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Fundação António Quadros
Biografia Imprimir e-mail

 Autores 
Biografia
1895 - 1916
1917 - 1923
1924 - 1931
1932 - 1938
1939 - 1944
1945 - 1949
1950 - 1956
1957 - 1998

1917-1923
António Ferro profere no Salão Olímpia, na tarde de 1 de Junho, a conferência As Grandes Trágicas do Silêncio. Dedicada às três maiores artistas italianas do cinema mudo, Francesca Bertini,  Pina Menichelli e Lydia Borelli, é a sua primeira conferência e  também um marco histórico:  a primeira palestra pronunciada em Portugal sobre cinema. É publicada no mesmo ano, em edição de autor.  

Mas a transferência do seu discurso urgente, criativo e exaltado para a escrita não o poupou à crítica dos mais convencionais; pagava o preço de um estilo à frente da sua época, demasiado arrojado e provocatório. Escreveria sobre este livro um crítico não identificado n’A Capital (5.6.1917): «Foi muito aplaudido. Nós só desejamos que esses aplausos o tivessem encorajado a novos trabalhos desse género, mas em que não transpareça tanto a pretensão da originalidade exagerada e escandalosa, porque se, desta vez, quase se salvou, em outras pode perder o equilíbrio e cair no disparate.» Mas, se uns o depreciavam, outros aplaudiam-no, reconhecendo nele qualidades excepcionais. Alfredo de Carvalho comenta no diário A Luta (19-1-1919): «António Ferro, levantando as imagens das 3 actrizes, ferindo-as com a luz jorrante das suas frases, revela-se um prosador de vastos recurso e um impressionista pouco vulgar.».

Lembramos que, à data, o autor contava apenas 22 anos.

António Ferro continua a frequentar a Faculdade de Direito de Lisboa, onde é contemporâneo de Augusto Cunha, Azeredo Perdigão e Bustorff Silva.  

Em 1918 publica O Ritmo da Paisagem, palavras para um poema sinfónico do maestro Venceslau Pinto. A crítica acolhe-o sem indulgências, e António Ferro é «pateado» por uma opinião ferozmente ortodoxa, como a de Mário Sampaio Ribeiro, na Ordem (22.1.1918): «A súmula do incompreensível libreto do Sr. Ferro – incompreensível não só pelas ideias como também pela péssima sintaxe.»

As opiniões a seu respeito dividem-se, mas não é ignorado.   

Publicamente admirador de Sidónio Pais, por quem se deixa inflamar desde o primeiro momento em que o avista, parte para Angola na categoria de oficial miliciano, onde é ajudante do governador-geral, o comandante Filomeno da Câmara, colaborador e amigo de Sidónio; assim, reconfirmando em Filomeno a ideia de chefe que sempre o galvanizara, e reconhecendo-lhe a mesma vontade renovadora, firma com ele uma sólida amizade que culmina com a sua nomeação, aos 23 anos, para Secretário-Geral do governo da província de Angola, de onde segue à distância a acção de Sidónio e onde recebe a perturbadora notícia do seu assassinato.

Filomeno da Câmara, a quem fora apresentado por um amigo comum, Alberto Osório de Castro, escreveria sobre ele: «Poucos meses durou a aventura, os bastantes, ainda assim, para cimentarem a nossa amizade e para exercerem uma influência decisiva na carreira literária do moço poeta que, até ali, não encontrava saída do labirinto das mesas do café Martinho onde bebia, com um café detestável, uma inspiração ainda mais detestável».  

Mas não seria esta comissão em África, nem tão-pouco o seu posto precoce,  que o impediriam de seguir o seu caminho.  A amizade com Filomeno da Câmara não o fechara em si ou no funcionalismo para que fora designado; antes lhe dera o impulso que procurava para perseguir os seus ideais.

Regressando a Lisboa, dedica-se de alma e coração ao jornalismo, paixão que, mais tarde, o leva a abandonar os estudos de Direito.

Neste ano, a convite de João Tamagnini, toma a direcção de O Jornal, órgão do partido republicano conservador, onde um conjunto de 20 artigos já indicia o seu gosto por análises políticas.

Em 1920 é  redactor de O Século, sendo nesta época que publica o livro de poemas Árvore de Natal. Mas é a Teoria da Indiferença, do mesmo ano, escrita aos 25 anos e dedicada «À minha geração para que me deixe só», que o lança como escritor, provocando escândalo alguns dos seus paradoxos e observações ousadas como estas:
 
«Beijar de joelhos um corpo de mulher é ser cristão.»

Ou:

«Na mulher de hoje, como na arte de hoje, o corpo é o simples pretexto do vestido.»

Ou ainda:  

«Sei que Deus existe, porque já ouvi todas as sinfonias de Beethoven».

É neste livro que António Ferro escreve, no último aforismo: «Gostaria que a minha ‘Teoria da Indiferença’ fosse recebida com indiferença. O público ter-me-ia compreendido.»

O título, a dedicatória e o texto são provocatórios, e a crítica, uma vez mais, crispa-se com o autor: Artur Lopes, em A Opinião (30.3.1920), tenta reduzir a Teoria a este ponto: «Uma boa meia hora de leve e graciosa ironia.» Ou J. d’Alpains, em A República (1.4.1920): «O seu novo livro é uma crise de nervos, um cartaz anunciador que o artista compôs para si e para o público. Para satisfazer o autor pouco diremos dele, também não queremos deixar ao público a impressão dolorosa de que ele nos pagou para dizer bem…» Mas já João Ameal, por exemplo, no Primeiro de Janeiro (4.5.1920), na sua coluna «A Semana de Lisboa», vai mais longe na interpretação da sua psicologia literária: «Nesse ponto (a coerência da sua incoerência) este escritor é prodigioso, porque se renova admiravelmente, exibindo-nos sempre, na arrogância do seu narcisismo - que é também a consciência da sua superioridade - uma ‘cambrure’ inédita de espírito, num desdobrar incessante de palavras cromadas, esbeltas, melódicas, belas, sobretudo pelo estrídulo nervosismo do seu paradoxo»

A verdade é que, bem ou mal, numa idade em que estava longe de ser a figura pública em que se viria a tornar, já se falava de António Ferro sem indiferença.

Em 1920, realiza a sua primeira reportagem internacional de grande estilo, deslocando-se a Fiume para admirar pessoalmente a heroicidade de uma aventura que o empolga. Fiume, cidade situada no Adriático, colocada então no extremo limite do Império Austro-Húngaro, e que, pela sua especificidade, se achava muito mais ligada à Itália do que ao Império a que historicamente pertencia, é libertada pelo poeta Gabriel d’Annunzio que, numa manifestação onde se sente vibrar o espírito do movimento italiano futurista, avança sobre a cidade com meia dúzia de bravos voluntários, expulsa as forças aliadas, instala-se no Palácio do Governo e proclama Fiume cidade livre.

A 6 de Novembro profere, na Société Amicale Franco-Portugaise, a tão ousada e polémica conferência sobre Colette: «Em Portugal, Colette não seria possível. Todos os escrevinhadores, todos os aparos sujos da minha terra cairiam sobre ela acusando-a de imoral, de fútil, de extravagante!»

Em 1921, com capa de António Soares, publica Colette, Willy, Colette, que inclui a famosa conferência, precedida de um prólogo onde conta a sua visita em Paris à casa da célebre escritora francesa.

No auge da sua afirmação modernista e mesmo futurista, publica a perturbadora Leviana, que classifica como novela em fragmentos, confiando novamente a ilustração a António Soares e reincidindo na provocação:
 
«Que queres tu que eu faça das rosas que me mandaste? Posso esconder uma nos seios. As outras, porém, deito-as fora. Não tenho mais solitários…»  

Ou:

«Estreei hoje um vestido. Se o quiseres ver, estará amanhã exposto, toda a tarde, na matinée do Olimpia…»

E, na linha do Ultimatum, de Álvaro de Campos, e do Ultimatum Futurista, de Almada Negreiros, publica ainda o manifesto Nós, que mais tarde constituirá a contribuição portuguesa para o modernismo brasileiro, ao ser incluído na Klaxon (nº2), órgão da Semana de Arte Moderna, de São Paulo.

Considerado um dos poucos poetas futuristas portugueses, António Ferro recruta toda a sua coerência para esclarecer: Eu, que tenho demasiado amor à minha época para ser futurista, admiro os futuristos, admiro Marinetti, admiro todos aqueles que fogem à rotina, todos os criadores, todos os homens que plagiam Deus…

Em 1922, publica Gabriel d’Annunzio e Eu, reunindo as reportagens, entrevistas e conversas com o grande poeta italiano, por ocasião do espisódio de  Fiume.  

É crítico teatral do Diário de Lisboa e director da Ilustração Portuguesa, magazine ilustrado que durante duas décadas acompanhou a evolução da sociedade portuguesa, constituindo hoje um retrato delicioso dos costumes portugueses daquela época.

Convidando uma verdadeira plêiade de artistas e escritores modernos como Bernardo Marques, Jorge Barradas, Almada Negreiros, Cotinelli Telmo, Milly Possoz, Diogo de Macedo, Stuart Carvalhais, António Soares, José Pacheco, Eduardo Viana, Francisco Franco e Henrique Franco, entre outros, aproveita para avançar com a sua campanha de modernidade.  

Em Maio de 1922, dez meses passados, António Ferro parte para o Brasil, confiando a direcção provisória da Ilustração a João Ameal que, até ao fim do mês de Junho, respeitará a vocação da revista. Porém, a 1 de Julho, uma outra direcção resolve, de um dia para o outro, suprimir todos os colaboradores modernos, pelo que a revista deixa a pouco e pouco de se vender. Perante os resultados, a nova direcção vê-se obrigada, num ardiloso editorial, a arrepiar caminho para recuperar os leitores.    

Neste período, escreve a peça Mar Alto, que a Companhia de Lucília Simões e Erico Braga leva ao Brasil na sua digressão. Os dois actores convidam-no a acompanhá-los e a realizar, no Brasil, uma série de conferências.

No Brasil, casa por procuração com a poetisa Fernanda de Castro, também colaboradora do Diário de Lisboa, que logo a seguir se reúne a ele no Rio de Janeiro. Como testemunhas de procuração figuram Lucília Simões, e, pasme-se, o Almirante Gago Coutinho, que acabava de realizar a primeira travessia aérea do Atlântico Sul.

Mar Alto é estreado a 18 de Novembro em São Paulo, no Teatro Sant’Ana, com Lucília Simões no papel de Madalena, Erico Braga no de Luís, e Georgina Cordeiro no de José. O próprio António Ferro desempenha aqui o papel da personagem Henrique. No Rio de Janeiro, a peça é representada no Teatro Lírico, no dia 16 de Dezembro de 1922, encarregando-se do papel de Henrique o actor Mário Santos.

Profere em São Paulo as suas conferências A Idade do Jazz-Band e A Arte de Bem Morrer, fazendo nesta última «o elogio da morte», e narrando, com enfática admiração, alguns desfechos trágicos e redentores de personalidades tão díspares como a de S. Francisco de Assis, Maria Antonieta, Mata-Hari, os Távoras, D. João II ou D. Sebastião, entre muitas. Ambas as conferências são acompanhadas de recitais de poesia por Fernanda de Castro.   

Prossegue a digressão de conferências no Brasil, não só em São Paulo e no Rio, mas também na Baía, Recife, Santos, Ribeirão Preto, Belo Horizonte, Campinas e Juiz de Fora.

Como representante do modernismo português, é saudado no Brasil por Menotti del Picchia, Graça Aranha, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho e outros. José Lins do Rego e Carlos Drummond de Andrade dedicam-lhe artigos entusiásticos.

Em edição brasileira, publica Batalha de Flores, um livro de crónicas, com capa de António Soares, dedicado a sua mulher: «A Maria Fernanda, a flor mais linda que me coube na batalha.»  

O casal regressa a Lisboa.  

A 10 de Julho, Mar Alto estreia-se em Lisboa, no Teatro de São Carlos, para escândalo nacional, e o autor enfrenta o público subindo ao palco para homenagear o desempenho de Lucília Simões e de Erico Braga. A peça é proibida no dia seguinte pelo Governador Civil de Lisboa, Major Viriato Lobo, o que origina um protesto imediato por parte dos intelectuais portugueses, dirigido ao presidente do Conselho e ao ministro do Interior, manifestando o seu repúdio pela interdição da peça e recusando-se a «reconhecer à autoridade policial competência para aquilatar da moralidade ou imoralidade de uma obra literária». O protesto é assinado por Raúl Brandão, António Sérgio, Fernando Pessoa, Robles Monteiro, Raul Poença, Aquilino Ribeiro, Jaime Cortesão, Alfredo Cortez, João de Barros, Mário Saa, Augusto de Santa Rita, Leal da Câmara, José Pacheco, Américo Durão e Luís de Montalvor, entre outros.   

A 9 de Agosto, é nomeada uma nova comissão de censura teatral e a peça  é novamente autorizada, embora tarde: a Companhia já encerrara a sua temporada teatral.

Entretanto, a 14 de Julho, nasce o primeiro filho do casal, António Gabriel de Quadros Ferro, o futuro escritor António Quadros.

António Ferro integra o quadro redactorial do Diário de Notícias, onde iniciará uma carreira de grande repórter internacional.