01 – Fernanda de Castro: uma mini-biografia,
por Mafalda Ferro.
No dia em que nasci, os meus pais discutiram por minha causa.
— Faltavam cinco para a meia-noite — afirmava perentóriamente a minha mãe.
— Era meia-noite e cinco — rectificou o meu pai. — Bem sabes que o meu relógio nunca se adianta.
Tudo isto porque nasci por volta da meia-noite, mais minuto menos minuto, conforme os diferentes relógios da casa.
Conclusão: meu pai, que se dizia ateu, decidiu que eu nascera aos cinco minutos de 9 de Dezembro. Minha mãe, católica praticante, afirmava que eu nascera nos últimos cinco minutos do dia 8, dia de Nossa Senhora da Conceição. Assim, para tudo o que é oficial, passaporte, Bilhete de Identidade, etc., nasci a 9. Para a minha família, porém, para os amigos, para a festinha de anos, para as prendas, para o arroz--doce e leite-creme polvilhados com canela, nasci a 8, e assim tem sido sempre, e assim será até ao fim.
Fernanda de Castro, em “Ao Fim da Memória”.
FICHA BIOGRÁFICA
Nome: Maria Fernanda Telles de Castro e Quadros Ferro (Lisboa, 1900 / Lisboa, 1994).
Nascimento: Lisboa, freguesia de Santa Isabel, em casa dos seus pais 9/12/1900.
Baptismo: Lisboa, Igreja Paroquial da mesma freguesia.
Pai: João Filipe das Dores Quadros (Lisboa, 1874 / Portimão, 1943).
Mãe: Ana Isaura Codina Telles de Castro da Silva e Quadros (Tavira, 1879 / Guiné, 1914).
Madrasta: Rosa Castel Branco de Lima Ramos Mendes Quadros (1890 / 1965).
Irmãos: Francisco Telles de Castro da Silva e Quadros (1902 / 1983); Manuela Telles de Castro da Silva e Quadros (1903 / 1990); João Telles de Castro da Silva e Quadros (1903 / 1990); Afonso Telles de Castro da Silva e Quadros (1910 / 1977); Maria Luísa Mendes de Quadros (1921 / –); José Manuel Mendes de Quadros (1922 / 1997); Alberto Mendes de Quadros (1927 –).
Casamento (por procuração): Rio de Janeiro / Lisboa, Igreja de Santa Isabel, 12 de Agosto de 1922. Testemunhas: Lucília Simões (actriz) e Gago Coutinho (aviador). Noivo por procuração: Augusto Cunha (cunhado e melhor amigo).
Marido: António Joaquim Tavares Ferro (Lisboa, 17 de Agosto de 1895 / Lisboa, 11 de Novembro de 1956).
Casa: Calçada dos Caetanos, n.º 6, Lisboa. Telefone: 320867.
Filhos: António Gabriel de Castro e Quadros Ferro (Lisboa, 1923 / Lisboa, 1993); Fernando Manuel Telles de Castro e Quadros Tavares Ferro (Lisboa, 1927 / Monte Estoril, 2004).
Morte: Lisboa, Rua João Pereira da Rosa (antiga Calçada dos Caetanos) n.º 6 1.º.
BIOGRAFIA
Enquanto solteira, foram muitas as casas e os locais onde residiu. Os cargos ocupados pelo pai (Oficial da Marinha de Guerra) assim o determinavam (Figueira da Foz, Cacilhas, Portimão, Lisboa, etc...).
O momento mais marcante da sua infância, vive-o na Guiné quando sua mãe morre subitamente com febre-amarela. Arrancada da cama, sem haver tempo para despedidas, embarca num navio que estava então de partida para Lisboa. Com ela, à sua responsabilidade, viaja apenas o irmão mais novo, quase um bebé (dois anos). Tinha então 13 anos.
Frequentando o liceu Maria Pia (1915) conhece Teresa Leitão de Barros de quem se torna amiga para a vida. O pai continua quase sempre ausente e quando casa com Rosa de Lima Mendes (1916), instala-se em Portimão levando com ele o filho mais novo e deixando Maria Fernanda em Lisboa a estudar, responsável, com uma empregada antiga, pelos três irmãos.
Através dos irmãos Leitão de Barros, Teresa e José, amigos e vizinhos na Travessa de Santa Quitéria, e também de Branca de Gonta Colaço, amiga e condiscípula de sua mãe e tias maternas no Convento das Salésias, começa a privar com artistas e intelectuais. Publica a sua primeira obra literária (1919) que assina ainda com o seu nome completo Maria Fernanda de Castro e Quadros, edição oferecida pelos amigos.
A partir de então, a sua obra vai sendo conhecida e premiada; 4.º lugar do Concurso Literário d'«A Capital» (20$00) com a sua peça de teatro "Alma Antiga" que assina com o pseudónimo "Alfazema". Jurados: Júlio Dantas, Eduardo Shwalbach, Eduardo Brazão, Bento Mantua e Álvaro Lima; 1.º Prémio do concurso de originais do Teatro Nacional com a peça “Náufragos”, escrita em colaboração com Teresa Leitão de Barros.
Continua a escrever e a publicar, vindo a destacar-se em diversos géneros literários como Poesia, Memórias, Conto; Romance, Literatura infanto-juvenil, Epistolografia, Crónica, Teatro, Jornalismo, Tradução.
Com 20 anos, assiste da Liga Naval Portuguesa a uma conferência sobre Colette proferida por um jornalista que não conhece. O seu nome é António Ferro e a empatia, feita de provocação, é imediata. No mesmo ano, a convite de Joaquim Manso, seu antigo professor de português, director do «Diário de Lisboa», colabora nesse jornal desde o primeiro número publicado a 7 de Abril de 1921. António Ferro, com quem entretanto iniciara namoro, é outro dos colaboradores assim como amigos como Virgínia Victorino e Tomás Ribeiro Colaço.
Com a Companhia Erico Braga e Lucília Simões, António Ferro parte para o Brasil para apresentar a sua peça Mar Alto e realizar uma série de conferências também modernistas. Convidado a prolongar a estadia, acede porque depois da sua noiva aceitar casar por procuração e ir ao seu encontro. Casam tendo como testemunhas Lucília Simões e Gago Coutinho. Em Lisboa, Augusto Cunha representa o noivo.
No Rio de Janeiro, acompanha o marido em conferências e realiza recitais de poesia portuguesa. O jovem casal convive com os modernistas brasileiros e vive ainda no rasto da famosa Semana de Arte Moderna de São Paulo. Regressam a Lisboa em Maio de 1923, instalando-se pouco depois na casa da Calçada dos Caetanos onde viriam sempre a residir. António Ferro assume funções no «Diário de Notícias», iniciando a sua carreira como enviado especial do jornal através da Europa.
Têm dois filhos: António Gabriel (1923), o futuro escritor António Quadros e Fernando Manuel (1927), tradutor e editor no estrangeiro.
Em 1931, começa a organizar quase sem recursos um grande empreendimento social: Os Parques Infantis destinados às crianças necessitadas dos bairros populares de Lisboa. A Associação Nacional dos Parques Infantis cuja presidência assume conta na direcção com Maria Luísa Cottinelli Telmo, Maria José Burnay de Gusmão, Emília de Melo Osório e Júlia de Melo Breyner. Imprime nos Parques um estilo bem diferente de outras obras do género: casas bem decoradas, alegres e espaçosas, bibes coloridos, ensino da pintura, da música, bailado, alimentação e escola primária, enfermeira permanente e visita médica semanal. O arquitecto é Jorge Segurado, a decoração é de Sarah Affonso e a vigilante é Paula Affonso, irmã de Sarah. Uma das directoras é outra grande amiga, ainda prima, Margarida Saavedra. O principal mecenas é Ricardo Espírito Santo e o padrinho é Luís Pastor de Macedo. Inaugura sequencialmente Parques em S. Pedro de Alcântara, Campo Grande, Tapada das Necessidades e Santa Catarina e, ainda, a Colmeia concebida como uma escola de artes e ofícios em Alcântara. Em Dezembro de 1957, funda o Círculo de Cultura Infantil «Pássaro Azul» a fim de criar nas crianças o gosto pela arte nos seus múltiplos aspectos. Nesse âmbito, nasce o grupo de bailado O Pássaro Azul que reúne cerca de 100 crianças dos Parques. Estes Parques Infantis chegaram a ser frequentados por 750 crianças de ambos os sexos e por lá passaram e foram educadas milhares de crianças. 40 anos depois, já cansada, com 73 anos, entrega os Parques Infantis à Santa Casa da Misericórdia. Estão até hoje activos os de Santa Catarina e das Necessidades onde está instalada a Escola Fernanda de Castro.
Vai reunindo ao longo da vida um leque notável de amigos dos quais que, de tão extenso, nos permite apenas referir alguns como Mircea Eliade, Miguel de Unamuno, Maurice Maeterlink, Oswald de Andrade, Tarcila do Amaral, Colette, Cecília Meirelles, Gabriela Mistral, Ofélia Marques, Sarah Affonso, Inês Guerreiro, Heloísa Cid, Elvira de Freitas, Edith Arvelos, Virgínia Victorino, Tomás Ribeiro Colaço e as suas irmãs, Raquel e Mámia Roque Gameiro, Fernando Dacosta, Natércia Freire, Maria Germana Tânger, Luzia, Natália Correia, David Mourão-Ferreira, José Carlos Ary dos Santos, Domingos Monteiro, Carmen Dolores, Nina Marques Pereira, Águeda Sena.
Continua a ser galardoada tendo recebido em 1946, pelo romance biográfico “Maria da Lua”, o Prémio Ricardo Malheiros da Academia de Ciências de Lisboa, entregue pela primeira vez a uma mulher e, em 1948, o 2.º Prémio das «Casas do Povo», pelo romance “Sorte”.
Em 1950, quando o marido toma posse em Berna como Ministro de Portugal, acompanha-o, alternando o tempo entre Lisboa e Berna. Em Lisboa, continua a gerir os Parques Infantis. Durante esse período, até 1954, escreve e publica um livro de poemas que intitula Exílio que lhe vale uma apreciação de Teixeira de Pascoaes: O livro de V. Ex.ª contém o que há de eterno na Poesia e desde já figura entre as mais belas obras poéticas da nossa Literatura!; cria e dirige a revista Bem Viver com a colaboração gráfica de Inês Guerreiro. Cada número é dedicado a um tema diferente: A Casa; A Criança; A Moda; A Culinária; Interiores e Enfeites; É Assim a Nossa Gente; Beleza e Higiene; A Vida do Espírito. Fernanda de Castro é a redactora da maioria dos textos, mas colaboram também escritores ou artistas como Anthero de Figueiredo, Azinhal Abelho, António Ferro, Abel Viana, António Quadros, Heloísa Cid, Natércia Freire, Maria da Graça Freire, Manuel Couto Viana, Francisco Lage, Álvaro Ribeiro, Celestino Marques Pereira, José Rocha, Paulo Ferreira, Cottinelli Telmo, entre outros.
António Ferro é, então, transferido para Roma como Ministro de Portugal e a sua vida repete-se, alternando agora Roma com Lisboa. Entretanto, em Portugal, faz sociedade (até 1959) com Mariana Avilez de um hotel em Cascais, o «Solar de D. Carlos».
Entretanto, por motivos de saúde, o marido desloca-se a Lisboa e submete-se a uma intervenção cirúrgica no Hospital de S. José, vindo a morrer poucos dias depois devido a complicações no período pós-operatório, no dia 11 de Novembro de 1956.
O desgosto é intenso, afectando gravemente o seu estado psicológico. Seu filho António, preocupado muda-se com a família de Cascais para uma casa que aluga também na Calçada dos Caetanos, para poder estar mais presente na vida da mãe.
Durante a viuvez, experimenta graves dificuldades financeiras já que o único ordenado do casal era recebido pelo marido; Salazar convida-a a presidir à Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores que integrava desde o inicio o seu amigo Monsenhor Moreira das Neves. O cargo não lhe agrada mas é remunerado. Em 1963, exprime a vontade de se demitir. Contratada pela CML, organiza nesse período festas populares e feiras de artesanato no Jardim da Estrela.
Em homenagem ao marido, cria o Teatro de Câmara António Ferro (1960), rodeando-se de poetas, encenadores, actores e artistas, como José Carlos Ary dos Santos, Diogo Ary dos Santos, Norberto Barroca, Alexandre Ribeirinho, Maria Hermínia Monteiro, Pedro d’Orey, Helder Gaspar, Vasco Wellenkamp, Germana Tânger, Eurico Lisboa, António Quadros, Inês Guerreiro, Heloísa Cid, Edith Arvelos etc... Antes de se apresentar nos palcos, o Teatro de Câmara António Ferro actua no salão da sua casa.
A 3 de Setembro de 1962, empreende algo que há muito desejava, uma viagem a Moçambique. Dando entrevistas, proferindo palestras e recitais de poesia na rádio ou presenciais em Lourenço Marques, Beira, Nampula, Ilha de Moçambique, Porto Amélia, Quelimane, João Belo, Xai-xai, Bilane, Zevale, Praia das Chocas, Gorongosa e Gura, convive com irmãos e sobrinhos que aí residem. Visita vários locais de Moçambique, entre os quais a Gorongosa que lhe virá a inspirar um romance de aventuras para a juventude. Regressa a Lisboa dois meses depois.
Em 1962, devido a sérios e dolorosos problemas nos ossos, por recomendação médica, a sua vida transforma-se. Embora continue a acordar cedo, só se levanta rente à hora do almoço e, na cama, recostada, escreve muito. Quando se sente melhor, instala-se na ilha de Faro, Algarve, em casa da sua amiga de infância Maria Luísa Garin e, nesse período, reúne em longos passeios pela praia uma extraordinária colecção de conchas. Abre um restaurante em Faro, adaptando um velho palácio da cidade. O Al-Faghar (amanhecer na primitiva palavra árabe que resulta na palavra algarve) é considerado o melhor restaurante da capital algarvia, servindo comida típica portuguesa com exposição e venda permanente de artesanato português, referido («Povo algarvio», Tavira, 29-5-1966) como o «sexto» Museu de Faro.
Pouco depois, aluga ao ano em Alporchinhos (Armação de Pera) uma casa no meio do campo, perto de umas arribas, sem água corrente nem iluminação mas que tinha a mais-valia de, descendo as referidas arribas, se alcançar uma praia apenas utilizada pela própria ou pelos seus convidados. Ao serão, à luz da vela, joga-se crapôt, e outros jogos de salão, diz-se poesia, toca-se e canta-se, representa-se...
A fim de promover o turismo algarvio, organiza então e no ano seguinte, a convite do SNI, dois Festivais do Algarve com recitais de poesia árabe e portuguesa; representação de peças de teatro de sua autoria e de José Carlos Ary dos Santos, com António Manuel Couto Viana, João Perry e o próprio Ary dos Santos nos principais papéis; projecção de filmes; actuação de ranchos folclóricos e de outros bailados dançados pelo «Verde-Gaio» sob a direcção de Margarida de Abreu e Fernando Lima; espectáculos por Amália Rodrigues e pelo grupo de poesia João d’Ávila, incluindo Isabel Ruth, Manuela de Freitas e Lídia Franco. As diversas manifestações destes dois Festivais do Algarve realizaram-se em Silves, Lagos, Portimão, Praia da Rocha, Armação de Pera, Tavira, Faro e Vila Real de Santo António.
Ainda no Algarve, aceita a proposta para decorar os primeiros 40 apartamentos de Vilamoura. Neste projecto, é apoiada por Inês Guerreiro e sua irmã Manuela Novais e, também, por uma das suas sobrinhas, Ana Maria Quadros, filha do seu irmão Afonso de quem cuidara com 13 anos na viagem da Guiné para Portugal.
Fruto dos ensinamentos de uma tia materna, é profundamente conhecedora de plantas, reconhecendo-as inclusive de olhos vendados. Em 1964, publica A Vida Maravilhosa das Plantas, livro de introdução à botânica onde, além dos seus conhecimentos, se reconhece o seu lirismo e talento para contar histórias. Foi devido a esse livro que os netos e muitas outras crianças aprenderam sem esforço a disciplina. A sua relação com a natureza é fortíssima.
No dia 9 de Julho de 1965, a casa da Calçada dos Caetanos é assolada por um terrível incêndio que a destrói parcialmente bem como a várias peças bibliográficas e artísticas. Regressa então a Lisboa. É preciso reconstruir!
Em 1966, publica o maior poema europeu consagrado ao continente negro: África Raiz que dedica À terra de Bolama, em cujos braços repousa minha mãe. José Carlos Ary dos Santos classifica-o como O Poema do Século e Ferreira de Castro escreve-lhe:
Ainda tenho nos ouvidos o ritmo excelso dos seus versos, nos olhos as figuras que eles evocam, a luz e a cor da terra forte, leda e mártir que eles habitam. É um poema extraordinário, o seu. Que força expressional e consecutiva, que fôlego sem desfalecimento, que altura sem vertigens, que beleza sem interrupções! Você tem a vontade dos vinte anos, o ímpeto já consciente dos trinta e a mestria que se adquire depois…
Em 1969, ano em que recebe o Prémio Nacional de Poesia, Alfredo Guisado refere:
Seguiu imperturbável pelos caminhos que, desde o princípio, escolheu, não se preocupando com os ambientes modernizantes que cercaram e conquistaram elevado número de poetas, nem se importando com o que ocupava o primeiro plano no começo da sua jornada, onde ainda o velho lirismo teimava em querer modificar-se no desejo de vencer mas não o conseguindo. Afasta-se, quer do que havia de velho, quer do novo, para consentir apenas no que ela própria tinha imaginado…
Em 1970, compra por 20.000$00 uma casa antiga, em péssimo estado, dentro das muralhas do Castelo de Marvão, que durante quase 4 anos restaura, renova e decora.
Em Abril de 1974, a revolução debilita-a, cansada e magoada por alguns silêncios, algumas reservas, alguns amigos, assiste à desordem do seu Portugal apreensiva mas confiante apesar de tudo. Confessa-se desesperadamente portuguesa e afirma que nada deste mundo a faria mudar de pátria ou de nacionalidade. Escreve Onde Estais Lusitanos? e Ó Meu País, verdadeiros hinos de exortação aos portugueses.
Penalizada pela crítica, ignorada pela imprensa, temporariamente esquecida pelos leitores, não desanima. Dois dos seus grandes amigos, Natália Correia e Ary dos Santos, interrompem a habitual convivência para abraçarem ideologias que não partilha. Não se zangam exactamente, afastam-se, vindo a reencontrar-se mais tarde.
A partir desse ano, passa alguns dos melhores períodos da sua vida na casa de Marvão na companhia dos netos mais novos Vicente e Stephanie e de queridos amigos como Inês Guerreiro, Margarida Homem de Sousa, Maria Germana Tânger, Mané, Edith Arvelos, Heloísa Cid, Alexandre Ribeirinho, Elvira de Freitas e sua mãe, reatando as tertúlias de que tanto gosta.
Os problemas de ossos, agravados não só pelas condições climatéricas de Marvão como pelas constantes e demoradas viagens de ida e volta a Lisboa, obrigam-na, em Julho de 1980, a vender a casa de Marvão e a instalar-se, de novo, por longos períodos, no Algarve, desta vez na Villa Rosa de Lima (Alvor, Portimão), numa casa cedida pelo irmão Alberto que a autoriza a redecorar a seu gosto. Também aí, recebe amigos e familiares durante largas temporadas.
No dia 29 de Março de 1982, sofre um acidente vascular-cerebral e perde para sempre a mobilidade. A sua visão deteriora-se. Ocupa a imobilidade forçada para escrever, dar explicações a alguns bisnetos, a organizar serões e tardes com amigos, mantendo sempre uma vida intelectual activa. No ano seguinte, faz as pazes com José Carlos Ary dos Santos, acabando de vez com um afastamento que tanto os magoava. Reatam o convívio presencial, afectivo e intelectual.
Passa 12 anos na cama. Em sua casa, vive a poetisa Edith Arvelos, a enfermeira Zulmira com os filhos que vai mandando vir de Cabo Verde e, durante alguns anos, o seu neto António com a mulher e os 3 filhos.
São tantas e tão variadas as pessoas que a visitam que só está sozinha quando quer. Inicia em casa um ciclo de encontros culturais que intitula «Chá e simpatia». Entre os visitantes estão filhos, noras, irmãos, sobrinhos, netos e bisnetos e, ainda, Maria Luísa Garin, Margarida Homem de Sousa, Inês Guerreiro, Amália Rodrigues, Manuela Novaes, Mané Lima de Carvalho, Maria Germana Tânger, Heloísa Cid, Eugénia Aurora, Teresa Mayer, Elvira de Freitas, Barbara Benini, Fernando Dacosta e, ainda, um naipe variado de artistas, estudantes e jornalistas que a procuram para a conhecer e trocar ideias. Amália oferece-lhe um gira-discos para poder sempre ouvir música e os seus fados.
No seu quarto onde manda colocar um piano, um conjunto de sofás e as suas plantas, toca-se piano ou guitarra, joga-se Canasta e «Trivial», conta-se histórias, canta-se, diz-se poesia, e todos se disponibilizam a escrever o que vai ditando, seja as “Memórias”, o seu último romance “Tudo é Princípio” ou “Cartas Para Além do Tempo”
Refere Salazar, sem rodeios: Para mim, ele era o homem que acabara com as revoluções, com a desordem, com os assaltos às mercearias, com a propaganda do bacalhau a pataco, o homem que liquidara a dívida externa, que valorizara o escudo, que conseguira que erguêssemos a cabeça, com orgulho, onde quer que estivéssemos.
Nas férias, apesar de acamada, faz-se transportar para casas que vai alugando perto das de seu filho António, em Cascais ou Praia das Maçãs... É num desses períodos que, em 1991, a jornalista Manuela Gonzaga a entrevista, descrevendo a admiração que lhe causa a poetisa:
A sua memória prodigiosa leva-nos através do tempo e do espaço e a sua força é muito mais forte do que todas as tragédias ou todas as misérias, porque Fernanda de Castro é livre na prisão do seu corpo e o seu olhar continua lúcido, compassivo e luminoso, através dos véus da cegueira.
[...]
Acredito em Deus por fé, por intuição e por instinto. Deus para mim é tudo o que me torna melhora o estado de extase que conduz à poesia. Para a minha vida, para a minha poesia, tive sempre liberdade que chegasse, aliás, a verdadeira liberdade, a única que me interessa, está em mim, ninguém ma pode dar ou tirar.
De longe, vai-se despedindo com tristeza dos muitos que haviam povoado e enriquecido a sua vida mas nada se compara com o profundo sofrimento sofrido, em Março de 1993, com a morte do seu filho António, amigo, cúmplice, alma irmã, que até adoecer a visitava diariamente, lhe revia os livros, tratava das suas publicações, lhe lia outros autores. Desse desgosto, jamais recupera. Quem a conhecia, sabe bem que foi nesse dia, só nesse dia, que se começou a recolher dentro de si, a perder o interesse pela vida.
Fernanda de Castro morre de morte natural no dia 19 de Dezembro de 1994. Vai a enterrar no cemitério do Alto de São João onde se encontra já o seu marido e o filho mais velho. No entanto, ao contrário deles que descansam no jazigo de família, por sua vontade expressa, é enterrada na terra em contacto com a natureza.
Alguns dos retratos de Fernanda de Castro por Anita Malfati (1922), Tarsila do Amaral (1922), Sarah Affonso (1928), Eduardo Malta, Inês Guerreiro (1964) e Luís Guimarães (1993).
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