Poemas

A Sombra de um Salgueiro

Fugi das chaminés.
do fumo, que era um denso nevoeiro.
e procurei, na beira dum regato.
a sombra de um salgueiro.

O silêncio, era música do céu;
o ar parado, absorto,
mas na água tranquila
vogava um peixe morto.

Fernanda de Castro, in «Urgente», 1989



Alegria

De passadas tristezas, desenganos
amarguras colhidas em trinta anos,
de velhas ilusões,
de pequenas traições
que achei no meu caminho…,
de cada injusto mal, de cada espinho
que me deixou no peito a nódoa escura
duma nova amargura…
De cada crueldade
que pôs de luto a minha mocidade…
De cada injusta pena
que um dia envenenou e ainda envenena
a minha alma que foi tranquila e forte…
De cada morte
que anda a viver comigo, a minha vida,
de cada cicatriz,
eu fiz
nem tristeza, nem dor, nem nostalgia
mas heróica alegria.

Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal pode vencer.
Doido prazer de respirar!
Volúpia de encontrar
a terra honesta sob os pés descalços.
Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar, de respirar
honestamente e sem caprichos,
como as ervas e os bichos.
Alegria voluptuosa de trincar
frutos e de cheirar rosas.
Alegria brutal e primitiva
de estar viva,
feliz ou infeliz
mas bem presa à raiz.
Volúpia de sentir na minha mão,
a côdea do meu pão.
Volúpia de sentir-me ágil e forte
e de saber enfim que só a morte
é triste e sem remédio.
Prazer de renegar e de destruir o tédio,
Esse estranho cilício,
e de entregar-me à vida como a um vício.
Alegria! Alegria!
Volúpia de sentir-me em cada dia
mais cansada, mais triste, mais dorida
mas cada vez mais agarrada à Vida!

Fernanda de Castro, in «D’ Aquém e D’ Além Alma», 1935

 

Alma, Sonho Poesia

Entrei na vida
com armas de vencida;
alma, sonho, poesia.
quando eu cantava
o mundo ria
mas nada me importava:
cantava.

Depois, um dia,
o mundo atirou pedras ao meu canto
e a minha alma rasgou-se.
Que seria?
medo, espanto,
revolta ou simplesmente dor?
Fosse o que fosse,
o orgulho foi maior.
Com dez punhais nas unhas afiadas
e nos olhos azuis duas espadas,
eu nunca mais seria, nunca mais,
a que entrara na vida
com armas de vencida.
Agora o meu querer era mais fundo:
de um lado, eu, do outro, o mundo.
e começou a luta desigual
do tigre e da gazela.

A vencida foi ela.
Mas que louros colheu dessa vitória
o mundo cego e bruto?
O sangue dos poetas? Triste glória…
Cinza de sonhos mortos? Magro fruto…
Oh, não, punhais e espadas!
Eu só quero cantar! Não quero ossadas
nem, sob os pés, um chão de campas rasas.
Eu só quero cantar! Só quero as minhas asas
e a minha melodia:
Alma, sonho e poesia…
Alma, sonho e poesia…

Fernanda de Castro in «39 Poemas», 1941

 

Amo as palavras

Amo as palavras.
Não, não amo as palavras,
amo os símbolos.

A Lua é talvez um planeta,
mas a lua que eu amo,
nimbada de luar,
é a lua inventada,
algo de branco, puro,
inacessível,
algo para cantar
quando o silêncio, a noite, a solidão,
são lágrimas de sangue que o Poeta
se recusa a chorar.

Fernanda de Castro, in «Na Ronda das Horas Lentas», 1969

Antero 

Antero, aqui viveste nestas Ilhas
de princípio do mundo, de inocência,
em que as névoas, as brumas são mantilhas
de rosada, impossível transparência.

Teus rochedos emergem como quilhas
de barcos embalados em cadências
por este mar azul de maravilhas
em que as vagas são pétalas de hortênsia.
E contudo sofreste. De beleza
sofre-se às vezes mais que de tristeza,
sofre-se o vento, a bruma, a noite, o dia,
a muralha do tempo e do Impossível,
sofre-se o que se diz e o indizível.
De que morre o Poeta? De Poesia.

Fernanda de Castro, in «Na Ronda das Horas Lentas», 1989

Aroma, Essência, Pólen, Harmonia…

Eu que só gosto de vestidos velhos,
de velhas casas com paredes tortas,
de poeiras ancestrais, de cinzas mortas,
de desbotados rosas e vermelhos;

eu que só gosto de velhos quintais
com ásperas roseiras mal regadas;
de cortinas de rendas, passajadas
por velhos dedos com velhos dedais;

eu que só gosto de velhas gavetas,
de velhas malas com cetins puídos,
sedas, fitas, perfumes esquecidos,
leques, missais, raminhos de violetas;

eu que só quero o que ninguém cobiça,
oiros de sol e pratas de nevoeiros,
filigranas de flores nos canteiros,
folhas soltas que o vento desperdiça,

espuma de marés, conchas vazias,
cintilações de estrelas, céus distantes,
gotas de orvalho – frescos diamantes,
canções de búzios – verdes melodias;

eu que só peço a Deus o que sobeja
de humanas ambições e vãs partilhas,
continentes de luar, sonhadas ilhas,
nuvens de fumo que ninguém deseja;

eu que só quero a rude sinfonia
do vento à solta, e os dedos de veludo
da chuva nos beirais da minha rua,
aroma, essência, pólen, harmonia,
eu, que não quero nada,
quero tudo:
quero a Poesia.

Fernanda de Castro, in «Exílio», 1952

Asa no espaço
 
Asa no espaço, vai pensamento!
Na noite azul, minha alma, flutua!
Quero voar nos braços do vento,
quero vogar nos barcos da Lua!

Vai, minha alma, branco veleiro,
vai sem destino, a bússola tonta.
Por oceanos de nevoeiro,
corre o impossível, de ponta a ponta.

Quebra a gaiola, pássaro louco!
Não mais fronteiras, foge de mim,
que a terra é curta, que o mar é pouco,
que tudo é perto, princípio e fim.

Castelos fluidos, jardins de espuma,
ilhas de gelo, névoas, cristais,
palácios de ondas, terras de bruma,
asa, mais alto, mais alto, mais!

Fernanda de Castro in «Poesia II»

Até que um dia…

Meus versos eram rosas, lírios, heras,
borboletas, regatos, cotovias
cantando suas doces melodias,
anjos, sereias, ninfas e quimeras.

Meus versos eram pombas entre as feras
e, na festa das horas e dos dias,
ia dançando penas e alegrias
e o ano tinha quatro primaveras.

E a festa continua… é também festa
o cardo e a urze, o tojo, a murta, a giesta,
a chuva no beiral, o vento Norte,

o gosto a mar, a lágrima, o sal,
até que um dia a vida, a bem ou mal,
exausta de cantar me empreste à morte.

Fernanda de Castro, in «Ronda da Horas Lentas», 1989

Canta. Busca na vida o que é perfeito

Canta. Busca na vida o que é perfeito.
Olha o Sol e não queiras outro guia.
Sonha com a noite e absorve, aspira o dia
tal uma flor que te florisse ao peito.

Da terra maternal faz o teu leito.
Respira a terra e bebe o luar. Confia.
Faz de cada pena uma alegria
E um bem de cada mal insatisfeito.

Colhe todas as flores do jardim,
todos os frutos do pomar  e, enfim,
colhe todos os sonhos do Universo.

Procura eternizar cada momento,
fecha os olhos a todo o sofrimento
e terás feito a carne do teu verso.

Fernanda de Castro, in «Daquém e Dalém Alma», 1935

Casa Velha

Deixem a casa velha! Que os pedreiros
não lhe tirem as rugas nem as gelhas.
Que não limpem de urtigas os canteiros,
que lhe deixem ficar as velhas telhas.

Deixem a casa velha! Que a não sujem
com óleos e com tintas os pintores.
Que lhe deixem as nódoas de ferrugem,
os velhos musgos, as cansadas flores.

Que não fiquem debaixo do cimento
mais de cem anos de alegria e dor.
Não lhe pintem a chuva, o sol, o vento,
que a cor do tempo é assim: vaga e incolor.

Que tudo fique assim, parado e absorto,
no tempo sem limites, sempre igual.
Ah, não, por Deus! Como se faz a um morto,
não a sepultem sob terra e cal!

Não fechem as janelas mal fechadas,
ouçam da brisa o tímido lamento,
deixem que a vida e a morte, de mãos dadas,
vão com seu passo reflectido e lento.

Não endireitem as paredes tortas
nem desatem, da aranha, os finos laços.
Abram ao vento as desmanchadas portas,
ouçam do tempo os invisíveis passos.

Deixem que durma, quieta, ao sol do Outono,
velada pela flor, o vento, a asa.
Será talvez o derradeiro sono…
Que importa? Morra em paz a velha casa.

Fernanda de Castro, in «Asa no Espaço», 1955

Difícil Alquimia

Oitenta anos daqui a poucos dias.
Parece muito. É imenso, não é nada.
Ínfimo grão de pó no pó da estrada.
Raminho de Tristezas, de alegrias.

Crepusculares, doces alegrias.
Por vezes, dolorosa a caminhada,
mas sempre, após a noite, a madrugada.
Cantos de rouxinóis, de cotovias.

De tudo um pouco, assim é que é a vida
se a queremos inteira, bem vivida,
às vezes vendaval, outras bonança-

Bem e mal, noite e dia, riso e dor.
Difícil alquimia: espinho e flor,
mas sempre aberta a porta da esperança.

Fernanda de Castro in «Poesia II»

Educação Sexual
 
Tenho pena de ti, pobre criança.
Em nome da ciência,
quantos cruéis abusos de confiança!
Roubaram-te a inocência.

Sabes tudo o que havias de saber
a anos de distância.
quando já fosses homem ou mulher,
e sujaram-te a infância.

Fernanda de Castro in «Poesia II»

Eu!

O homem de génio diz: eu sou.
O poderoso afirma: eu posso.
O rico diz: eu tenho.
E o ambicioso: eu quero.
Eu! Eu! Eu!
E afinal
esses que vivem sós,
completamente sós,
quanto dariam para como tu,
ou como eu,
dizerem simplesmente: nós

Fernanda de Castro, in «39 Poemas», 1942

Já não vivo, só penso

Já não vivo, só penso. E o pensamento
é uma teia confusa, complicada,
uma renda subtil feita de nada:
de nuvens, de crepúsculos, de vento.

Tudo é silêncio. O arco-íris é cinzento,
e eu cada vez mais vaga, mais alheada.
Percorro o céu e a terra aqui sentada,
sem uma voz, um olhar, um movimento.

Terei morrido já sem o saber?
Seria bom mas não, não pode ser,
ainda me sinto presa por mil laços,

ainda sinto na pele o sol e a lua,
ouço a chuva cair na minha rua,
e a vida ainda me aperta nos seus braços.

Fernanda de Castro, in «E eu saudosa, saudosa»

Mais um dia perdido

Há dias e que tudo é sem remédio,
em que tudo começa e acaba torto.
Uma folha caiu:
era um pásaro morto.

Neblina. Fim de tarde. Fim de Outono.
Nada nos fala, nos atrai, nos chama.
Choveu, parou a chuva,
ficou, porém, a lama.

Um banco no jardim. Árvores nuas,
um cisne velho, um tanque, água limosa,
nem a relva ficou,
quanto mais uma rosa.

Há barcos, há gaivotas sobre o rio,
e nas ruas há gente, há muitas casas.
Mais um dia perdido:
arrancaram-lhe as asas.

Fernanda de Castro, in «Urgente»

Meditação

Esta noite foi longa. Longa e vária
de segredo e mistério. Noite densa.
Invisível, tirânica presença
povoou a minha noite solitária.

Ah, a insónia com longas mãos de opala
e fundos olhos cegos!
E o pensamento à solta como o vento
 - montes e  vales, oceanos, pegos!...
e a cabeça que estala,
a cabeça que estala!

Pensar! Como se o humano entendimento
para tanto chegasse! Meditar
em sofás de ridículas saletas
no sábio movimento dos planetas.
Filosofar, oh irrisão,
enquanto mal ou bem
se faz a digestão,
sobre a morte, o devir,
o mistério do ser e do não ser,
e tudo isto a sério, sem sorrir,
como se enfim tudo estivesse dito:
o Caos, a Criação, Deus e o Infinito.
E nem sequer escondes por decoro,
triste mortal com asas de besouro,
ó depenado arcanjo,
que te crês Deus ou pelo menos anjo.

Esta noite foi longa. Longa em mim,
auroral e lunar, sem princípio nem fim.
Meditação
inútil sobre as grades da prisão.
Meditação sobre a existência,
(Existirá ou não?,
ou será tudo simples aparência,
colectiva ilusão?)

Esta noite foi longa. Longa e bela,
calma e branca vigília.
Um fio de luar entrou pela janela
e um doce cheiro a tília.
Abstracções metafísicas, problemas?
O firmamento era um brocado azul bordado a ouro,
fabuloso tesouro
de incomparáveis gemas.
Tudo era silêncio, quietação.
Compreendi então
que o essencial não era compreender
mas sentir e aceitar
a vida e a morte, o bem e o mal,
a flor, o luar
e a ignorância total.
Não mais filosofias de vaidoso esteta
e não mais este orgulho: sou poeta.
Razão
tem-na, talvez, o louco sem razão,
tem-na o monge na cela,
o cego de nascença, a pedra, o sapo,
a boneca de trapo.
O mais é tudo igual: poetas, corifeus…

Esta noite foi longa. Longa e bela.
Encontrei Deus.

Fernanda de Castro, in «Exílio», 1952

Menina Perdida

Menina perdida
no bosque da vida.

Os olhos desertos,
os gestos errados,
os passos incertos,
os sonhos cansados.

Menina perdida,
desaparecida
nos longos caminhos
de pedras e espinhos.
Cabelos molhados,
pés nús, alma exangue,
vestidos rasgados,
mãos frias, em sangue.

Menina encontrada
na berma da estrada.
Andava perdida
mas já foi achada,
de branco vestida,
de branco calçada.

Menina perdida
no bosque da vida.

Fernanda de Castro, in «Poesia I», 1969

Mulher Perdida

Boneca partida,
que aconteceu
à tua vida?

Ave caída,
ninguém te disse
que é bela a vida?

Quem te mandou,
asa ferida,
brincar com a vida?

E hoje, perdida,
quem te há-de achar?
A morte ou a vida?

Fernanda de Castro, in «Exílio», 1952

O Saco de Retalhos

Velho saco, onde estavas? No baú
das coisas mortas,
esquecidas como tu?
Guardado na gaveta
como as sedas, as cassas,
os ramos de violeta,
a poeira e as traças?

Velho saco, onde estavas? Pendurado
numa daquelas portas
que um dia se fecharam
sobre a infância, o passado,
e nunca mais se abriram?

Ou no sótão,
na trouxa dos farrapos,
misturado com os trapos?

Velho saco dos tempos esquecidos,
nos teus retalhos desbotados
reconheço os meus bibes,
as chitas e os percais dos meus vestidos.

Estes velhos riscados
foram saias, corpetes, aventais
de criadas que então eram meninas.
E estas cambraias, estas sedas finas,
usou-as minha mãe.

Ó velho saco, feito de retalhos,
rever-te fez-me bem.
Este linho desfeito, remendado,
foi lencol de noivado,
e quantas vezes te vi pôr na cama,
ó minha ama,
esta chita vermelha de ramagens.
Meu velho saco, meu livro de imagens,
rever-te fez-me bem.

Não sei, porém,
que travo amargo esta alegria tem,
que tristeza me fez, que nostalgia,
ver surgir na distância
a minha infância,
descosida, em farrapos,
e reencontrar a minha mocidade
remendada e puída
numa saca de trapos.

Ó saco, ó velho saco de farrapos,
já não sei, afinal,
se ver-te me fez bem ou me fez mal.

Fernanda de Castro, in «70 Anos de Poesia», 1989

O Segredo é Amar

O segredo é amar. Amar a Vida
com tudo o que há de bom e mau em nós.
Amar a hora breve e apetecida,
ouvir todos os sons em cada voz
e ver todos os céus em cada olhar.

Amar por mil razões e sem razão.
Amar, só por amar,
com os nervos, o sangue, o coração.
Viver em cada instante a eternidade
e ver, na própria sombra, claridade.

O segredo é amar, mas amar com prazer,
sem limites, fronteiras, horizonte.
Beber em cada fonte,
florir em cada flor,
nascer em cada ninho,
sorver a terra inteira como um vinho.

Amar o ramo em flor que há-de nascer
de cada obscura, tímida raiz.
Amar em cada pedra, em cada ser,
S. Francisco de Assis.

Amar o tronco, a folha verde,
amar cada alegria, cada mágoa,
pois um beijo de amor jamais se perde
e cedo refloresce em pão, em água!

Fernanda de Castro, in «39 Poemas», 1941



Pássaro Azul

(Ai, o Pássaro Azul da minha pena,
da minha pena, pena, pena…)

Eu tinha um Pássaro Azul,
Azul como o azul do arco-íris.
Não vivia numa floresta,
não morava numa gaiola.
Não era um pássaro de penas e de sangue.
Também não era um pássaro pintado.
Nem escrito. Nem pensado.
Era um pássaro sentido.
Sentido como os cegos vêem as cores,
como os surdos ouvem os sons.
Era demasiado pequeno para os dedos
mas podia encher uma alma.
O Pássaro Azul cantava,
mas a sua música
era uma grande alegria sem risos,
uma grande luz sem noite.
Em quase todas as casas havia silêncio
e o Pássaro Azul cantava.
Porque não havia em todas as casas
uma flor, uma estrela, um pássaro a cantar?
Não abri a porta da gaiola
porque não havia gaiola,
mas com mãos trémulas de esperança
fui buscar o Pássaro Azul
ao fundo da alma,
e abri as mãos
para que houvesse em todas as casas
uma flor, uma estrela, um pássaro a cantar.
Murcharam, porém, todas as flores,
apagaram-se todas as estrelas,
e o Pássaro Azul,
azul como o azul do arco-íris,
ficou frio e cinzento,
um Pássaro Cinzento
como um pássaro de lua.
Então as mãos,
aquelas mãos trémulas de esperança,
tomaram a forma de tépidas conchas,
de pequenos ninhos de calor,
e o verde,
o verde indeciso das marés,
cobriu de esperança as suas penas.
Era agora um Pássaro Verde,
verde e triste.
Então lágrimas lentas o envolveram,
pesada chuva de alma,
e o pássaro ficou branco.
Era agora um Pássaro Branco,
silencioso e triste.
Como um vento furioso,
a Ira sacudiu as raízes da alma,
da alma onde outrora
morava o Pássaro Azul,
mas o Pássaro Branco
era agora vermelho,
um Pássaro Vermelho e assustado,
pesado de solidão.
Então o desespero murchou-lhe as asas,
e ficou roxo como um lírio magoado,
um lírio de paixão,
negro como um céu sem astros,
um Pássaro Negro
tocado de morte.
E de nada serviram as mãos
que se fizeram conchas para o abrigar,
de nada serviu a Esperança,
de nada serviram as lágrimas,
de nada serviu o vendaval da Ira,
nem o Desespero, nem a Dor.
Ferido de silêncio e de morte,
o Pássaro Azul
fechou para sempre as asas
e nunca mais foi azul.

Não, na Ilha do Tesoiro
e do Pássaro Azul
não estão as minhas asas,
não estão nenhumas asas,
ficaram só as penas…

As penas e um tesoiro
que escondi, não sei onde,
quando parti
para a minha viagem sem partida
e sem regresso.

Oh! A minha viagem,
esses longos caminhos da Aventura
que imaginei, imóvel,
no quarto, a horas mortas.
Era tudo miragem,
silêncio, noite escura:
um mar de ondas paradas,
um chão de pedras soltas,
de plantas calcinadas…
Constelações de nuvens,
jardins de campas rasas,
florestas de silêncio,
sem frutos e sem asas.
Então vieste com teu passo lento,
com tuas mãos de flor
e teu sorriso breve,
então vieste, branca e alada,
pura e alada,
numa noite de tédio e nostalgia.
Não perguntaste,
não disseste nada,
mas eras a Poesia,
mas eras tu, Poesia,
meu tesoiro perdido,
meu tesoiro encontrado,
reencontrado.

A Ilha do Tesoiro,
a minha Ilha…

Porque eu tinha uma Ilha,
num continente sem limites
que nenhum mar banhava.
Era a Ilha da Seta,
da metade ascendente
do meu signo de Fogo, o Sagitário,
que não era de terra nem de lava
mas dum estranho calcário,
imponderável, fluido,
inconsistente.
Era a Ilha do mar inexistente,
do céu imaginário,
que julguei povoar de Sonho, de Ilusão,
e afinal povoei
de bolas de sabão.
É a Ilha da grande Solidão…

Fernanda de Castro, in «A Ilha da Grande Solidão», 1962

Primavera

Sinto-me hoje incapaz de fazer mal,
daria a um inimigo o pão e o sal.
Tenho fome de amor e de bondade,
sabem-me bem os gestos de piedade.
Quisera repartir o que me sobra
e sinto que a minha alma se desdobra,
sinto-a mais vasta, mais universal.
Era-me hoje impossível fazer mal.
Troquei o mau prazer de me vingar
pela volúpia subtil de perdoar.

Maravilhada eu sinto Deus comigo,
olho em torno de mim e não consigo
ver a miséria, o sofrimento, a lama,
porque trago no olhar aquela chama
que doira tudo quanto é feio e sujo.
Olho sem ver à minha volta e fujo
de tudo o que é sombrio e sem perdão.
Abro de par em par o coração
e deixo entrar o sol, respiro fundo.
Quisera suprimir a dor do mundo,
e a doida inquietação que nos consome.
Quisera ser o pão que mata a fome,
o sonho que adormece a pior mágoa,
quisera ser, para o sedento, a água,
e para o Poeta o verso genial.
Sinto-me hoje incapaz de fazer mal,
quisera perdoar, fazer as pazes…
…e tudo, meu amor, porque há lilases.

Fernanda de Castro, in «D’ Aquém e D’ Além Alma», 1935

Primeira Hora

O ano desfolhou-se, dia a dia,
como uma flor cortada, um girassol,
e dia a dia a sua voz calou-se
como velha cansada melodia
de velho rouxinol.

Ontem, à meia-noite, a minha rua
abriu de par em par as portas, as janelas,
e deitou fora o lixo, as coisas velhas:
cacos, farrapos, latas e panelas.

Era a Primeira Hora
do ano que chegava.
- E eu? - pensei - Que posso deitar fora?
Que poderemos todos deitar fora?

Ai, Senhor, tanta coisa!
Nem cacos, nem farrapos,
nem latas velhas nem trapos
mas tanta dor,
Senhor,
mal empregada!
Tantos gestos errados,
as pequenas traições,
os pequenos pecados.
As calúnias subtis,
as flores venenosas
da alma envenenada,
e a cicatriz
da culpa inconfessada,
e as palavras que ferem como gumes
de afiadas adagas.

Ressentimentos, azedumes
que Te fazem sangrar as Cinco Chagas.
As larvas dos ciúmes
e as cobras rastejantes
dos pensamentos impuros.
Egoísmos sem fim
e os altos muros
das torres de marfim.
Descrença,
indiferença,
despeitos recalcados,
amassados com ódio, com rancor,
e o amargo sabor
da solidão.

Ah, Senhor, nesta hora de perdão,
nesta Primeira Hora,
quantas coisas podemos deitar fora!

Fernanda de Castro, in «70 anos de Poesia», 1989

Quando te dói a alma

Quando estás descontente,
quando perdes a calma
e odeias toda a gente,
quando te dói a alma,

quando sentes, cruel,
o prazer da vingança,
quando um sabor a fel
te proíbe a esperança,

quando as larvas do tédio
te embotam os sentidos,
e o mal é sem remédio
e a ninguém dás ouvidos,

nega, recusa a dor,
abandona o deserto
das almas sem amor
e mergulha o olhar
em tudo o que está certo,
o mar, a fonte, a flor.

Fernanda de Castro in «Poesia II»

Rasga o peito

Não creias que o sofrimento,
Poeta, te cause dano:
poemas são como filhos,
não hesites, rasga o peito
como faz o pelicano.

Fernanda de Castro, in «E Eu Saudosa, Saudosa», 1973

Se tudo quanto existe

Se tudo quanto existe
é lenta evolução,
longa transformação
sem Deus e sem mistério;
se tudo no Universo tem sentido
sem o sopro divino;
se o segredo da vida, a criação,
se explica pela ciência,
e a corrente vital
é também consequência;
se a humana consciência
é simples equação...
que significa a vocação do eterno,
que quer dizer a aspiração do Céu
e o terror do Inferno?

E se acaso é o instinto a lei da vida,
se a verdade
é só necessidade
inexorável, lenta, laboriosa,

que sábia explicação
tem esta frágil, esta inútil rosa?

Fernanda de Castro «Asa no espaço», 1955

 Sei enfim o que aconteceu

(Ah! Sei enfim o que me aconteceu.
Subitamente, compreendi:
eu já morri,
porém a minha morte
ainda se esconde em mim
e não chegou ainda à superfície.
Como as estrelas mortas
que ainda brilham no céu,
assim sou eu!)

Ai, a estrela,
a minha estrela!
Como pude esquecê-la,
não esta, que está morta,
mas a outra, tão bela?!
- «Avó, quantas estrelas há no Céu?»
- «Duas, Maria da Lua:
a minha e a tua.»
- «Eu também tenho uma estrela?»
- «Tens, Maria da Lua.»
- «E qual é? Onde está?»
- «Não sei, tens de escolhê-la.»
E escolhi, escolhi a maior,
não por ser a mais bela,
mas para vê-la melhor,
a minha estrela.
era tão grande o seu fulgor
Que uma noite pensei:
«Não será ela
a Estrela de Belém,
a Estrelas dos Reis Magos?»
A minha Avó sorriu:
- «Porque não?
Cada estrela
é um caminho de luz
para Jesus.»

Andava então
a preparar-me
para a minha primeira Comunhão.
(Doce recordação de terços e novenas,
de murmúrios de rezas, de ramos de açucenas.)
O cabelo frisado,
rosas brancas na mão,
o vestido engomado,
um pássaro assustado
no coração.
O sino da Capela,
as imagens do altar,
e a alma a palpitar
como a pequena chama
duma vela.
(Igreja dos vinte anos,
também tu me viste ajoelhada
no teu altar de esperança.
Velha igreja onde fui baptizada,
e depois fui casada,
também tu me ficaste
para sempre gravada na lembrança.
E tu também,
Igreja da Saudade,
onde, no tempo morto
duma manhã de Outono,
Ele dormiu, enfim liberto, o derradeiro sono.)

Ah, não, como esquecê-lo,
esse dia irreal de Comunhão,
em que senti maior,
mais puro o coração?
Deram-me coisas lindas, das que os anjos
também têm no Céu:
Nossa Senhora vestida de azul,
um colar de coral,
um véu branco de tule,
medalhinhas de prata
e um missal.
Já mil anos passaram
desde então,
mas nada se perdeu
desse dia distante,
de glória, de vergonha e de perdão.
Irmãos, Primos, Amigos,
olhavam para mim de forma estranha,
com um misto de respeito
e de despeito
que não entendo ainda.
Respeito por me verem sossegada,
penteada,
sem nódoas no vestido
nem arranhões nas pernas,
pelos sorrisos,
pelas frases ternas
da família.
Despeito
pelos pratos de arroz-doce
com o meu nome em canela,
pela música, as flores, o incenso
da Capela,
pelas prendas que me enchiam a cama
e pelas atenções da minha Ama.
(Fosse pelo que fosse,
por isto ou por aquilo,
pelo arroz-doce,
por mimos ou desvelos,
nenhum deles me puxou pelos cabelos.)
Eram sete, os rapazes… sete lobos
em busca de cordeiro;
sete corsários dum navio-fantasma
perdido no nevoeiro;
sete piratas em busca de aventuras
no sótão às escuras;
sete cow-boys,
sete ladrões de gado;
sete soldados,
sete sheriffs, sete generais
a guerrear galinhas e pardais;
sete bandidos,
sete aventureiros
em busca de tesoiro…
sete toureiros à procura de toiro…
Nesse dia, porém, eu não fui toiro,
nem refém de soldado,
nem presa de pirata,
nem cavalo roubado.
Nesse dia feliz
eu fui apenas a menina de branco,
emocionada, que fez com devoção
a sua doce, grave, primeira Comunhão.
Eram sete, os rapazes…sanguinários
como animais da selva perseguidos,
mas só então, nesse dia de paz
e de bandeiras brancas,
eu tive medo.
Um deles era loiro,
o Príncipe, talvez,
da Bela Adormecida.
Tinha cabelos de oiro,
olhos de céu,
e a Princesa era eu.
Não tinha diademas,
nem mantos de brocado,
nem preciosas gemas…
tinha sapatos rasos,
tinha trança caída
e bibes de riscado,
mas era eu
a Bela Adormecida.
Nesse dia levou-me pela mão:
- «Vou dizer-te um segredo…» -
e foi então que tive medo.
Não entendi o que me disse…
Mostrou-me um coração
Entrelaçado com grinaldas de flores,
desenhado com tintas e com lápis de cores,
puxou-me para si e disse-me em segredo:
- «Gosto de ti.»
Foi então que tive medo,
medo e uma estranha vergonha
daquela voz desconhecida,
e da peçonha
do olhar com que me olhou
e que não era o dele.
Então rasguei,
dilacerei
o coração de tinta e de papel,
e com a ira, o fel
daquela dor sem nome,
bati, bati às cegas
até cair no chão
a soluçar. Inconsciente,
perverso ou inocente,
o Príncipe Encantado,
batido e arranhado,
foi contar.
Angustiada,
a minha Mãe olhou-me longamente
mas logo me sorriu:
- «Pateta, não foi nada.»
Ansiosa, a minha Ama,
com o sangue vermelho
a ferver-lhe nas veias,
perguntou-me, furiosa:
- «Bateu-te? Fez-te mal?
Disse-te coisas feias?»
Abanei a cabeça, disse não,
sem coragem para falar.
Então alguém disse, indignado:
- «Deviam castigá-la. É um bicho selvagem.»
Deixaram-me enfim só,
e foi então que a minha Avó
se aproximou, inquieta,
e me disse, grave e pálida:
- «Pobrezinha, é a vida…
A borboleta a sair da crisálida…»
E repetiu, com um triste olhar,
- «É a Vida,
A Bela Adormecida
que está quase a acordar…»
Nada entendi
desta música vaga,
mas, ao beijar-lhe a mão,
uma luz de perdão
curou-me enfim a chaga.
Já quase nada lembro desta imagem,
mas quem o disse então
tinha razão:
era um bicho selvagem.

Cresci,
domesticou-me a vida sem clemência,
mas como foi difícil, dolorosa,
a minha adolescência!
A minha alma era uma rosa brava.
Espinho a espinho,
rasgaram-lhe a inocência,
corromperam-lhe a essência.
No meu corpo secreto não tocaram.
Cerrei os olhos, tapei os ouvidos,
fechei à chave os meus cinco sentidos,
atravessei, sozinha e pura,
a ponte para a Vida,
para a Dor,
e só então eu aceitei o Amor.

O Amor…
Chegou, leve e inocente,
como aragem, gorjeio
ou pétala de flor,
e tudo foi milagre
em meu redor:
as cinzas deram brasas,
as pedras deram flor,
os braços deram asas.
Duas estrelas
caíram-me nos olhos.
O sol veio morar dentro de mim
e em cada vaso das janelas
eu plantei um jardim.
Mas a hora passou…
Começou a entardecer,
a anoitecer,
murchou-me o coração,
e o meu primeiro amor
desfez-se como bola de sabão.
Depois…
Depois a vida começou a sério.
Degrau após degrau
fui subindo as escadas do mistério.

Então deitei raiz,
e adubada com dor,
dolorosa e feliz,
duas vezes dei flor.

Depois…depois
a luz foi-se apagando…
a alma foi subindo,
o corpo foi baixando,
e o cavalo de fogo,
em linha recta,
lá vai com rumo ao Sol,
na direcção da Seta.

Agora já não chove…
Um raio de luar
e um Anjo de asas brancas
vieram-me buscar.
(Ou estarei a sonhar
o meu sonho de paz e de perdão,
de glória e redenção,
o mais belo de todos,
o da Festa?)

Por uma estrada azul
E entre nuvens de cores,
Eu deslizo, radiosa,
com vestidos de tule
e grinaldas de flores.
O caminho é de plumas,
o som, de harpas eólias,
o Palácio, de lua e de cristal,
o aroma, de jasmins e de magnólias.
Ondas de luz,
milhões de velas,
inúmeras estrelas,
iluminam as salas.
Harpas, liras, violinos,
sublinham em cadência
a música dos gestos
e das falas.
Há festa no Palácio
e eu deslizo apressada,
atrasaram-me as nuvens do caminho
e as pétalas de arminho
da Lua desfolhada.
Mas chego enfim,
abrem-se, enfim, as portas de cristal,
e tudo o que era dor,
e que era mal,
agora se transforma e se reduz
a música, a perfume,
a deslumbrante luz.
Amigos, Conhecidos,
acenam-me de longe.
Como estão belos, como estão felizes!
Que fizeram ao tempo, às cicatrizes
da vida mal vivida?
Ao vê-los, dir-se-ia
que andavam mascarados
com máscaras de dor,
e que, transfigurados,
só agora os seus rostos
têm a luz, a cor
que Deus lhes destinara.
Então alguém sorri-me, doce e clara
como pétala branca de luar,
 e em leves passos,
silenciosos passos,
devagar,
aproxima-se e estende-me em silêncio
os carinhosos braços.
Só então,
trémulo de esperança
o coração,
eu reconheço nesse alguém
a minha Mãe.
Mas então,
se a minha Mãe morreu
e estou a vê-la,
se a minha Mãe morreu
e posso vê-la,
é porque estou no Céu,
porque morri também.
Olho de novo em meu redor,
olho melhor,
e o Palácio de lua,
as harpas, os violinos,
os perfumes, as flores,
os vestidos antigos,
tomam novo sentido,
e reconheço então os meus amigos…
Luzia, Irene…Branca…
(Na terra, não ouvias
para ouvires melhor
as melodias
do Céu,
que é hoje teu.)
Então vejo o meu Pai que me pergunta
com a sua mesma voz
um pouco rouca,
e o seu sorriso malicioso e bom:
- «Que tens na boca?»
E, como há quarenta anos, eu respondo
falsamente confusa:
- «Bâton.
Agora é moda, toda a gente usa.»
O Tio António,
feliz e sem idade,
toca enfim à vontade
uma flauta de cana
que Deus lhe ofereceu.
A Tia Emiliana,
sem rugas e sem gelhas,
tem um leque na mão
e sobre o coração
duas rosas vermelhas.
Mais Tias, mais Amigas, mais Parentes…
A minha Bisavó,
sentada numa nuvem
entre anjos
e arcanjos,
conta a duas Meninas,
ainda há pouco chegadas,
uma história de Fadas,
e elas riem,
beijando-lhe as mãos finas.
A Ele vejo-o mal,
talvez porque a saudade
é como um nevoeiro
nos meus olhos cansados.
Faz-me, porém, sinal,
e lá vamos os dois
pelos salões doirados
do Palácio de lua e de cristal,
suspenso duma estrela.
Chego então à janela,
e sem temor
estendo os braços,
gritando aos que ficaram
lá em baixo
à minha espera:
- «Venham todos, aqui é Primavera…
Nem medos, nem cansaços,
nem angústia, nem dor,
nem culpas, nem castigos…
Venham todos, Amigos!»

(Onde estou, afinal?
Metade, aqui deitada,
a pensar no meu estranho aniversário,
o resto, a galopar
na metade cavalo do meu signo
de Sol e Fogo,
o Sagitário?)

onde estou, afinal?
Hoje, tantos de tal,
faço anos. Cem anos.

Fernanda de Castro, in «A Ilha da Grande Solidão», 1962

Solidão

Eu tinha medo à solidão. Temia
encontrar-me comigo, frente a frente,
e resignar-me a viver contente
já que viver feliz eu não podia.
Queria à minha volta muita gente,
repartia em minutos o meu dia
procurando a ilusão duma alegria
que tanto desejara inutilmente.
Mas breve compreendi que a solidão
era não ter ninguém no coração,
e buscando outro fim para os meus passos,
eu fiz da vida um canto mais profundo
e, pouco a pouco, limitei o mundo
à reduzida curva dos meus braços.

Fernanda de Castro, in «39 Poemas», 1942

Um grande amor

Um grande amor não cabe em nenhum verso,
como a vida não cabe num jardim,
como não cabe Deus no Universo
nem o meu coração dentro de mim.

A noite é mais pequena do que o luar,
e é mais vasto o perfume do que a flor.
É a onda mais alta do que o mar.
Não cabe em nenhum verso um grande amor.

Dizer em verso aquilo que se pensa,
ideia de poeta, ideia louca.
Não é bastante a frase mais extensa,
diz mais o beijo do que diz a boca.

Ninguém deve contar o seu segredo.
Versos de amor, só se os fizer assim:
como os pássaros cantam no arvoredo,
como as flores se beijam no jardim.

Que verso incomparável, infinito,
feito de sol, de misterioso brilho,
poderia dizer o que, num grito,
diz a mulher quando lhe nasce um filho?

E quando sobre nós desce a tristeza,
como desce a penumbra sobre o dia,
uma lágrima triste e sem beleza,
diz mais do que a palavra nua e fria.

Redondilha de amor... Para fazê-la,
desse-me Deus a tinta do luar,
a candeia suspensa de uma estrela
e o tinteiro vastíssimo do mar.

Fernanda de Castro, in «Jardim», 1928

Uma tardia, triste Primavera

Anda florindo, no meu corpo exausto,
uma tardia, triste Primavera,
sem delírios de pétalas, sem fausto,
antes de musgos e de folhas de hera.

Vulcão morto sem lavas, sem cratera;
fio de água, bebido hausto a hausto,
tímida pausa no devir, à espera
de não sei que alquimia, que holocausto.

Primavera de nervos, de vontade.
Ao peito, as flores roxas de saudade,
Primavera de restos, de farrapos,

de grinaldas de tempo, trepadeiras
de penas, de cuidados, de canseiras,
Primavera sem pássaros, com sapos.

Fernanda de Castro, in «Ronda das Horas Lentas», 1989

Urgente

Urgente é construir serenamente
seja o que for, choupana ou catedral,
é trabalhar a peda, o barro, a cal,
é regressar às fontes, à nascente.

É não deixar perder-se uma semente,
é arrancar as urtigas do quintal,
é fazer duma rosa o roseiral,
sem perder tempo. Agora. Já. É urgente.

Urgente é respeitar o Amigo, o Irmão,
é perdoar, se alguém pede perdão,
é repartir o trigo do celeiro.
Urgente é respirar com alegria,
ouvir cantar a rola, a cotovia,
e plantar no pinhal mais um pinheiro.

Fernanda de Castro in «Poesia II»