poema, nomeadamente: a diferenciação entre a protagonista e as irmãs; o facto de «as irmãs
[terem] vestidos,/ com rendas, fitas e folhos» (F. Castro, 1989: 131) e terem «cabelos compridos» (que, no conto, a Cinderela tem de pentear); a ida das irmãs ao baile, deixando a heroína em casa e esquecendo-a completamente.
No entanto, certos elementos fundamentais deixam-nos perceber que este não é o conto que conhecemos, começando pelo título «Historiazinha Triste», que denuncia que este não é um autêntico conto de fadas, visto que não terá o típico final optimista e feliz. Além disso, a protagonista é feia - «Feiazinha sempre foi,/ sempre teve a pele baça» - , ao contrário das irmãs, que têm belos vestidos, e cabelos compridos «em que lhe ficam os olhos» (enquanto no conto a beleza de Cinderela se opõe à fealdade das duas irmãs). Ao contrário do conto, no poema a heroína poética não vai ao baile, não há qualquer fada-madrinha (como na versão de Perrault) ou árvore mágica (na versão dos irmãos Grimm) que a ajude, ficando só, abandonada no seu mundo triste, sem belos vestidos, apenas «embrulhada num xaile,/ a ver quem passa, à janela».
O príncipe de Cinderela - tal como o príncipe da Bela Adormecida que apareceu no poema anterior – não é, no poema, uma personagem positiva. Ao contrário do príncipe do conto de fadas, que se apaixona pela Cinderela e se casa com ela no final, a personagem masculina do poema aproxima-se da entidade lírica por pena primeiro: «Como quem atira um osso/ A um cão faminto e assustado,/ certo dia, certo moço/ beijou-lhe o rosto magoado» (1989: 132), e por curiosidade depois:«Beijou-lhe depois a boca/ só para ver como era». Os pequenos presentes de afecto fizeram com que a entidade lírica se entregasse completamente a esse homem: «Uma vez abriu-lhe a porta./ (Já lhe abrira o coração…)». Decidiu "abrir-lhe a porta", ou seja, entregar-se sexualmente, ignorando as vozes alheias que lhe chamavam «louca» e «doida». Mas, revelando uma extrema crueldade, esse indivíduo causou-lhe uma terrível humilhação: «não voltou,/ apesar da porta aberta». A "historiazinha triste" termina com a entidade poética ainda «mais feia», «na rua ainda mais deserta».
O conto Cinderela demonstra que, mesmo quando parece ser dura e difícil, a vida se torna bela no final. A Cinderela, suja e vestida de trapos, revela-se lindíssima no desfecho. As suas irmãs, que a trataram sempre como uma criada, são castigadas no fim. A mensagem é optimista e mostra que, apesar das adversidades que a protagonista tem de superar, a conclusão será justa e feliz. Segundo Bruno Bettelheim, Cinderela guia a criança através das suas maiores decepções -desilusão edipiana, ansiedade de castração, má opinião de si própria devido às más opiniões que acredita que os outros têm de si - ao encontro da sua autonomia, conseguindo uma personalidade própria (B. Bettelheim, 1989: 276).
Por sua vez, a Historiazinha Triste de Fernanda de Castro tem uma mensagem profundamente pessimista: a menina feia torna-se ainda mais feia, e o moço que parecia interessado nela abandona-a, sem lhe permitir a entrada na maturidade que os contos de fadas como Capuchinho Vermelho, Bela Adormecida, e Cinderela preconizam. Ao deixá-la com a porta de casa aberta (símbolo do seu corpo oferente), sem entrar, o homem não permite a perda da virgindade da protagonista e, consequentemente, a sua entrada num período de maturidade e de amor-próprio. Este poema mostra que a realidade é mais poderosa que os contos de fadas e diz-nos que a magia não tem o poder de alterar uma realidade triste. Apesar de a protagonista sofrer com a sua fealdade, enquanto as suas irmãs vão aos bailes, é ela quem é castigada na conclusão do poema – porque a realidade é, a maior parte das vezes, assim terrível.
Nos poemas analisados de Fernanda de Castro, as alusões aos contos de fadas tornam ainda mais dura a realidade, porque esta não termina da mesma forma feliz. Ainda que sirvam o propósito de dar forma a fenómenos de maturação dificilmente nomeáveis ou exprimíveis de outro modo, o recurso aos contos de fadas não termina, nos poemas de Fernanda de Castro, com a adaptação à realidade, mas sim como um despertar doloroso da infância para uma idade adulta onde já não é possível continuar a enganar-se e a fazer de conta que tudo está bem ou que tudo vai acabar bem.

Bibliografia
CASTRO, Fernanda de, 70 Anos de Poesia (1919-1989), Fundação Eng. António de
Almeida, Porto, 1989.
BAKHTIN, Mikhail, Rabelais and His World, trad. De Hélène Iswolsky, Indiana
University Press, Bloomington, 1984.
BETTELHEIM, Bruno, The Uses of Enchantment - The Meaning and Importance of
Fairy Tales, Vintage Books, New York, 1989.
CARTER, Angela (ed.), The Virago Book of Fairy Tales, Virago Press, London, 1991.
CORREIA, Natália (selecção, introdução, notas e adaptação), Cantares dos Trovadores
Galego-Portugueses, 2ª ed., Editorial Estampa, Lisboa, 1978.
DIAS, Graça Silva, "Itinerário de uma lenda: a Mulher de Branco", Actas do Quinto
Congresso (org. e coord. T. F. Earle), Oxford-Coimbra, Associação Internacional de
Lusitanistas, 1998, vol. I. p. 615-623.
FRANZ, Marie-Louise von, The Psychological Meaning of Redemption Motifs in Fairy
Tales, Inner City Books, Toronto, 1980.
_______________________, The Interpretation of Fairy Tales, Shambhala, Boston &
London, 1996.
GILLIGAN, Carol, Teoria Psicológica e Desenvolvimento da Mulher, trad. De Natércia
Rocha, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1997.
JOAQUIM, Teresa, Menina e Moça - A Construção Social da Feminilidade, Fim de
Século Edições, Lisboa, 1997.
PAGLIA, Camille, Sexual Personae - Art and Decadence from Nefertiti to emily
Dickinson, Vintage Books, New York, 1991.
PEDROSO, Consiglieri, Contos Populares Portugueses, 5ª ed. Ver. E ampl., Veja,
Lisboa, 1992.
SCOTT, George Ryley, Phallic Worship - A History of Sex and Sexual Rites, Senate,
London, 1996.
Notas
1. Declaro que a minha participação neste congresso foi patrocinada pelo Instituto
Camões e FCT, através do Programa Lusitânia.
2. Com incidência particular para a obra The Uses of Enchantment – The Meaning and
Importance of Fairy Tales de Bruno Bettelheim.
3. Como exemplo, podemos citar alguns versos de uma das cantigas de amigo do poeta
galego Pero Meogo (séc. 13): «… Contente com vê-las,/ lavei as madeixas,/ meu amigo.//
Contente com vê-los,/ lavei os cabelos,/ meu amigo.// Logo que os lavei,/ com ouro os atei,/
meu amigo.//… Com ouro os atei,/ e vos esperei,/ meu amigo.» (Natália Correia, 1978: 161-
163). (Os exemplos são inúmeros, mas não cabem no âmbito desta pequena comunicação.)
4. Este tema da avó que, triste, dá a conhecer a realidade à jovem neta, volta a repetir-se
na obra de Fernanda de Castro, em Maria da Lua (1945): «-Que tenho eu avó? Porque tenho
vontade de chorar? -Porque estás muito crescida, Maria da Lua… quase uma senhora… -E é
triste ser crescida, avó? –Muito triste, minha filha… O dragão acorda e nunca mais adormece…
-O dragão, avó? que dragão? –Avida, Maria da Lua…» (ap. T. Joaquim, 1997: 361).

Fátima Fernandes
Universidade de Varsóvia

Fernanda de Castro Fernanda de CastroFernanda de Castro


Casa Fernanda Palavra

Imagino-a: uma grande casa de paredes sólidas e alvadias, de janelas e portas abertas sobre uma bela manhã de Primavera, cheia de flores, debruçada sobre um bairro antigo de Lisboa, sobre o rio visto da outra banda, ou sobre as extremas colinas de Marvão. Uma casa cheia de mistério, de presenças que atravessam as estâncias, de pequenos objectos sentimentais.

Tal deve-se ao facto de ter Fernanda de Castro habitado sempre casas excepcionais. Recordo, de relance, a casa pombalina de Cacilhas, a casa cor-de-rosa de Maria da Lua, tutelada pelas presenças de uma Avó velhinha e doce e de uma Tia severa de outros tempos. Recordo a casa da juventude, a Santa Quitéria, onde o acaso colocou os Leitão de Barros no quintal confinante e reuniu, no entre-cá-e-lá desse muro, a geração Segundo Modernismo português. E, enfim, a casa que mais completamente exprimiu a alma da Poetisa e da Mulher, onde viveu toda a vida desde o casamento: a casa dos Caetanos.

Este prédio histórico, em cuja fachada se acumularam em épocas sucessivas placas evocativas de celebridades que o habitaram, é certamente lugar de uma energia especialíssima, t“po loj fainw, loco de revelações. Tecto, pois, de pessoas luminosas como o foi Fernanda de Castro: ser iluminado e iluminante.

Emoção de entrar na sua grande casa da Poesia, habitar o tempo das palavras, o espaço das suas palavras, para, liberto de espaço e tempo, voar com as palavras...

grego:t“po loj fainw, significa revelação do sagrado

 Francisco de Almeida Dias
Università degli Studi di Roma Tre

 

FERNANDA DE CASTRO, E O SEU JARDIM
Lisboa, 8/12/1900 – Lisboa, 19/12/1994)


Lembramos, este mês, os 10 anos do Jardim Fernanda de Castro, na encosta do Restelo em Lisboa, aprovado no dia 19 de Julho de 1999.

Em termos históricos, o processo teve início quando a Comissão Municipal de Toponímia aprovou uma rua com o nome de Fernanda de Castro. No entanto, o jornalista Appio Sottomayor, do jornal A Capital (membro da referida Comissão), sugeriu que lhe fosse designado, em vez disso, um jardim com o seu nome, em homenagem às flores que tanto amou e à Lisboa que tão bem cantou. E sublinhou, na altura: «… é urgente criar ou baptizar um espaço verde onde as crianças brinquem e tenham lugar privilegiado. Lisboa tem de perpetuar o nome da musa dos seus jardins. Nem que tenha de se plantar um para o efeito!» E assim nasceu o Jardim Fernanda de Castro.

NOTA: Fernanda de Castro fundou e presidiu durante 40 anos, à Associação Nacional dos Parques Infantis.

Fundação António Quadros
In newsletter 01

 

«Elegia à Fernanda de Castro» 

Fiquei feliz por saber da existência de uma página na Net sobre Fernanda de Castro. Ela mais que merece.
Fui, provavelmente, o primeiro e o único africano a privar-se intensamente com Fernanda de Castro pouco tempo antes da sua morte, numa altura em que ainda concluía a licenciatura na Faculdade de Letras de Lisboa.

Vale talvez a pena que aqui recorde as circunstâncias em que travei conhecimento com Fernanda de Castro: corria o ano de 1985 e já tinha eu decidido encetar um profundo estudo sobre a imagem do Negro na literatura colonial portuguesa, durante o Estado Novo. Leituras aqui, contactos acolá, facilitadas ou recomendadas pelo meu sempre mestre, Prof. João Medina, permitiram-me que tivesse aguçado a curiosidade de conhecer alguns literatos coloniais ainda vivos na altura.

Assim, esses contactos proporcionavam-se-me, cada vez mais, a oportunidades de privar com literatos coloniais vivos. Da longa lista, efectivamente, figurava a incontornável Fernanda de Castro. Conheci-a, efectivamente, em Lisboa, pela mão de uma das suas melhores amigas, no caso, a portentosa escritora Maria Graça Freire (irmã de Natércia Freire), tal como, de resto, o era também a Fernanda de Castro.

Quando se vislumbrou pois a possibilidade de a entrevistar, já sabia, de antemão, que iria estar na presença de uma nonagenária, acamada, mas uma mulher de fibra e com uma extraordinária força interior. Aprazado o dia e a hora, não sem antes me munir de um sugestivo arranjo floral para a oferecer, lá me pus a caminho das imediações do Bairro Alto, onde então vivia Fernanda de Castro. A ansiedade e as expectativas eram mais que muitas, pelo que já no elevador da Glória, imaginava de mil maneiras a figura da escritora, pois as fotografias que dela vira, até então, datavam já de umas valentes décadas.

Quando cheguei a casa de Fernanda de Castro e conduzido depois à sua presença, tornou-se visível para todos os presentes (cerca de quatro ou cinco pessoas) a minha emoção, mas igualmente a alegria contagiante de Fernanda de Castro que, ao ver-me, cumprimentou-me efusivamente, remexendo-se, inclusivamente, da cama, como se dela quisesse erguer-se para me abraçar.
Ainda me lembro das palavras que seguiram à minha calorosa recepção:

- Sabe, Leopoldo, é com enorme prazer que lhe recebo em minha casa. É pena ter de o fazer acamada, mas espero que, por tanto, não se estranhe e que possamos conversar, pelo menos o suficiente. Sabe, estou ultimamente a escrever um último livro que talvez se intitule “Memórias In Extremis”, aliás, é isso que estava justamente a fazer, antes da sua chegada, ditando as coisas a esta minha sobrinha que vai escrevendo o que a digo, pois já não dá para ser eu própria a escrever.

- Mas quero que aqui se sinta à-vontade e que saiba que a Guiné, pelas recordações que possuo das suas gentes, pelo cheiro da terra e por muito mais, está no meu coração, e que a levarei para a minha última morada, pois lá repousa eternamente a minha mãe, que foi lá enterrada.

Enquanto devolvia com palavras simpáticas a calorosa e afectuosa recepção de que fui alvo, Fernanda de Castro prosseguia:

- Sabe, Leopoldo, a sua presença traz-me, profusamente, recordações da minha rica adolescência, vivida em parte na Guiné, em Bolama, onde meu pai chegou de servir como capitão dos portos. E digo-lho, convictamente, que éramos mais fortes. A nossa mística, sabe, ainda há-de consumar-se, pois acredito piamente no mito de um Portugal imperial e no Quinto Império, algo que seja capaz de nos irmanar na fé, na igualdade, na justiça e na crença de um mundo melhor, sem que para isso tenhamos que olhar para a cor da pele ou para a condição social da pessoa humana. É isso, aliás, que procurei plasmar nos três ou quatro livros que escrevi sobre a Guiné e sobre a África.

- O Leopoldo devia ler o meu grande poema intitulado “África Raiz” de que, aliás, lhe vou oferecer um exemplar autografado. Em boa verdade, Leopoldo, África marcou-me profundamente. Leia “O Veneno do Sol” e o “Aventuras de Mariazinha em África” ou o “Mariazinha em África”, livros meus que foram até hoje dos mais vendidos em Portugal, com tantas edições – talvez duas dezenas ou mais – já não consigo lembrar ao certo quantas.

- Sabe, Leopoldo, os dois últimos livros, “Aventuras de Mariazinha em África” e o “Mariazinha em África” são autobiográficos. Procurei neles narrar a inolvidável experiência que a África, a minha África mística, provocou em Mariazinha, de resto, personagem central a quem literariamente emprestei a minha experiência.

Aliás, outros personagens, como o Vicente, também eram reais. O Vicente acabou por vir para Portugal connosco e aqui veio até veio a ser campeão de atletismo e acabou mesmo por se casar com uma portuguesa, de quem teve dois filhos.

Porém, nas semanas e meses que se seguiram, foram de intermitentes mas intensos contactos entre mim e a Fernanda de Castro, resultando tudo numa grande entrevista que a própria fez questão de caucionar e que, pela sua valia e importância, sobretudo pela sua profundidade, darei um dia desses a conhecer ao grande público.

Efectivamente, sobre Fernanda de Castro e a sua produção literária, sobretudo àquela que mais directamente diz respeito à Guiné, muto escrevi, quer em revistas científicas, quer em jornais, aqui e acolá. Fi-lo pela necessidade de dar a conhecer esta grandiloquente escritora que, um dia ou anos, que sejam, tal como Castro Soromenho o fez em relação a Angola, logrou narrar a Guiné com uma extraordinária mundividência e lucidez literárias que, não obstante ter feito recurso a um discurso oficial ou oficioso e ainda ter abordado uma realidade social matizada pela colonização – curiosamente –, os discursos ontológicos, neles subjacentes, não raras vezes, raiam os limites de um humanismo universal e mesmo universalista.

Talvez não fosse despiciendo, antes pelo contrário, a reedição na/para a Guiné de algumas obras de escritora sobre a Guiné, as quais podiam ser lançadas, quiçá, em Bolama, de resto, ilha onde repousa os restos mortais da mãe escritora e, igualmente, torrão que acolheu Fernanda de Castro e que, afinal, inspirou a componente africana da sua abundante e profícua produção literária.

Seria, sem dúvida - afora as politiquices – uma forma sublime e altruísta de, merecidamente, homenagear alguém que, no Mundo lusófono, quer se queira quer não, escreveu das mais belas páginas literárias sobre a Guiné e sobre a África.


Leopoldo Amado
Agosto de 2010



Zé Carlos Ary dos Santos : um outro olhar

“Não, minha mãe. Não era ali que estava.
Talvez noutra gaveta. Noutro quarto.(…)”
Ainda é difícil escrever-se com total objectividade sobre José Carlos Ary dos Santos. Por várias razões. Uma delas tem a ver com o facto de ser uma figura pública que há pouco tempo desapareceu de entre nós, estando ainda vivos, felizmente, muitos dos seus companheiros e amigos. Morreu precocemente, quando contava 47 anos de idade (se fosse vivo teria hoje 72 anos, feitos em Dezembro, pois nasceu em 7 de Dezembro de 1936). Assim, a perspectiva está ainda muito desfocada pelo pouco tempo que nos separa desse 18 de Janeiro de 1984 na Rua da Saudade, em Lisboa. Outra, tem a ver com o forte ruído ideológico (para o qual concorreram diversos factores) sobre o José Carlos, tanto sobre o que foi a sua vida, vista de diante para trás, como sobre o que é a sua memória. Finalmente, há a dificuldade nascida dos anticorpos que, um pouco por todo o lado, geraram o seu comportamento e a sua conduta. Algumas pessoas, das contactadas para sobre ele falarem (das muitas que com ele conviveram e para lá das do costume que sobre ele discorrem…), mostram-se reservadas ou, pura e simplesmente, não querem que seja tornado público o seu testemunho, numa atitude em que essa reserva tem, precisamente, que ver com um determinado parti pris em relação ao homem e ao poeta ou com uma má experiência no seu convívio. Não era uma pessoa fácil, em muitos aspectos.

Para o definir com três palavras e de acordo com os testemunhos ouvidos, foi um homem inteligente, vaidoso (muito vaidoso) e só (muitíssimo só). A inteligência acompanhou-o a vida toda; a vaidade, prejudicou-o a vida toda e a solidão acabou com ele. A inteligência nunca lhe deixou ver disfarçado o vazio, o fosso que se foi cavando à sua volta ao longo dos anos e que o foi afastando de todos os seus afectos. Pelo contrário, a inteligência dava-lhe dia a dia um certíssimo quinhão de sofrimento pela consciência de que esse vazio existia e de que cada vez aumentava mais com o passar dos anos. A vaidade, amarfanhadíssima pelo silêncio que sobre si faziam quase todos os poetas do stablishment e seus contemporâneos, foi corroendo a sua capacidade de resistir à degradação dos valores em que se educara, opostos ao culto da sua imagem. Como fuga e compensação, aceitava o populismo que à sua volta crescia, passou a ceder à glória fácil de ter o aplauso dos que diante de si se babavam sem o compreender. Em nome da vaidade cometeu actos de irreverência que muitos confundiram (ou justificaram) com génio (que o tinha também). A solidão, nascida de um episódio familiar abrupto que o tomou de choque e o marcou para toda a vida, veio estender um céu de chumbo cujo peso imenso, em muitos momentos, lhe deu a insuportabilidade de tudo não crer e nada querer.

Um Zé Carlos incongruente com tudo e todos foi-se formando ano após ano. De tal modo que, hoje, há os que o idolatram e vangloriam sem o conhecer; os que o conheceram e sobre ele tudo dizem sem dizer nada e os que sobre ele mais não fazem do que inventar, intangível que lhes é como pessoa e incompreensível como artista, autor de letras de canções, poeta.

Há, assim, um outro Zé Carlos para além daquele que nos tem sido dado a conhecer. É o mesmo, claro. Está nos mesmíssimos versos, nas mesmíssimas atitudes e brincadeiras, nos mesmíssimos sítios com a força, a veemência, o génio, os palavrões, a impertinência, a truculência desconcertante e o humor sulfúrico. Mas é outro também, ao mesmo tempo, talvez visto ao espelho. Basta saber vê-lo. Sempre esteve e tem estado por aí. Talvez não tenhamos, mas é, reparado que sempre tem estado por aí. 

O primeiro livro

Quase todas as notas biográficas, publicadas em jornais, revistas e livros ou disponíveis na net, referem as datas do nascimento (por sinal enganando-se sucessivamente: nasceu em 1936 e não em 1937!) e morte, as origens “aristocrático-burguesas”, a “saída de casa”, o “génio literário-artístico”, o êxito profissional, o sucesso mediático das suas letras para cantigas, o espírito truculento e inconformista, o passado antifascista, a homossexualidade, a militância comunista e o seu primeiro livro, Liturgia do Sangue.

Contudo, acontece que o seu primeiro livro não foi Liturgia do Sangue mas, sim, Asas, que foi publicado muito antes da Liturgia do Sangue[ii]; a sua militância comunista, muitíssimo repetida por muitos biógrafos (e protagonizada pelo próprio em numerosos comícios e sessões do PCP), é uma colaboração com o PCP mas sobre o qual há dúvidas de que tenha, algum dia, sido militante filiado no partido ou que, pelo menos, o tenha sido ininterruptamente[iii]; a sua “homossexualidade assumida” não era uma bandeira da sua vida mas até, nalgumas ocasiões, desabafada como uma fatalidade infeliz[iv]. Foi abundantemente bandeirada por outros. E terá sido a razão para que, durante um longo período – senão sempre – lhe tenha sido vedada a filiação no PCP[v]. Daí que, com estas contradições entre a verdade oficial e verdade autêntica de si próprio (se é que se pode falar de verdade autêntica de alguém que criou imensos cenários de verdade aparente) se possa inferir que a maioria dos retratos com que é apresentado carecem ainda de muita da mesma verdade.

O Zé Carlos tinha qualidades humanas para lá dos rótulos com que têm sido embrulhados o seu carácter e a sua personalidade. Qualidades onde perpassam sentimentos de solidariedade pelos outros. Sob a superfície, em que o vemos num permanente desfrute, oferecimento e conflito, como era a sua postura perante a sociedade e o mundo, como se estivesse constantemente perante uma plateia e a divertir-se com ela, sob a superfície, diga-se, havia uma serenidade insuspeita para muitos, em que a tal solidão imensa deixava um vazio medonho.
Ele tinha um terrível medo de estar sozinho. Medo que entrava em erupção terminal nos seus momentos de catarsis, normalmente com um derradeiro confidente no fim de noitadas ou de etapas de várias noitadas em que se misturavam o cansaço, o gin e o excesso. Um medo que lhe vinha desde o dia em que sentiu que tinham sido traídas as dedicatórias que tinha escrito no seu primeiro livro, Asas, já que, a partir de então, tentou, para o bem e para o mal, apagar esse livro e o seu significado, como se o criador quisesse fugir à criatura.

A sua vocação poética foi exibida quando era ainda muito novo e há testemunhos de, em S.Martinho do Porto, onde ia para a praia com o grupo familiar, declamar na “Rua dos Cafés”, inflamados versos a uma rapariga, menina-de-família, alvo da sua paixão[vi]. Que não terá sido a única. Foi nesta esteira que foram escritos os poemas de Asas e, provavelmente, muitos mais que terão ficado por publicar. Os versos deste primeiro livro tiveram e têm um mérito reconhecido e auguraram tudo de bom para si, com um acolhimento favorável nos círculos das suas amizades e fora deles.

Asas foi publicado em 1952[vii]. ZCAS tinha apenas 15 anos de idade. Dedicou o livro “À saudade de minha Mãe, os meus primeiros versos, que nasceram da infinita dor de a ter perdido. À presença de meu Pai, o meu primeiro livro pelo tanto que lhe quero e que lhe devo”.
Desde o primeiro verso do primeiro soneto “Dispo a tristeza inútil que me invade.” – que  é uma afirmação de um acto – que está ali o José Carlos de sempre. Não está parado (ele dificilmente conseguia estar parado), está a agir, a despir-se. De quê? Da tristeza – a tristeza que foi uma das suas fobias – e não de uma tristeza qualquer, não daquela tristeza poética, inspiradora da melancolia dos poetas, não! Da “tristeza inútil”. Uma tristeza que não servia para nada, a não ser para o pôr triste. E esse soneto termina com uma outra afirmação que profetiza o seu modo de encarar toda a vida: “Que todo o mundo é meu e eu vou partir à conquista dos reinos da poesia!”[viii]. É um imperativo, um projecto de futuro.

Ler Asas é ler o prefácio da vida de José Carlos, como se o resto da vida não fosse mais do que capítulos no seguimento desse prefácio, o executar, secreta empreitada!, de um caderno de encargos.

Está ali tudo sobre si, em Asas, como num caleidoscópio que lhe antecipasse a vida e a obra: “Homens famintos, ébrios de vingança; Crianças que se matam e se odeiam; A morte a amortalhar a esperança; Os pobres, os mendigos e os ladrões”[ix]. “Caminho? Eu sei lá qual é o Caminho! Talvez por uma estrada de impossíveis para o país longínquo dos meus sonhos!”[x]. O seu tom excessivo e rasgado, transgressor, a roçar o libertário, está já na inspiração dum poema intitulado, algo profeticamente, Libertação: “Rasgou minha alma um grito agudo/ De libertação./ E eu desdobrei as asas nos espaços,/ Sem peias, sem pudor e sem razão,/ Abrindo os braços,/ Como um irmão,/ Ao mar e ao céu!”.

Em Incógnita, há um expressar da consciência da dualidade dentro de si, talvez involuntário, talvez demasiado explícito para ter sido reflectido mas, por isso mesmo, autêntico e franco:  “Mais para além de mim/ Havia outro./ Um outro que não via,/ Nem falava.”...  Este outro acompanhou-o toda a vida, mudo mas nem por isso menos presente.

A figura da Mãe, a saudade da Mãe, que motiva a dedicatória desta primeira obra do autor, vai ser alvo de recorrentes versos que vão sendo escritos ao longo da vida. É como se, de vez em quando (para não dizer sempre) a presença (ou omnipresença) da Mãe fosse invocada em momentos de extrema necessidade de companhia e carência de ternura. De tal modo que, no derradeiro momento da vida, 32 anos depois de Asas, na solidão da casa, já no seu leito de morte, o seu pensamento vai para a Mãe uma vez mais e compõe um último soneto, talvez dos mais sentidos e belos que escreveu, que é, simultaneamente, o fechar de um ciclo, o retorno ao regaço, um desejo (desabafo, talvez) uterino de descanso: “Talvez que a tua voz que ainda me fala.../ ...o meu berço enfeitado a buganvília.../ Tenho tantas saudades, minha mãe!”[xi].  

Depois de Asas, o Zé Carlos sai de casa. E sai de casa, ao que tudo e todos indicam, em ruptura com o pai. Uma ruptura que terá sido dilacerante e dramática[xii]. A saída é, até, mais do que isso. É uma fuga, um pânico sem retorno. Sem transigências nem condições. Deu-se em 1953, tinha 16 anos. Embora isso não tivesse representado um voltar de costas a toda a família. Continuou a dar-se, nomeadamente, com as suas irmãs. Mudou-se para um quarto alugado na Rua do Alecrim, onde permaneceria durante anos, bem dentro do raio de acção protector da sua avó paterna, Maria Guilhermina de Pina Manique Pereira, que vivia na Travessa da Espera, a escassos trezentos metros, e a cujos jantares de clã comparecia.

Em 1954 alguns dos seus poemas já publicados foram incluídos na Antologia do Prémio Almeida Garrett. Este reconhecimento público viria a ser importante por um pormenor que se prende com a sua ruptura familiar e com um aspecto patente da sua personalidade: é que nada melhor para o seu amor-próprio, num momento de grande carência, do que sentir um apoio como foi esse – apesar do desdém com que muito mais tarde ignorou toda esta fase ou o “revisionismo” que sobre ela fez cair…

A mãezinha, a Tia Fernanda ou a génese do Tempo da Lenda das Amendoeiras

Um dia, em 1963, o Alexandre Ribeirinho, director do Teatro Universitário, apresentou José Carlos a Fernanda de Castro. A empatia entre os dois foi imediata e desde logo surgiu o tratamento de mãezinha e de Tia Fernanda que passou a adoptar para com a grande senhora: “24 horas depois de me ter conhecido queria que eu fosse a mãe que ele já não tinha”[xiii]. Esse primeiro encontro deu-se no Algarve, em Alporchinhos, onde a escritora e autora tinha casa. José Carlos declamou o seu poema dramático Azul Existe, que hoje está incrível e misteriosamente eclipsado. Mesmo o ZCAS poucas vezes o mencionava e não o incluiu, nem excertos, em qualquer uma das suas colectâneas ou antologias. Também não consta da sua obra postumamente publicada. Mas então, nesse encontro com Fernanda de Castro, foi o clic definitivo para um período fecundo. Uma roda de novas relações, de que fazia parte Natália Correia e muitos outros, abriu-lhe horizontes e possibilidades que vieram a ser mais alargadas ainda com a frequência dos serões em casa de Fernanda de Castro, na Calçada dos Caetanos, ao Bairro Alto.

José Carlos e o seu irmão Diogo fizeram parte da trupe e da plêiade que, sob a direcção de Fernanda de Castro, com a coordenação e montagem de Alexandre Ribeirinho, José Francisco Azevedo, Mário Cardoso Pereira, Jorge Cenáculo e Edith Arvelos, incluía Manuela Machado, Catarina Avelar, Norberto Barroca e Maria Germana Tânger, tendo-se constituído como Teatro de Câmara António Ferro!

Fernanda de Castro é reveladora, ao referir-se a um ensaio para um dos serões seguintes, em que Zé Carlos tinha de declamar uns versos dela: “Desfolha-se em badaladas/ o velho sino de bronze./ As senhoras abastadas/ vão sempre á missa das onze/ (D.Aurora de mantilha,/ D.Francisca de véu,/ D.Gertrudes e a filha,/ de luvas e de chapéu.)”(…). Ao vê-lo, Fernanda de Castro desatou a rir e a cena resultou indelével na sua memória: “Jamais poderei esquecer a cara, os gestos, os ademanes, os olhares marotos e o riso contagioso do José Carlos ao falar da D.Aurora de mantilha, da D.Francisca de véu, da D.Gertrudes e a filha de luvas e de chapéu. Contado isto não tem talvez graça nenhuma, mas quem conheceu o Zé Carlos, tinha então 24 anos[xiv], compreende perfeitamente o que eu quero dizer e o efeito hilariante da sua recitação”[xv].

O próximo espectáculo deste Teatro de Câmara António Ferro já não pôde ser na Calçada dos Caetanos por falta de espaço, embora aí tenham decorrido numerosas sessões de ensaio, a que assistia um público variado e interessado de intelectuais e artistas. Foi realizado no Tivoli.

É importante notar que este, como o anterior e os seguintes, sendo espectáculos de poesia em que o mote era dado por Fernanda de Castro, muito terão influído em muitos dos vincos da obra, tanto no campo puramente poético como no campo das letras para canções, de José Carlos. Repare-se neste poema: “Se os poetas dessem as mãos/ e fechassem o Mundo/ no grande abraço da Poesia,/ cairiam as grades das prisões/ que nos tolhem os passos,/ os arames farpados/ que nos rasgam os sonhos,/ os muros de silêncio,/ as muralhas da cólera e do ódio,/ as barreiras do medo,/ e o dia, como um pássaro liberto,/ desdobraria enfim as asas/ sobre a noite dos Homens./ Se os Poetas dessem as mãos/ e fechassem o Mundo/ no grande abraço da Poesia.”. Trata-se de um poema de… Fernanda de Castro![xvi]

Difícil será não reconhecer, nos versos de José Carlos Ary dos Santos, muitas ressonâncias recorrentes destes mesmos versos. Neste Teatro de Câmara, no seu segundo espectáculo, o poema dramático Azul Existe foi encenado por Pedro d’Orey e foram seus intérpretes Heloísa Cid, Águeda Sena, Rogério Ferreira, Vasco Wallenkampf, Alexandre Ribeirinho e o próprio José Carlos Ary dos Santos, com a Edith Arvelos a ter a seu cargo os efeitos musicais.[xvii]

Houve ainda mais dois espectáculos deste Teatro de Câmara António Ferro, em Junho de 1964, e da trupe chegou a fazer parte Eládio Clímaco.
Seguiu-se o I Festival do Algarve, Verão de 1964. Foi um momento a desabrochar em esplendor para o José Carlos. O contacto com o exotismo, Larbi Jacoubi e os príncipes Ouazani, a comunhão vivida com os participantes e actores, a proximidade ganha com Amália Rodrigues. Sobretudo, a consagração do seu poema Tempo da Lenda das Amendoeiras, apresentado pela primeira vez no Castelo de Silves em 12 de Agosto, dedicado a Fernanda de Castro, que iria ainda editar nesse mesmo ano como edição de autor, impresso em Lisboa, na Tipografia Americana.

No ano seguinte, acontece o II Festival do Algarve. Fados, folclore, poesia popular e erudita. Mais uma vez o Tempo da Lenda das Amendoeiras, dedicado a Fernanda de Castro. Este poema transforma-se num trampolim oportuno, até então a obra de maior fôlego de José Carlos Ary dos Santos.

A partir daí e até ao fim da vida manteve-se a amizade e, mesmo, cumplicidade, entre os dois escritores.
O suicídio do Diogo, seu irmão, em 11 de Março de 1965, tinha 21 anos, foi um momento de débacle.[xviii] ZCAS tinha-lhe dedicado “A Liturgia do Sangue”. Acompanhavam-se em trabalho e em noitadas, Diogo tinha participado também no Teatro de Câmara António Ferro. Irmão solidário e irmão-cúmplice, este desgosto ficar-lhe-ia indelével. Foi uma sombra, feita de profundo remorso e auto culpabilização, que nunca mais havia de o abandonar na vida. E que, sempre que pegava num gin, de algum modo evocava. Sigamos Fernanda de Castro: “O José Carlos Ary dos Santos era um amigo tão íntimo da casa que, durante certos períodos, como por exemplo o do Teatro de Câmara António Ferro, que ele viu nascer na década de 60, e mais tarde nos dois períodos que antecederam os dois Festivais do Algarve, foi um dos meus mais eficientes colaboradores, chegando a passar alguns meses na minha casa de Alporchinhos com o meu irmão Francisco, a Inês Guerreiro e a Edith Arvelos, a equipa que tão entusiasticamente me ajudou a levar a cabo estes empreendimentos.”

“Foi um colaborador precioso, honestíssimo trabalhador e ainda por cima alegre, entusiasta e cheio de força criadora. Era um bonito rapaz, afectuoso, que me dizia muitas vezes:

- Depois da morte do Diogo, a Tia Fernanda é a pessoa de quem eu mais gosto no mundo.”
“Nessa altura ainda o José Carlos não bebia, ou, pelo menos, bebia normalmente, como qualquer rapaz. Creio que foi o enorme desgosto que teve com a morte do irmão que o levou ao desespero, começando assim, sem talvez se aperceber, a vida dolorosa, triste e, sobretudo, estúpida que pouco a pouco inutilizou, deturpou ou corrompeu o que nele havia de melhor e era muito, muitíssimo”[xix].

Para ilustrar este “nele havia de melhor”, Fernanda de Castro cita dois exemplos reveladores. O de uma velhinha sem abrigo a quem ele encontrou e a quem durante anos vestiu e pagou um quarto e comida e o de que, todos os anos, no aniversário de uma sua senhoria de quarto, a vestia como uma dama, levava a jantar e ao teatro. Questionado por Fernanda sobre esta sua atitude, respondeu: “Porque cada vez que eu tinha gripe ou anginas ela punha-me papas de linhaça e levava-me chá de limão à cama.”
- Só por isso? – perguntou Fernanda.
- Só?! Se soubesse como é importante, quando se vive sozinho, um chazinho de limão, uma conversinha amiga, um cobertor suplementar!...”
“Este era o Zé Carlos verdadeiro, o que me fez perdoar-lhe, durante anos, o gin, as palavras irreverentes, os extremismos, a incoerência de muitas das suas atitudes. Não se passava uma semana sem me convidar para jantar. (…).[xx] 

1969 ou o charco da pedrada

Para muitos e para o próprio, 1969 foi um ano fulcral. Não o foi por acaso, inserido na vida do país e com a efervescência que quase todos os sectores então atravessavam, na aurora da Primavera marcelista. A sua aura de poeta tinha vindo sempre em ascensão e o seu nome era assumido em quase todos os círculos da capital. Mesmo no fim do ano anterior, um serão em casa de Amália Rodrigues tinha-o juntado com Vinicius de Moraes, Natália Correia, David Mourão-Ferreira, Alain Oulman e Hugo Ribeiro, tendo sido feito e editado um disco de vinil com as poesias, fados e guitarradas dessa noitada que ficava como uma antevisão do frenesi de 1969.

Foi o ano da militância política na CDE, Comissão Democrática Eleitoral, e o ano da vitória da Desfolhada no Festival RTP da Canção. Este último facto foi importantíssimo e decisivo. Experimentou uma euforia que lhe demoraria anos a passar, um certo sentir-se ébrio com a projecção e, até, o poder, que, de repente, lhe deu esse triunfo. Parecia que todas as facetas da sua vida lhe estavam a sorrir. Na poesia, na publicidade, na política. A sua criatividade e produção estavam num expoente[xxi]. Mas nem por isso se libertava de uma persistente ingenuidade, duma certa deriva que toda esta euforia lhe veio fazer, ofuscando o sentido de profundidade. Natália Correia notou-o bem e passou a ter para com José Carlos uma pendência de diferença de pontos de vista que duraria toda a vida – mas sem pôr em causa a amizade entre os dois, assanhadíssimos a discutir em numerosas ocasiões!... Para Natália Correia, o poeta estava a sacrificar a poesia, calcada sob o género mais superficial das canções[xxii]. Contudo, se não tivesse sido a projecção que lhe foi dada pela “Desfolhada” e toda a fase vertiginosa que iria viver a par da fama de Simone de Oliveira e do grupo “dos festivais”, dificilmente a sua vida teria sido como foi. Nunca seria como foi.

A revolução ou o fim da qualidade

Com o golpe do 25 de Abril e no período revolucionário que se lhe seguiu, Zé Carlos enveredou decididamente pela militância política e abandonou, ou pelo menos arrefeceu, algumas das suas anteriores amizades. Foi o caso de Fernanda de Castro, com quem, apesar de tudo, haveria de fazer uma reconciliação já na década de 80, e ainda o de Amália Rodrigues, que desabafa: “(...) Dávamo-nos muito bem os dois. De repente, dá-se o 25 de Abril e nunca mais aparece. Telefonou umas três vêzes a perguntar se eu precisava de alguma coisa. Mais nada. Fiquei um bocado zangada com ele. Era um amigo de todas as noites, de uma convivência quotidiana, não tinha nenhuma razão para ter aquela atitude.”[xxiii]

Surpreendentemente ou talvez não, durante o Prec e depois dele manteve a mesma postura elitista do seu modo de vida, sapatos de marca italiana, camisa e fatos de seda, a ponto de um dia ter sido interpelado por um camarada de partido que lhe reprovava o traje e a sua casa burguesa e a quem terá respondido que “o meu comunismo vem-me por via Czarista”![xxiv]

Certa vez, Fernanda de Castro questionou-o sobre a sua razão de ser comunista. A resposta pronta teve como contraponto da escritora que o que ele tinha era um fundo cristão e que aquele “comunismo” já tinha uma idade de dois mil anos e chamava-se cristianismo...

De facto, apesar do show off, da militância e das suas proclamações veementes, José Carlos não esconde, na sua poesia, nas suas letras de canções e nos seus gestos de solidariedade para com o próximo, um sentido espiritual, na concepção, e de amor, na concretização, de que nunca se afastou – ou de que nunca se quis separar.

Num dos últimos sonetos que escreveu, “Poesia-Orgasmo”, há um verso revelador: “que transporte do humano ao infinito”, e também no “Soneto de Inês” há “amor que torna os homens imortais”[xxv]. Ora, o infinito e a imortalidade escapam ao cânone do materialismo dialéctico marxista...

José Carlos Ary dos Santos nasceu em Dezembro e morreu em Janeiro. Foi como se tivesse escolhido um ano velho para aparecer e um ano novo para desaparecer. “Escolhido” está mal dito. Porque o Ary raramente terá escolhido fosse o que fosse de decisivo ao longo da sua vida. Alguma vez os poetas escolhem seja o que for? Não são, antes, eles os escolhidos pela vida, pela sorte, pelas musas, pelo génio, para nos verter em palavras traduzidas o que a nossa vida nos põe à frente e nós, tantas vezes, não vemos?

Uma forma de fim

Não houve inocência na vida do Zé Carlos. Nem houve inocentes na vida do Zé Carlos. Parece-me que esta poderá ser a característica mais marcante que fica deste pequeno esboço sobre o poeta e o homem, uma primeira aproximação sobre poder haver “um outro olhar sobre a vida de José Carlos Ary dos Santos”. Como se pudesse ter havido um fenómeno de contágio de uma não-inocência. Ele, aliás, convidou a isso com o célebre “falem de mim, bem ou mal, mas falem!” repetidas vezes proferido. Não admitia uma atitude neutra, uma atitude tolerante. Este estado de espírito fê-lo antecipar a ideia e a encenação da sua morte. Morte, aqui, em sentido literal, com toda a coreografia imaginada e desejada como algo de fantástico e teatral. Chegou a confidenciar a ideia de que o seu enterro fosse marcante pelo espectacular. Mas com o fim da sua vida, que não chegou serenamente com uma velhice madura mas de modo súbito com a mesma violência com que ele passou pela vida – a começar pelas violências sobre si próprio –, algumas atitudes e frases, alguns versos e gestos de quem está para abandonar um palco, fazem pensar ou, pelo menos, deixam espaço para isso, que pela Rua da Saudade passava uma aragem de verdadeira saudade da inocência perdida.

Quando?
É uma pena não ter ficado terminada, ou em vias disso, a autobiografia romanceada em que trabalhava, “Da Estrada da Luz à Rua da Saudade”. A morte que se lhe fizera anunciar como uma presença solitária num período em que alguns dos seus mais chegados o abandonavam, não lhe deu tempo a concluir os projectos que já sabia serem os últimos. Contudo, ironia de poeta, havia de morrer precisamente nessa Rua da Saudade a viver da saudade. Forma de morrer tão portuguesa! E não de uma saudade qualquer. Nem da saudade da cidade que amava, nem saudade do país que tratava com uma certa distância: “Será possível que depois de Abril/ ainda adormeçamos acordados/ neste país-raiz de sofrimento?”[xxvi]. Não.
A sua vida acaba depois de voltar à infância, com muitas saudades:
"Tenho tantas saudades, minha mãe!" [xxvii].
Pois tinha.


Notas

José Carlos Ary dos Santos, Infância,VIII sonetos, in Obra Poética. Edições Avante!, 1994
[ii] A fotobiografia, que sobre José Carlos Ary dos Santos foi escrita e elaborada por Alberto Benfeita –Alberto  Benfeita, Ary dos Santos, o Homem, o Poeta, o Publicitário, Fotobiografia. Editorial Caminho, Lisboa, 2003. – vai  um pouco mais longe e é um livro bem estruturado e com episódios, fotos e documentos importantes e reveladores. Faz referência ao Asas, embora omita completamente alguns  períodos e factos importantes da vida de José Carlos Ary dos Santos. Citando o autor a partir de uma entrevista, nela é referida a desvalorização que ZCAS fazia, a posteriori, deste seu primeiro livro e da poesia nele versada. Seria por causa da dedicatória ao pai que o abria? Seria o querer apagar, ao seu jeito iconoclasta, toda e qualquer imagem do pai da sua memória?
[iii] Provavelmente, o Zé Carlos terá sido filiado episodicamente no PCP em 1969 e posteriormente expulso. Eduardo Pitta, Blog da Literatura, na entrada “Ary dos Santos”, publicada também em livro, Intriga de Família, Edições Quasi, Lisboa, 2005, afirma mesmo que ZCAS nunca foi militante filiado do PCP por oposição da direcção deste partido, avesso a homossexuais, e apenas terá sido inscrito no MDP-CDE. Durante um determinado período, soube-se no inner circle do poeta que não estava inscrito no partido. A sua colaboração era equivalente à de um compagnon de route e foi mais a seguir ao 25 de Abril que a sua colagem ao PCP foi pública e notória. Nas pessoas ficou a ideia de declarações públicas do desejo do poeta, feitas pelo próprio “de ser comunista” e da vontade de “ser do partido comunista”, sendo que nenhuma das quais atesta a sua efectiva filiação. É evidente que agora, a posteriori, ainda por cima tendo sido herdeiro de ZCAS, o PCP terá todas as razões para afirmar algo diferente.
[iv] “(...)A única coisa que me falta é um filho, mas tal como sou, acho que não teria sido um pai suficientemente atencioso e não poderia dedicar ao meu filho toda a atenção necessária”, Jorge Figueiredo , “Ary dos Santos – Assumir a solidão acompanhado”, Revista Gente, 11-1-1984, citada por Alberto Benfeita in obra citada, pág. 115.
v] Segundo Zita Seabra, in Foi Assim, Editora Aletheia, Lisboa, 2007, pág. 35, terá sido com o pretexto da homossexualidade que Júlio Fogaça, “principal teórico e dirigente do Partido” foi suspenso e expulso do PCP. Não cremos que tenha sido aberta uma excepção para ZCAS, a menos que tenha havido um especial acordo para o facto e mesmo este só tardiamente, após o 25 de Abril, dado que o poeta veio a fazer testamento da quase totalidade dos seus bens ao partido. Uma outra hipótese é a de ZCAS ter sido encarado como um dos “desvios de direita do PCP”, dados os seus antecedentes familiares e a sua postura social.
[vi] Chamava-se Lisa.
[vii] O livro foi impresso “nas oficinas da Sociedade Industrial Castor, Lda.” com um prefácio de Ramiro Guedes de Campos. in José Carlos Ary dos Santos, Obra Poética, Edições Avante!, 1994, sendo que nesta edição as poesias de Asas estão relegadas para o fim, fora da ordem cronológica, e escritas num tipo mais pequeno de letra!...
[viii] Conquista, Asas, in Obra Poética.
[ix] Poema sem Nome, Asas, in Obra Poética.
[x] Escuridão, Asas, in Obra Poética.
[xi] Infância, VIII sonetos, in Obra Poética. Segundo a nota de Francisco Melo da página 392 desta edição, citando Manuel Gusmão, este soneto poderá ter sido escrito precisamente no dia da morte de Zé Carlos.
[xii] “Que a terra lhe seja pesada./ Que lhe apodreça o corpo e os olhos fiquem vivos, ...”, In Memoriam, A Liturgia do Sangue, in Obra Poética.
[xiii] Fernanda de Castro, in Ao Fim da Memória, II Volume, pág. 184, Ed. Verbo, Lisboa, Abril de 1988.
[xiv] Na verdade tinha 27 anos dado que este episódio se passou em 1963 mas o José Carlos foi quase sempre muito ilusivo quanto à sua idade…
[xv] Fernanda de Castro, obra citada, págs. 209 e 210.
[xvi] Fernanda de Castro, obra citada, pág. 211.[xvii] Fernanda de Castro, obra citada, pág. 212.
[xviii] Ocorrida em casa de família na Travessa da Espera, 8, 3ºandar, em Lisboa.
[xix] Fernanda de Castro, obra citada, págs. 310 e 311.
[xx] Ibidem, pág. 312.
[xxi] Foi nesta época que terá aparecido na televisão a célebre frase de segundo sentido “Pescadinhas de todos os mares, uni-vos!”, um paralelismo irónico com o lema parafraseado de Marx, “Proletários de todos os países, uni-vos!”. Segundo Zita Seabra, in Foi Assim, Editora Aletheia, Lisboa, 2007, pág. 22. Contudo, esta versão inicial de Zita Seabra terá sido posteriormente e pela própria tornada mais exacta, tal como me foi transmitido pela minha amiga Drª. Isabel Lopes: «E, já agora, a tal frase célebre, a Zita Seabra cita-a mal, já o reconheceu numa entrevista; era assim: «Peixes de todos os mares, congelai-vos»; inspirada em «proletários de todos os países, uni-vos», e foi utilizada numa campanha para divulgar as vantagens do peixe congelado, indústria que as frotas pesqueiras do Henrique Tenreiro começavam a explorar, e a graça da história era essa! ».
[xxii] Natália Correia tinha incluído poemas de José Carlos na sua Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, editada no Rio de Janeiro em 1965. Defendeu esta inclusão em numerosas ocasiões e foruns. Sentiu-se algo traída quando posteriormente assistiu à cedência do escritor perante a facilidade comercial da poesia das letras para canções e mesmo de alguma “poesia militante” que considerou menor e algo indigna do vate. Ficaram célebres as discussões entre os dois, nomeadamente as provocadas pelo José Carlos, que não perdia a oportunidade de uma provocação e de um protagonismo do género. Tal como sucedeu no Casino de Afife, num recital, e em muitos outros momentos. Natália Correia havia de dizer um dia “(...).Confesso que fui excessivamente dura com ele quando o vi desviar-se do caminho que então considerei a via nobre da sua poesia e que continuo a assinalar no seu livro Adereços, Endereços, para enveredar por aquilo que na altura lhe verberei como publicismo poético”.(...), in Natália Correia, “Ary: um poeta da comoção até ao grito”, Jornal de Letras, 24-1-1984.
[xxiii] Vítor Pavão dos Santos, Amália. Uma Biografia. Lisboa, contexto, 1987.
[xxiv] Este episódio é referido com o mesmo sentido mas contado de maneira um pouco diferente por Benfeita, obra citada, pág. 114.
[xxv] Vide VIII sonetos, in Obra Poética, já citada.
[xxvi] Insónia, in VIII sonetos, in Obra Poética, já citada.
[xxvii] José Carlos Ary dos Santos, Infância,VIII sonetos, in Obra Poética. Edições Avante!, 1994
Manuel Cardoso
2009

Fernanda de Castro
É mês de Natal

É mês de Dezembro e em Dezembro é difícil não me lembrar dos seus olhos. Eram olhos de dia frio, céu azul. E nós, os seus cobertores, deitados nas suas pernas, a aquecer a nossa e a sua alma.
Pedi para ficar com o cofre, quando morreu. É um cofre grande e pesado com uma chave, onde guardava “dinheiros”. Às vezes, havia lá dentro restos de tecidos antigos misturados com notas. O cheiro ainda é o mesmo e é onde hoje guardo os segredos e os escudos que me restam.
Não compreendi a poesia enquanto Fernanda de Castro esteve viva. Não tinha idade, maturidade, não era o tempo.
Tive essa pena.
Deixei-me só ficar por ali, naquele quarto onde estão condensadas todas as recordações que tenho daquela casa, daquela pessoa, avó, poetisa, amiga, com quem vivi.
E de lá, retirei tudo o que poderia vir a usar um dia. Pouco tempo depois finalmente percebi. Lembro-me de não conseguir respirar. Já não ia a tempo.
Lembro-me de ter medo que aqueles olhos, aquelas tranças e aquele cheirinho a pó de arroz desaparecessem um dia e achei que levaria consigo a poeta. Mas não, sempre que abro o seu cofre, sinto o frio de Dezembro, e há azul à minha volta, tudo continua e nada mudou. Há sempre a sua poesia..
Maria Ana Ferro

CONFRARIA CULTURAL BRASIL-PORTUGAL
Sede: Divinópolis, Minas Gerais, Brasil
Presidente Maria de Fátima Quadros

 Como descendentes de portugueses e interessados por tudo o que diz respeito à terra da nossa gente, terra amada, fundámos uma Confraria para ampliarmos as nossas relações de afecto, amizade e tradição e trabalharmos em prol de actividades afins, históricas, culturais, etc., trazendo Portugal aos brasileiros e levando para Portugal, o Brasil. Afinal, somos um só povo, uma só alma e um só coração. Brasil é Portugal e Portugal é Brasil.
Foram indicados pela fundadora e aprovados por aclamação os nomes dos padrinhos da Confraria, MARIA FERNANDA TELLES DE CASTRO E QUADROS FERRO e JOAQUIM MARIA MACHADO DE ASSIS e, para dar nome à Biblioteca, GENI BATISTA QUADROS.
Escolhemos Fernanda de Castro para madrinha por ser uma artista completa, célebre na poesia, nas letras e em tudo o que se relaciona com a arte. Figura feminina privilegiada, marco da literatura portuguesa, autora dos mais magníficos versos, a sua memória perpetua-se na eternidade. O seu trabalho não tem limites nem fronteiras, é simplesmente belo e magistral, assim como a obra de Machado de Assis, fundador da Academia Brasileira de Letras e filho de mãe portuguesa.
Quisemos prestar a estes grandiosos vultos uma singela homenagem mas os homenageados fomos nós. Este privilégio engrandeceu ainda mais a nossa Confraria.

Maria de Fátima Quadros



FERNANDA DE CASTRO E ANTÓNIO FERRO
- A Semana de Arte Moderna de São Paulo

Colaboração com os alunos de Jornalismo da UNISANTA - Universidade Santa Cecília, Santos. Abril de 2012


A recepção em Portugal da Semana de Arte Moderna de São Paulo traz-nos à memória um casal de jornalistas e escritores, e muito mais do que isso, pois, no caso dele, António Ferro, trata-se de um dos raros elementos positivos da política do Estado Novo. Antes de afastado por Salazar, António Ferro desempenhou importantes funções na Cultura, e nessa qualidade promoveu grandes acontecimentos e grandes artistas da modernidade
A arte é tecida de relações, um livro é um retalho desse tecido de diálogos, conhecimentos, leituras, espantos e descobertas da nossa experiência, que constituem o suporte da criação. Por isso não surpreende que este depoimento complete um anel na minha rede de afetos e práticas de exegese modernistas. Esse anel passa pela Guiné-Bissau, nas cercanias da Primeira Grande Guerra, e por Cascais, nos anos 70, para se fechar aí – ou aqui -, na Universidade Santa Cecília, em 2012.
Foi Fernanda de Castro, esposa de António Ferro, quem viveu em Bolama, nessa época capital da Guiné Portuguesa. Da experiência guineense deixou um belo poema, África Raiz, e romances que encantaram a nossa infância e adolescência: Mariazinha em África e Novas aventuras de Mariazinha.
Ora estava eu há dias a pensar, depois de ter metido no correio três cartas de um dos filhos do casal, António Quadros, com destino à Fundação do seu nome, que as minhas ligações intelectuais e artísticas mais fortes se estabelecem com o Modernismo e movimentos conexos. Uma delas, criou-a precisamente António Quadros, quer com a sua presença amistosa, na casa de Cascais, onde tive o gosto de o conhecer pessoalmente, quer com os seus livros, em especial sobre modernistas. A ação desenvolvida em nós por relações destas não se circunscreve à hora de apresentação ou visionamento, nem aos dias de leitura: ela penetra e perdura em nós muito tempo. Assim a Semana de Arte Moderna de São Paulo não se cingiu aos dias 11-18 de Fevereiro de 1922: o seu espírito já vinha da própria vontade de alguns artistas brasileiros, de outras partes do mundo, e durará para além de hoje.
É num ambiente esfuziante de alegria, provocador das mentalidades tacanhas, que o casal é recebido pelos artistas organizadores e participantes do evento, isto ao longo de vários meses, não apenas em São Paulo, mas também no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e outras cidades do Brasil. Uma peça de teatro de António Ferro, Mar Alto, andava pelos palcos brasileiros, acompanhada por conferências do autor e declamação de poemas de Fernanda de Castro. Ocasião excelente para travar novos conhecimentos e permutar experiências, quer do lado português, quer brasileiro. Porém acredito que a principal repercussão no casal de escritores portugueses, e portanto em Portugal, desta longa semana de arte, tenha sido um fruto humaníssimo em carne e osso. Eles tinham casado por procuração, estava António Ferro no Brasil, onde chegara uns três meses depois da Semana de Arte Moderna. Foi sua testemunha um herói futurista, bem integrado na épica urbana da velocidade e do progresso, Gago Coutinho. O Brasil homenageava o audaz piloto que, com Sacadura Cabral, acabava de realizar a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, integrada, como a Semana de Arte Moderna de São Paulo, nas comemorações do I Centenário da Independência do Brasil. Fernanda de Castro partiu então ao encontro do marido, e logo nos primeiros meses de vida conjugal geraram o menino que viria a nascer em Lisboa a 14 de Julho de 1923: António Quadros, seu primeiro filho.
Como se sabe, o grito de Ipiranga nas artes lusas foi soltado, oficialmente, em 1915, com a publicação da revista Orpheu, editada por António Ferro. A Semana de Arte Moderna de São Paulo tem na Orpheu algumas das suas raízes, pois a revista foi concebida como ponte entre os dois países. Daí ter dois diretores, Luís de Montalvor em Portugal e Ronald de Carvalho no Brasil. Com os seus dezoito anos à época, António Ferro foi escolhido para editor por ser menor de idade, e por isso «irresponsável», como eles gostam de reafirmar – óbvia provocação à caduca responsabilidade académica, atacada por Almada Negreiros no Manifesto anti-Dantas. Aliás a atitude provocatória e desafiadora mantinha-se no comportamento social dos artistas da modernidade no Brasil de 1922. Por isso mesmo Fernanda de Castro foi aclamada «Rainha da Semana de Arte Moderna»: por se ter apresentado suja de lama, de meias rotas, vestido escandalosamente encolhido pela chuva até acima do joelho, na sequência de um acidente de automóvel. Feitos acrescidos à missão de declamar poemas em casa de D. Olívia Penteado, senhora riquíssima e chiquérrima, famosa por no seu jardim funcionar o que então se designava por «primeira Academia Livre de São Paulo». Isto conta Fernanda de Castro no primeiro volume das suas Memórias, o que mostra o poder da Academia de D. Olívia Penteado: ao proclamarem Fernanda de Castro «Rainha da Semana de Arte Moderna», os artistas presentes proclamavam ao mesmo tempo que há semanas com muito mais de sete dias. Por algum motivo eles se consideravam os relógios do futuro, e gritavam que era a Hora! - Hora presente, de ação contra as vaias dos defensores da arte convencional.
António Ferro participou na Semana de Arte Moderna de modos variados, pelas relações de amizade que já tinha e criou depois com os artistas brasileiros e por ter colaborado na revista Klaxon, publicada pela Semana de Arte Moderna. No número 3 podemos ler o seu texto Nós, ou, de forma talvez mais acessível, no volume Intervenção Modernista, que colige umas dezenas de trabalhos seus. Nós é qualquer coisa como um sketch para teatro, com duas personagens, «Eu» e a «Multidão».
Outros contributos para a implantação do Modernismo no Brasil resultam das suas conferências, levadas ao Rio de Janeiro, a Belo Horizonte, ao Teatro Municipal de São Paulo e a mais auditórios. A atuação de António Ferro, recebido em especial como autor de Leviana, uma inovadora novela em fragmentos, e sobretudo as suas palavras, traziam a febre e o frenesi do futurismo: «A idade do Jazz-band» teve lugar a 12 de Setembro no Teatro Municipal de São Paulo, com apresentação de Guilherme de Almeida, e no Trianon do Rio de Janeiro, com apresentação de Ronald de Carvalho.
O jazz era a grande descoberta da Europa, e sobretudo de Paris, o que significa, mais uma vez, que a arte é feita de relações, de dádivas e de recepções, pois trata-se do contributo afro-americano para o estabelecimento da modernidade, o que aliás ainda não aconteceu por completo. Os movimentos mais renovadores da arte ainda esbarram com uma mentalidade rural que sobrevive nas populações de todos os países, mais sintonizadas com os paradigmas da representação, o que quer dizer, em termos singelos, que a maior parte das pessoas só é sensível a práticas estéticas realistas e românticas. No Brasil, invoca-se o parnasianismo como principal baluarte da arte académica, em guerra contra os modernos.
Os artistas da Semana de Arte Moderna (tal como os de hoje) foram por isso aplaudidos e zurrados, convidados a internarem-se nos hospícios para doidos, e António Ferro não escapou aos varapaus. Era muito jovem ainda, muito empolgado, muito provocador, não só nas palavras como na encenação das conferências: «A idade do jazz-band», por exemplo, era interrompida aqui e ali por trechos de jazz e terminou, como o conferencista solicitava em remate de texto, com um solo de tambor. «A arte de bem morrer», quando foi proferida em São Paulo, em Dezembro de 1922, teve apresentação de Menotti del Picchia.
As melhores recordações que Fernanda de Castro guarda das várias visitas ao Brasil são as relativas à «semana revolucionária», como ela mesma escreve. Foi pintada pelos pintores modernistas do Brasil, criou no Brasil novas amizades, foi no Brasil que passou a lua de mel, acontecimentos realmente inesquecíveis, de que fala nas Cartas para além do tempo e sobretudo nos livros de Memórias. É através dela que apresento o documento oficial de recepção em Portugal da Semana de Arte Moderna de São Paulo, redigido por António Ferro. Delego por isso em Fernanda de Castro o epílogo deste depoimento.

Eis o que o António escreveu a propósito desta memorável semana:
«Graça Aranha, na Tribuna do Teatro Municipal, proclamava a independência da Literatura Brasileira, os direitos do Escritor. Iniciava-se a semana da Arte Moderna de São Paulo, semana Revolucionária, à qual se seguiu uma verdadeira época de terror, no mundo das ideias feitas; Mário de Andrade vestiu-se de Arlequim na sua Pauliceia Desvairada. Oswald de Andrade, papão de burgueses, manifestava os primeiros apetites da sua antropofagia. Menotti tinha acabado de pintar, de modelar, de orquestrar o seu Juca Mulato. Cassiano Ricardo sonhava já com o seu Martim Cerêrê. Joca Tatu acabava de nascer, de ser dado à luz no Urupés, de Monteiro Lobato. E até a Poesia do meu querido Guilherme de Almeida, admirável retrato lírico do Brasil, se encontrava em rebelião contra si própria, desencaminhada, tresnoitada virando boémia [...j.»
«Foi neste acampamento revolucionário, neste Far-West de imagens que desembarquei certo dia, atraído por esse empolgante barulho, por essas pistolas, esses bacamartes que disparavam estrelas! Com um Jazz-Band inteiro na malinha de mão, com o meu escandaloso Mar Alto, menos peça de teatro do que peça de artilharia, fui logo festivamente recebido pelos meus camaradas de São Paulo, pelos cow-boys do planalto, tanto mais que vinha colaborar alegremente na sua algazarra, na sua gritaria, aumentar a confusão geral.
«Fazendo ruído, assaltando reputações frágeis que passavam ao nosso alcance, vivi quatro meses com esses bons companheiros, numa camaradagem íntima de todas as horas, numa boémia de espírito que nunca mais esqueço.»
Fernanda de Castro, Ao fim da memória, pp. 184-185


RELEITURAS
Fernanda de Castro, Ao fim da memória. Memórias (1906-1939). Portugal, Editorial Verbo, 1986.
Fernanda de Castro, Cartas para além do tempo. Portugal, Europress, 1990.
António Ferro, Obras de António Ferro. I - Intervenção Modernista. Portugal, Editorial Verbo, 1987.

 

Maria Estela Guedes



Um dia, um ladrão entrou na sua casa de Alporcinhos, no Algarve, e ela, com um simples olhar, fez com que o homem se assustasse e fugisse atrapalhadamente pela janela, novamente de mãos a abanar, rasgando-se todo.
Noutra ocasião, na Escócia, passando uns dias no castelo assombrado de uma amiga, foi solicitada por esta para que afastasse os fantasmas à hora do chá, para poderem apreciá-lo tranquilamente.

- Vá, meninos, não se salientem agora. Deixem-se de fitas!
Parece que resultava.

Outra vez, quando morreu a Natália, a Mafalda e eu fomos visitá-la por pensarmos que se sentiria triste e sozinha, naturalmente, por ter perdido uma amiga. Como sempre, recebeu-nos plácida e optimista. Virou-se para mim e disse:
- Já esteve comigo hoje. Nessa cadeira onde estás sentada.

Apesar de alegre e solar, era mediúnica e acreditava em espíritos. Assinava revistas francesas científicas da especialidade e seguia os casos mais controversos.

Fernando Pessoa, que era visita diária de sua casa, gostou dela – poucos o sabem. Foram as sobrinhas direitas, são pouco mais velhas do que nós, que nos confiaram este segredo. Parece que se encontrou um escrito seu, discreto mas legível, dizendo “De quem eu gosto é de FC”.
Houve um episódio muito estranho com a Florbela, no fim da vida desta. Diz-se que o escritor Américo Durão, que a amou, também amou Fernanda de Castro. No dia em que se suicidou, Florbela andou todo o dia atrás dela. Procurou-a em casa, na pastelaria onde tomava chá, na livraria por onde costumava passar. Depois de o saber, Fernanda de Castro guardou para sempre a angústia de pensar que, se não se tivesse desencontrado com ela, poderia ter evitado a tragédia – não a conhecia bem, mas tinha um magnetismo próprio e o poder de transformar para sempre a vida das pessoas com quem se cruzava – e sabia-o.

Foi obrigada a crescer muito depressa: aos 12 aos parte para a Guiné, onde o pai é capitão do porto de Bolama, então capital. Dois anos depois, a mãe morre de febre amarela, e ela é obrigada a separar-se do pai e a regressar a Portugal já órfã, sozinha num navio, com o irmão mais novo ainda de colo.

Mesmo assim, é desta experiência triste que nascem os primeiros best-sellers para crianças “Mariazinha em África” e “Novas Aventuras de Mariazinha”, que fazem as delícias de uma geração.
A sua síntese está longe de a esgotar.

Uma poetisa casa com um homem público, que escreveu 34 obras, desempenhou funções de embaixatriz e pedagoga, foi mãe, avó e bisavó, exímia anfitriã, primorosa bordadora de trabalhos em seda e de tapetes de Arraiolos, coleccionadora de conchas raras e embevecida por flores – António Patrício lembrava-a como “uma irmã mais nova de Cesário” e Lisboa tem hoje um jardim com o seu nome – amiga e admiradora de Salazar, com muita honra, um bom garfo e uma colher superlativa, que acreditou sempre na bondade das pessoas, observou quatro guerras, viu a sua casa do bairro alto a arder, assim como o seu país e as suas convicções, perdeu duas netas num desastre de automóvel, era conhecida pelo seu bom gosto a vestir e a receber, viveu 94 anos, sobreviveu quarenta ao marido, e foi de uma actividade delirante.

Lembremos algumas das suas realizações, nesta Casa cuja criação tanto acarinhou e que tanto viria a frequentar:
Foi a segunda ou terceira mulher a tirar a carta de condução em Portugal.

Com 19 anos, juntamente com Teresa Leitão de Barros, concorreu ao concurso de originais com a peça “Náufragos” e ganhou o primeiro prémio.

Foi a primeira mulher a ganhar o premio Ricardo Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa.

Foi a sócia nº 1 da Sociedade Portuguesa de Autores.

Publicou 15 livros de poesia, 5 romances, 7 peças de teatro, 7 livros para crianças, 1 livro de cozinha, 1 livro de introdução à botânica e 2 volumes de memórias, num total de 34 obras.

Foi tradutora de Rainer-Maria Rilke, Colette e Katherine Mansfield, entre outros consagrados.

Participou na Semana de Arte Moderna, de São Paulo.

Editou discos, compôs música, foi fundadora e editora da revista “Bem-Viver”, escreveu argumentos para filmes e para bailados e dezenas de letras para canção e fado;

Publicou centenas de crónicas, deu conferências e recitais no continente e nas ilhas, no Brasil, na Suíça, em Paris e em África.
Escreveu o maior poema europeu consagrado a África.

Foi proprietária de um hotel em Cascais e de um restaurante no Algarve, e também decoradora, designadamente dos primeiros 40 apartamentos de Vilamoura.

Organizou o I e II Festivais do Algarve.

Foi fundadora da Associação Nacional dos Parques Infantis – cinco estabelecimentos para crianças necessitadas dos bairros populares de Lisboa – de que se ocupou durante 40 anos, sem nunca auferir vencimento;

Depois de adoecer, e de perder para sempre a mobilidade e a visão, ainda escreveu 4 livros entre os quais os seus dois volumes de memórias e um romance de 400 páginas, ditando a quem se oferecia.

Aos 92 anos, dois anos antes de morrer, ainda enviou à TVI, então dirigida pelo Eng. Roberto Carneiro, duas propostas originais para programas de televisão.

Em setenta e cinco anos de vida literária, a devoção à sua Arte nunca a abandonou; não só nos seus livros de versos, mas também no romance, no teatro, na literatura infantil, nas obras que realizou e na vida que cumpriu, na educação que deu aos filhos e na forma tão singular como viveu a amizade, foi sobretudo Poeta!

Poeta da Vida e da Esperança, poeta de Lisboa, do Algarve e de África, poeta no sentir e na palavra, “Poeta da razão vital”, como dizia seu filho António.

Lá em casa, à noite, nos famosos serões da Calçada dos Caetanos, o Ary, que a tornou mãe adoptiva, fazia-nos rir:

Minha avó era uma pulga
Minha mãe um sardão
Sou neto de um corno velho
Não há pulga sem senão.

Nascemos intempestivos,
Dum coito de ideias tolas,
Estamos vivos, estamos vivos,
Fomos feitos de ceroulas!
Fernanda de Castro ficava sentada, inexpressiva, com aquele olhar de mãe-índia que atemorizava os incautos, e perguntava-lhe, baixinho:
- O menino de calção, ao voltar da Escola, o que tem na mão? Uma bola, um pião, um balão? Ou uma pedra que arrancou do chão?
Eu arrepiava-me toda, claro, pressentindo tudo, como os bichos, mas ele não se calava, exaltado pelo gin:
A palavra será fraca
O sentido será gume,
a imagem será chama,
A matéria será lume!

Não se calava ele, nem se calava ela:
- Olha rapaz, as tuas mãos, tão frágeis e tão nuas, mas tão tuas! Com elas poderás fazer a tua casa, semear o teu pão, regar o teu jardim, saudar o teu irmão! Com elas poderás pintar vitrais, fazer mastros, navios, construir catedrais! Olha, rapaz, as tuas mãos. Olha os teus dedos, tão frágeis mas tão teus, e ousa depois dizer que não há Deus!

E logo o Zé Carlos, a tremer:
- Os que entendem como eu a força que tem um verso, reconhecem o que é seu quando lhes mostro o reverso!

Um dia, num Abril em que muitos choraram para que outros pudessem rir, porque a vida é assim mesmo, os três amigos despediram-se e cada um tomou a sua estrada. A Fernanda, a Natália e o Ary.

Mas Fernanda de Castro, essa, é como se continuasse lá, no mesmo lugar feito de pedra e de esperança, a repetir, teimosa:
- E ousa depois dizer que não há Deus!

Muito obrigada, e um Abraço especial à minha irmã, que tornou este dia possível!
Rita Ferro

 
 
Canção
Que o Vento Escutou
Para Fernanda de Castro.

Já nem de mim me condôo
‘trás do anseio sem parede
De abrir asas ao meu vôo,
De dar água à minha sede.
Os sonhos, um regimento
Sem disciplina que os dome.
Daí por que eu me alimento,
Praticamente, de fome!
E vou no vento, no vento
Vou, alado às leis de Além,
Levando no pensamento
O sustento que me sustém!...
Rodrigo Emílio
Fernanda de Castro — Canto de 50 anos
*****
«Tem esta minha «Primeira Colheita» quase vinte anos.
... E de há vint`anos, também, é o primeiro beijo-em-verso-corrido que eu tive o atrevimento de Lhe dar: um longo beijo que voaria ao Seu encontro a bordo d`um aerograma (lembra-se?) e que ficou arquivado para sempre — e para que conste... — nas folhas frementes deste livro (a págs. 218/219/220).
É um beijo natural de Moçambique. Por então, ainda Portugal tinha vista para o Índico... e para o futuro, e não tinha, como hoje, o horizonte obturado — e o futuro atrás de Si...
Vint`anos depois, toma a liberdade de repôr na face e nas mágicas mãos da Senhora Dona Fernanda a música desse beijo admirador e enternecido, o Rodrigo Emílio  (o Rodrigo Exílio, repito).»
*****
Por trás
do lírico altar
a que o Senhor está presente
— que  paz sem par,
de pastor e poente,
te faz cantar
de amor
tão docemente?...
Que sol de mocidade
a rir em flor,
que esplendor adolescente,
que vário ardor
d`alma, que saudade
calma, inocente,
ou que dor, que dor fremente,
impenitente dor, dor insistente,
sempre por sempre em favor
da mais humílima gente
— te faz cantar
de amor
com fulgor
tão refulgente?...
Que vertente de luar
sonhador,
que palor alvinitente,
que torrente d`amor
qual fonte fluente
no horizonte abrasador,
que noite ardente,
que levada envolvente
no azul castor
da madrugada nascente,
que manhã radiante, estuante de côr,
que silêncio plangente,
que rumor de nenúfar
à flor, ao sabor
de múrmura corrente
— te faz cantar
de amor,
assim, com tal frescôr,
assim, tão docemente?...
Encontros que teu canto apraza!...
Em cada verso, o abraço
Que liberta:
— Asa. Meiga asa. ASA
NO ESPAÇO
aberta!
(Penas que a voz de alguém
exala
em vôos D’AQUÉM E D’ALÉM 
ALMA...)
Varinha de condão da tua voz...
E nela, a maravilha que se expande,
sem desvio ou desvão...
— Poeta: funda, para todos nós,
A ILHA DA GRANDE
SOLIDÃO!
E então que por lá nos deixem a sós,
Só com o teu livropoema na mão...
(Do livro de poemas: «PRIMEIRA COLHEITA (1957-1972)», Editora PAX, de Braga 1973)

*****

“Quadra de Prenda d’Anos, Com Um Beijo Dentro Dela”
Envoi tangido por R.E. no nonagésimo aniversário natalício de Fernanda de Castro
A nossa Poesia tem, à proa,
Um nome de mestre e outro, de mastro:
— de Goa a Lisboa, Fernando Pessoa;
— aquém do Mansoa, Fernanda de Castro.
(Casa de São José, em Parada de Gonta, aos oitavos de Dezembro de 1990, Dia de Nossa Senhora da Restauração.)
*****
Sua Casa de São José, em Parada de Gonta; primórdios de Agosto de 1991.
Minha Senhora-Dona-Poesia-Sempre-em-Flor:

Em carta que dirigi, há perto de um ano, ao “nosso” confraternal, infatigável e omnisciente António Quadros (suponho que conhece....), prometi solenemente que, a muito breve trecho, A beijaria por escrito. Só que a minha vida, como saberá (ou talvez não...), “é um vendaval que” (há muito) “se soltou, / é uma onda que se alevantou, / é um átomo a mais que se animou”, conforme diria o Régio do “Cântico Negro” (que vem a ser poema  que tudo-minha-gente para aí recita, e geralmente bem, ainda assim benzinho, bastante bem até, mas que só eu, afinal, tenho tido a coragem de interpretar à letra, de seguir à risca, de assumir em pleno e de viver a fundo... E até ao travo...)

Segue-se que o tempo — esse marotão que nos ataca, fugindo, velocíssimo, e que, nessa medida, não perdôa — foi, na forma do costume, correndo à desfilada, sem me dar folga nem descanso para lhe escrever à boa paz... e, a brincar, a brincar, um ano inteirinho de silêncio se perfez, sem que chegássemos à fala um com o outro, por via postal.

O cerne da questão é sempre o mesmo, e o mesmo de sempre: “Não me deixa a poesia ser humano / E a vida não me deixa ser Poeta”: há quase quarent’anos que ando nisto e confesso que não lobrigo jeitos de romper o cerco.

Bem vê a minha boa Amiga: Poeta, sou-o eu desde nascença e tenho-o sido a tempo inteiro; por vocação e por “métier”.
Com tanta verdade como o Gedeão, ou com mais verdade ainda do que ele, bem poderei dizer que, para mim, “Todo o tempo é de poesia”, visto que de outra coisa não tem sido ele feito até agora. Sim. “Todo o tempo”, no meu caso, “é”, também, “de poesia. / Desde a névoa da manhã / à névoa do outro dia, //   // Desde a quentura do ventre / à frigidez da agonia. // Todo o tempo é de poesia.”
Todo ele — e algum que sóbre... Todo — e ao mais não é muito... Todo ele — e mais que fosse!...

Creio não a escandalizar, assim, mìnimamente, se de seguida eu lhe disser que, por essas e por outras, é que a vida — a chamada vidinha — foi sempre, e sempre há-de ser,  a minha segunda ocupação, o mais precário dos meus ganchos, o meu biscate de horas extra. (— A Poesia poucas folgas e “abertas”, ou nenhumas, me tem dado para cuidar de semelhante coisa...) O que vem desde logo a querer dizer que também o meu reino, também ele já agora está longe de ser pròpriamente deste mundo...

(... Demais, sabendo a estas horas eu — tão bem ou melhor, até, muito melhor, do que o David Mourão-Ferreira — que “Hão-de chegar-me, a pouco e pouco, os bens do mundo, / Como chega o socorro ao navio naufragado: / Quando o mar estiver calmo, o navio no fundo, / O óleo derramado..”).

Para lá de tudo e tudo isto — que já não é nada pouco, convenhamos... —, e tal como aí acontecia já, acresce que também não falta aqui, à minha volta, gente e mais gente a tentar tirar-me, à viva força, a caneta das mãos, a tentar impedir-me, por todos os meios (sobretudo, os mais sórdidos), de criar beleza.
Em vão, porém.

Quanto mais sitiado me vejo de gente assim — e que é gente feita à pressa, com pressa de ser gente; gente d’Abril, portanto, ou que antes de ser d’Abril, já o era; gente que é feia, por dentro, como as coisas feias —, mais eu me refugio na pátria da beleza. Quero eu dizer: na criação poética, na produção     artístico-literária.

E depois, minha boa Amiga, há ainda e também e sobretudo este país que continua a não me dar — a não nos dar — sossego, esta Pátria que já  por mim vai deixando de ser tida como uma graça que da vida se recebeu, para se converter, cada vez mais, numa espécie de fatalidade que se expia — ou num sudário, pesaroso, que se arrasta — pelas ruas do fel e da amargura...

Tudo isto por junto para, afinal, Lhe dizer que o silêncio estridente a que me tenho remetido — ou melhor: a que tenho sido remetido pelo “gulag” postal, familiar e político em que sou visto e achado — não tem nada a ver com o meu querer, com os meus desejos, com a minha vontade, que essa era, sim, a de ter ido aí beijá-la ao domicílio no dia esplendoroso dos seus 70 anos de criadora inconfrontável — digo: de Grande Maga das nossas Letras contemporâneas — e no dia igualmente prodigioso das suas 90 primaveras natalícias. Mas o beijo ao vivo que este poeta incorrigível, que este monárquico-fascista impenitente, impertinente e pertinaz, não pôde dar-lhe então, a horas próprias, vem trazer-lho agora ele, a horas já um pouco mais impróprias, mas decerto ainda a tempo, — que a todo o tempo é tempo de beijar e ser beijado.

Como a minha Amiga verá, é um beijo rimado o que eu d’aqui lhe expeço (e em 2ª via, já). Escuso de dizer-lhe que é ele portador, junto de Si, do mais vivo e mais festivo dos acenos.

Tenha sempre à conta de devoto da Sua Poesia (em verso e em prosa) e de fanático do Seu Exemplo este muito seu, sempre seu, 
        
Rodrigo Emílio
(Rodrigo Exílio.., digo).
*****
Fernanda de Castro — Rodrigo Emílio: — Breve antologia de permutas poéticas, sob a forma de duelo epistolar —
I.
Fernanda de Castro
(em sua carta-poema de 13/XI/90 — que eu creio ter sido a data, justamente, em que, trinta e mais quatro anos antes, o muito grande e sempre nosso    bem-lembrado e benquerido ANTÓNIO FERRO se despediu dos caminhos deste mundo — dos de um mundo português que O não soube merecer... — e arribou, extenuado, ao Reino dos Céus):
“Cai a flor e fica o fruto,
Cai o fruto e fica a rama.
Das cinco partes do mundo
Só ficou a minha cama”.
Contestação de Rodrigo Emílio:
Não há mágoa que mais dôa
que cair em tal regaço...
Mas a sua cama vôa
como asa no espaço!...
Por isso — se me perdoa... —
sua cama não desfaço.
Que pena, Amiga! Que pena
não voar eu como ela...!
Tanto qu`ria ir à novena
dos seus anos-luz de estrela,
tanto qu’ria dar-me a prenda
quer de ouvi-la quer de vê-la,
e eis que a vida me condena
a quedar... de sentinela.
(Tome em conta  toda a pena
que tem — e não é pequena...! —
quem, de longe, assim lhe acena,
com Dezembro na janela...)

II.
«(...) não vejo praticamente quase nada por causa de glaucomas e cataratas que me impedem (...) de escrever há quase dez anos».
Fernanda de Castro
(em sua carta-poema de 13/XI/90)
Contestação de Rodrigo Emílio:
Para quê esferográfica,
ou caneta, não me diz?!
Sua lira é geográfica
e essa voz borda a matiz.
— A raiz da nossa Pátria
está na “África Raiz”.
Tinta é seiva azul de fábrica
e a letra — uma cicatriz.
Poeta d`esferográfica
lavra, lavra — e nada diz.
Não é com esferográfica
que se brada: «Ó meu País!...»
Terá sido a maré gráfica
ou mais o sangue d`Aviz
a meter lanças em África,
como as d`«África Raiz»?
Para quê esferográfica,
se sem ela tudo diz?!...
A voz alta é a gramática,
é ela a força motriz,
a grande varinha mágica,
ela, o génio e a geratriz
dessa lira geográfica
que prediz mais do que diz.
Quem sonda a matriz da Pátria,
pondo-Lhe os pontos nos iis,
quem vê que a raiz da Pátria
está na «África Raiz»,
não precisa esferográfica
e dispensa aparo ou giz.
Não vive de esferográfica
mão que impetra: «ó meu País!...»

 
III.
«Aos oitavos de Dezembro»
Poema com data, e ditado a eito, ao sabor da pena e ao correr do coração do Rodrigo Emílio, no nonagésimo aniversário natalício de Fernanda de Castro. Muito para Ela, com nove X nove novenas de beijos do R.E.
Em este dia
de Nossa Senhora da Restauração,
quereria
ter ido aí beijar-lhe a mão
(aí, à Ilha da Grande Solidão)
e passar — por que não?!... —
boa parte do dia
na companhia
da própria Poesia.
Acolher-me a sua casa
como à concha d`um regaço
(que, debaixo dessa asa,
tudo é asa no espaço!...)
Não perder a coroação
da festa dos três trinados
e ficar para um serão
cheio de versos e fados
planando a bordo da voz da Maria João
Quadros.
(Se António estiver por perto
— todo intelecto e talento... —
é então mais do que certo
que projecto
o meu tormento
ao tecto
do pensamento!)
............................................................
... E embaladoras baladas
virão de todos os lados
saciar-me de quadras
... e Quadros.
Casa de São José, em Parada de Gonta, na Noite de Conjurados de 1990.
Rogrigo Emílio