A Verdade sobre a “Mensagem”
Um dos muitos mitos pessoanos criados por João Gaspar Simões na sua Vida e Obra de Fernando Pessoa (1950) e que ainda hoje perduram, tornados lugares-comuns acriticamente repetidos por sucessivas gerações de estudiosos pessoanos, é o do “prémio de consolação” atribuído em 1934 à Mensagem pelo júri dos Prémios Literários do Secretariado da Propaganda Nacional (S.P.N.).
É esse episódio de que me vou ocupar, propondo não uma verdade “à la Gaspar Simões”, mas uma tentativa de aproximação à verdade do que realmente se terá passado.
No entanto, como se verá, embora seja evidente que a Mensagem não recebeu um “prémio de consolação” humilhante, persistem no processo alguns aspectos pouco claros (para não dizer misteriosos) que não encontram fácil explicação.
Em nota publicada nos jornais de 29 de Novembro de 1933, o Secretariado da Propaganda Nacional, dirigido por António Ferro, anunciava a criação de cinco Prémios Literários – Prémio Eça de Queiroz (Romance), Prémio Alexandre Herculano (História), Prémio Antero de Quental (Poesia), Prémio Ramalho Ortigão (Ensaio) e Prémio António Enes (Jornalismo), destinados a que “a Política do Espírito seja, em Portugal, uma realidade, e para que a nossa atmosfera intelectual se anime de novos estímulos e de novos motivos de expansão (...)”.
O regulamento do concurso punha condições à índole das obras que seriam admitidas. Falava-se em servir “uma intenção amplamente construtiva” (para o Romance), em “firme critério patriótico”(para a História), em “inspiração bem portuguesa e, mesmo, de preferência, um alto sentido de exaltação nacionalista” (para a Poesia), em “espírito nacional e renovador” (para o Ensaio) e, finalmente, em assunto de largo alcance nacional” (para o Jornalismo).
O Júri do Prémio Antero de Quental seria constituído por “um poeta de grande nome nacional, um poeta da nova geração literária e dois críticos literário em exercício na Imprensa de Lisboa”.
As condições do concurso provocaram uma reacção imediata da revista Presença, em cujo número 39 (o mesmo em que veio publicada a “Tabacaria”, de Álvaro de Campos), Albano Nogueira veio severamente contestá-las, em nome dos “direitos do Espírito e a inalienável liberdade do Artista”. Escreve o articulista: “Seria por todos os títulos louvável tal iniciativa se, logo de princípio, os seus possíveis bons resultados não estivessem seriamente comprometidos pelo critério adoptado”, porquanto tais bases não só tendiam a reduzir o artista, a “servidor de qualquer doutrina ou seita” ou a “panfletário”, como iriam certamente viciar o julgamento dos méritos das obras.1
As condições restritivas do Regulamento não preocuparam excessivamente Pessoa, que resolveu concorrer ao Prémio Antero de Quental com a Mensagem. Como disse a Casais Monteiro, em carta de 13 de Janeiro de 1935, “Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o publicasse: acedi”.2
Na mesma carta, Pessoa esclarece: “Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de “Mensagem” figurava em número um”. Tipicamente, Pessoa dizia ao seu correspondente o que para ele, naquele momento, era “verdade” – mas não o tinha sido três anos antes, quando dava conta a João Gaspar Simões dos seus planos editoriais.
De facto, em carta de 28 de Julho de 1932, dizia a Gaspar Simões: “Primitivamente, era minha intenção começar as minhas publicações por três livros, na ordem seguinte: (1) Portugal, que é um livro pequeno de poemas (tem 41 ao todo), de que o Mar Português (Contemporanea 4) é a segunda parte (...)”. Seguir-se-iam o “Livro do Desassossego”, os “Poemas Completos” de Alberto Caeiro e, mais tarde, o “Cancioneiro” e a série das “Ficções do Interlúdio” (com a poesia dos heterónimos). Mais adiante, Pessoa resume: “A intenção, possivelmente provisória, em que estou agora é de publicar, sendo possível este ano, ou na passagem dele para o outro, o Portugal e o Cancioneiro. O primeiro está quase pronto e é livro que tem possibilidades de êxito que nenhum dos outros tem. O segundo está pronto: basta escolher e colocar”.3
Tais como a informações a Casais Monteiro, estas constituíam a “verdade” do momento em que Pessoa escrevia. O livro “Portugal” - a futura Mensagem - não estava “quase pronto” em 1932. Só o viria a estar em 1934, quando, com vista à iminente publicação para efeitos do concurso do S.P.N., Pessoa escreveu os últimos dez poemas que integrou na versão final, contendo, não os 41 poemas previstos em 1932, mas os 44 que constituem a obra entregue na tipografia. Quanto ao “Cancioneiro”, estava, em 1932, muito longe de acabado (ou até mesmo de começado). Em carta a Casais Monteiro datada de 20 de Janeiro de 1935 – dois anos e meio passados sobre as informações dadas a Gaspar Simões – Pessoa informa que está em vias de publicar “o livro grande em que congregue a vasta expressão autónima de Fernando Pessoa. Salvo qualquer complicação imprevista, deverei ter esse livro feito e impresso em Outubro deste ano”.4
Voltemos à carta de “explicações” sobre a Mensagem, dirigida por Pessoa a Casais Monteiro. Escreve Pessoa: “Como [o livro] estava pronto, incitaram-me a que o publicasse”. “Incitaram-me” – quem?
Para mim, não oferece dúvidas que a publicação da Mensagem e a sua apresentação ao concurso foram o resultado de uma conspiração de, pelo menos, quatro amigos de Pessoa: Augusto Ferreira Gomes, Augusto Cunha, Almada Negreiros e o próprio António Ferro.
O Director do S.P.N., antigo companheiro de Pessoa dos tempos do Orpheu, tinha todo o interesse político em reconhecer oficialmente o talento de Pessoa tornando-o, pelo menos na aparência, um escritor não desafecto à “Situação”. Sabe-se hoje que esse seu interesse em ver Pessoa concorrer e ganhar o Prémio Antero de Quental, o levou ao ponto de adiantar, do “saco azul” do Secretariado, o dinheiro necessário para a composição e impressão da Mensagem, como há anos me revelou o pintor Paulo Ferreira, à época jovem colaborador do S.P.N.
Assegurada a cumplicidade activa de António Ferro, os outros conspiradores montaram um “lobby” destinado a influenciar o júri em favor da Mensagem.
Como o júri veio a reconhecer na decisão final, Pessoa era um escritor “isolado voluntariamente do grande público”; e António Ferro, no seu discurso na cerimónia final de entrega dos prémios, sublinhou que o concurso atingira os seus objectivos, revelando autores como Vasco Reis ou “roubando-os ao seu isolamento, como no caso de Fernando Pessoa”.
Para quebrar um pouco desse isolamento, chamando a atenção do público (e do júri) para o Poeta, o “lobby” entrou em acção.
A primeira iniciativa, em 16 de Junho de 1933, foi a publicação, promovida por Augusto Ferreira Gomes, dos doze poemas de “Mar Português” no jornal A Revolução. Este jornal era o órgão do Nacional-Sindicalismo – o movimento nazi-fascista português, chefiado por Rolão Preto, que pouco mais tarde Salazar haveria de desmantelar e banir.5
Na nota de apresentação, Ferreira Gomes sugere ao Ministério da Educação Nacional que recomende a leitura de “Mar Português” nas escolas, por ser “um texto de incontestável superioridade, de incontestável elevação espiritual, de incontestável patriotismo e de incontestável utilidade nacional”.6
A segunda intervenção do “lobby” deu-se no mês seguinte: a publicação antecipada de poemas da Mensagem - “O Infante D.Henrique”, “D. João o Segundo” e uma primeira versão de “Afonso de Albuquerque”7 na revista O Mundo Português, editada pela Agência Geral das Colónias e pelo Secretariado da Propaganda Nacional. O director, Augusto Cunha, além de amigo pessoal e companheiro literário de Fernando Pessoa, era cunhado de António Ferro.
A publicação dos três poemas numa revista oficial, em que, no mesmo número, colaboravam personalidades como Teófilo Duarte, Marcelo Caetano, Alberto Osório de Castro, Diogo de Macedo e Henrique Galvão (este retratado por Eduardo Malta), tornava o seu autor “politicamente correcto”.
O terceiro momento do “lobby” ocorreu em 14 de Dezembro seguinte: a publicação de uma página inteira do Suplemento Literário do Diário de Lisboa dedicada a Pessoa e à Mensagem. O livro já tinha sido posto à venda e estava-se a quinze dias da decisão do júri.
Na primeira coluna, o jornal publica uma entrevista com Fernando Pessoa, conduzida por Artur Portela. É sintomática a presença, citada no texto, de Augusto Ferreira Gomes, autor da fotografia do Poeta que ilustra a entrevista.
Ao lado desta, são publicados, a três colunas, os poemas “O Infante”, “O Mostrengo” e “Prece”, da Mensagem, acompanhados de três desenhos inéditos de Almada Negreiros. (Note-se a preocupação em não repetir os poemas anteriormente revelados na revista O Mundo Português). É evidente que as ilustrações de Almada foram expressamente encomendadas para o efeito, sendo uma paráfrase plástica dos poemas.
Na entrevista, Pessoa faz diversas revelações sobre a obra, salientando “é um livro nacionalista e, portanto, na tradição cristã representada primeiro pela busca do Santo Graal, e depois pela esperança do Encoberto”, tendo como objectivo “Projectar no momento presente uma coisa que vem através de Portugal, desde os romances de cavalaria. Quis marcar o destino imperial de Portugal, esse império que perpassou através de D.Sebastião, e que continua ‘há-de ser’”.
Dir-se-ia que, com estas palavras, Pessoa prevenia desde logo que o nacionalismo da obra – característica exigida pelo regulamento do S.P.N. – ir muito além do cânone oficial do Estado Novo, para cujos próceres o “destino imperial de Portugal” era já então – e não haveria de ser num futuro indeterminado - uma realidade.
De resto, nas explicações dadas a Casais Monteiro na citada carta de 13 de Janeiro, Pessoa esclarece que convinha que aparecesse e “aparecesse agora” a sua faceta de “nacionalismo místico”, embora “de certo modo secundária” na sua personalidade. E precisa, cripticamente: “Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto”.
É significativo o facto de as intervenções do “lobby” chefiado por Augusto Ferreira Gomes terem ocorrido em dois órgãos de informação ligados à “Situação” (O Mundo Português e A Revolução) e um conotado com a “Oposição” ou, como então se dizia, o “Reviralho” (o Diário de Lisboa), ficando assim cobertas as duas principais facções político-jornalísticas do tempo.
Assim, encorajado e ajudado pelos amigos, que lhe garantiam que a Mensagem seria premiada, esperançado em ver, finalmente, uma parte da sua obra apresentada ao público leitor em geral de forma autónoma - e não, como até então, dispersa nas páginas de jornais e revistas - Fernando Pessoa tomou, pela primeira vez, a decisão de terminar e publicar um livro.
Mencione-se, ainda, a circunstância de não ser “pecado intelectual de maior” (como ele próprio disse) reconhecer o jeito que lhe faria receber os 5.000 escudos do prémio – quantia muito apreciável para a época. Afinal, ao contrário do que dizia, Pessoa era capaz de “premeditação prática”...
Há, finalmente, uma terceira hipótese (reconheço desde já que não-provada) em defesa da “teoria da conspiração”. Em determinada altura, que não consegui determinar, o S.P.N. alterou a data limite da publicação, para efeito de admissão das obras ao concurso, alargando-a de 1 de Julho para 31 de Outubro de 1934.
Ora a Mensagem, ainda não estava pronta em 1 de Julho de 1934. Como Pessoa contou a Casais Monteiro na citada carta de 13 de Janeiro de 1935, “O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro”. O volume foi composto e impresso, segundo o colofon, durante o mês de Outubro. Se for possível provar que a alteração regulamentar de datas foi feita antes de Setembro de 1934, então ela tê-lo-á sido em benefício de Pessoa.
Em 31 de Dezembro, os jornais incluindo o Diário de Lisboa, noticiavam a atribuição dos Prémios. O prémio Eça de Queiroz (Romance, no valor de 10.000 escudos), não foi atribuído, pois o respectivo júri “embora reconhecendo notáveis qualidades em algumas das obras que lhe foram submetidas”, deliberou, por maioria, não o conceder, “visto em nenhuma delas ter encontrado todos os requisitos exigidos pelas bases do concurso e pelas altas exigências e finalidades a que deveria corresponder a sua escolha”. A não-atribuição deste prémio teve importância para o resto da história. O prémio Alexandre Herculano (História, no valor de 6.000 escudos), foi atribuído a Caetano Beirão da Veiga, pelo seu livro “D.Maria I”. O prémio Ramalho Ortigão (Ensaio, no valor de 4.000 escudos), foi atribuído a João Ameal, pelo seu ensaio “No limiar da Idade Nova”. O prémio António Enes (Jornalismo, no valor de 2.000 escudos), foi atribuído a Augusto da Costa pelo seu livro de entrevistas “Portugal, Vasto Império”. O júri sugeriu que, na categoria “Jornalismo” fosse atribuído um prémio extraordinário ao livro de Fernando de Pamplona “Os Voronoffs da Democracia”.
O júri do Prémio Antero de Quental, presidido, como todos os outros, por António Ferro, era constituído por Alberto Osório de Castro (o “poeta de grande nome nacional”, então com 66 anos) Mário Beirão (o “poeta da nova geração”, dois anos mais novo do que Pessoa e seu amigo pessoal)8 , e Acácio de Paiva, e Teresa Leitão de Barros (os dois “críticos literários em exercício”, o primeiro decano do júri com 71 anos de idade, a segunda, a mais jovem, com 36 anos).
O Diário de Lisboa, tal como o Diário de Notícias do dia seguinte, transcreve excertos da acta do júri: “Prémio Antero de Quental (Poesia) - 5.000 escudos. (...) Premiado: em primeira categoria, e por maioria, o livro de Vasco Reis, Romaria (..). Um prémio de segunda categoria, destinado a um Poema ou poesia solta, deu-se, por maioria, ao livro de Fernando Pessoa, Mensagem (...).
É forçoso reconhecer que a redacção da acta não é feliz: salientando o prémio da primeira categoria (5.000 escudos para a obra de Vasco Reis), refere o prémio atribuído a Pessoa como “um prémio de segunda categoria” – em vez de dizer, nos termos regulamentares, “o prémio da segunda categoria, destinado a “Poema ou poesia solta”.
A confusão pioneira de João Gaspar Simões talvez tenha começado aqui e é muito provável que tenha também contribuído para o comentário sarcástico da escritora Alice Ogando na sua recensão crítica da Mensagem, desde logo publicada no jornal O Diabo em 27 de Janeiro de 1935: “Esta obra obteve um segundo prémio no concurso da Propaganda. Apre! Muito bom deve ser o primeiro premiado para uma obra como esta poder ficar em segundo lugar!”.
O facto é que o júri considerou o (mau) livro de Vasco Reis uma “obra de genuíno lirismo português, que revela uma alta sensibilidade de artista e que tem um sabor marcadamente cristão e popular”. Alberto Osório de Castro fez mesmo uma declaração de voto, afirmando que, ao ler “A Romaria” tivera a sensação que lhe produziria a aparição de um Cesário Verde ou de um António Nobre...
Quanto ao livro de Fernando Pessoa, a acta reza que era “um alto poema de evocação e interpretação histórica, que tem sido merecidamente elogiado pela critica”, acrescentando que o seu autor “é uma figura de marcado prestigio e relevo nos meios intelectuais de Lisboa, e uma das personalidades mais originais das letras portuguesas”.
Gaspar Simões escreve no seu livro que, se a Mensagem não ganhou, houve, no entanto “membros do júri que lhe deram o seu voto”. Aqui não se engana, pois, como consta da acta, as decisões do júri do Prémio Antero de Quental foram efectivamente tomadas “por maioria”.
Ora o júri era constituído por quatro elementos, sob a presidência do Director do S.P.N.; se, como consta da acta, este último, “não teve de intervir em nenhuma das resoluções tomadas”, verifica-se que a única maioria possível num conjunto de quatro votos é a de três a favor e um contra. Assim, três membros do júri terão atribuído à Mensagem o prémio da categoria, contra o voto negativo do quarto membro. Quem teria considerado que o livro de Pessoa não era merecedor do prémio?
Na categoria “livro de versos”, o regulamento impunha que as obras tivessem mais de cem páginas. Ora o que acontece com a primeira edição da Mensagem ?
A última página numerada do volume é a página 102, seguindo-se-lhe duas páginas não numeradas. Pode assim dizer-se que, tecnicamente, a brochura apresenta 104 páginas. Por que razão o júri decidiu que tinha menos de cem páginas?
A única explicação é a de que algum ou alguns membros do júri, com minucioso (e suspeito) zelo regulamentar, se deu ao trabalho de analisar tipograficamente o volume, página a página. Teriam então verificado que o compositor havia literalmente (e habilmente) “esticado” o miolo do livro, com o seguinte resultado prático: do total de 104 páginas, 27 estão em branco. Das restantes 77 páginas, 55 contêm os textos dos poemas; nas restantes 22 paginas estão impressos: títulos isolados (12 páginas), legendas latinas, também isoladas (4 páginas), índice (4 páginas), frontispício e colofon (1 página cada).
Ora bem: esta hábil montagem tipográfica foi obra de Augusto Ferreira Gomes, o mais constante amigo e companheiro de Fernando Pessoa: jornalista, poeta, astrólogo, escritor esotérico e boémio, que trabalhava como artista gráfico no serviço de publicações do S.P.N. Foi Ferreira Gomes quem levou o Poeta à Editorial Império onde a Mensagem foi impressa e o apresentou a Armando de Figueiredo, proprietário e gerente da empresa. Armando Figueiredo contou, anos depois, que Pessoa ia regularmente à tipografia rever as provas do livro mas “se os seus afazeres não lhe permitiam aparecer , a revisão era feita pelo seu amigo Augusto Ferreira Gomes, com quem tinha grande intimidade”.9
Acontece, todavia, que se o júri foi mesquinho e meticuloso na contagem das páginas da Mensagem, estranhamente (ou propositadamente) não terá notado que, aplicando o mesmo critério tipográfico-contabilístico, o livro de Vasco Reis tão-pouco podia ser aceite, por não atingir as 100 páginas regulamentares.
Efectivamente, A Romaria tem 120 páginas, das quais 92 são numeradas. Se descontarmos 3 páginas com o ante-frontispício, a lista das obras do Autor e o frontispício, 1 página de dedicatória, 2 páginas contendo a “Carta-Prefácio” de Alfredo Pimenta, 8 páginas com epígrafes ou simples numerais romanos, 1 página de errata e 11 páginas em branco, o número de páginas efectivamente ocupadas pelo texto do poema é de 94 – menos seis do que as regulamentarmente exigidas...
O inacreditável subterfúgio do “número de páginas” utilizado para afastar a Mensagem do prémio da categoria “livro de versos”, revela, a meu ver, que na fase final do concurso, Fernando Pessoa terá sido vítima de uma contra-conspiração, agora por parte do júri. Terá sido a influência do muito poderoso Alfredo Pimenta, autor da carta- prefácio publicada em A Romaria, na qual fazia encomiásticos elogios a Vasco Reis? E Alfredo Pimenta era um dos inimigos de estimação de Fernando Pessoa – e vice- versa...
Só a leitura da acta completa do júri do Prémio Antero de Quental poderá, eventualmente, trazer algumas clarificações para o que se passou. Mas ainda não me foi possível encontrar pistas seguras sobre o paradeiro e a acessibilidade das actas, que talvez ainda se encontrem nos arquivos do antigo S.P.N. Ficará, pois, para uma nova investigação e, de momento, temos de contentar-nos com os extractos que delas foram publicados nos jornais da época.
A inesperada decisão do Júri, relegando o livro de Pessoa para a categoria de “poema ou poesia solta”, foi um balde de água fria para o “lobby” pessoano, que nunca teria imaginado que a Mensagem falhasse o Prémio Antero de Quental na categoria de “livro de versos”.
Foi assim que António Ferro decidiu, “depois da leitura das actas”, tomar a única decisão possível para minimizar o relativo fiasco provocado pelo júri “contra- conspirador”.
Na acta final ficou, assim, registado que “O director do Secretariado da Propaganda Nacional não teve de intervir em nenhuma das resoluções tomadas. Mas decidiu, em vista de não ter sido concedido o prémio do Romance, e de existir, assim, um saldo no orçamento dos prémios literários deste ano, corresponder aos desejos do júri do Jornalismo - estabelecendo um prémio extraordinário de 2.000 escudos para “Os Voronoffs da Democracia”, de Fernando de Pamplona. Decidiu também, atendendo ao alto sentido nacionalista da obra e ao facto do livro 12ter passado para a segunda categoria apenas por uma simples questão de número de páginas - elevar para 5.000 escudos o prémio atribuído à Mensagem de Fernando Pessoa”.10
Em termos contabilísticos, António Ferro tinha efectivamente à sua disposição um saldo de 10.000 escudos, proveniente da não-atribuição do Prémio de Romance. Dessa importância, retirou, primeiro, 2.000 escudos para criar um prémio extraordinário e extra-regulamentar na categoria de Jornalismo, conforme sugestão do Júri. E retirou mais 4.000 escudos para aumentar de 1.000 para 5.000 a segunda categoria do Prémio de Poesia: ao menos pecuniariamente, Pessoa ficou equiparado a Vasco Reis e à sua “Romaria”. Não se tratou, assim, de um prémio especial ou extraordinário, mas sim de um aumento do montante regulamentar do Prémio.
Como contou Luís Pedro Moitinho de Almeida, os 5.000 escudos do prémio permitiram a Pessoa viver alguns tempos de desafogo, sem meter vales à caixa, embora pouco lhe tivesse sobrado depois de pagar as suas dívidas. 11
E, se Fernando Pessoa ficou por ventura melindrado com a decisão do júri, vingou-se, com luva branca, do seu “rival” e co-premiado Vasco Reis, publicando no Diário de Lisboa, de 4 de Janeiro de 1935, uma crítica generosamente elogiosa (como eram, normalmente, as que fazia aos livros de amigos e conhecidos).
Como em regra acontecia nos seus escritos de crítica literária, o verdadeiro intuito deste texto era denegrir, uma vez mais, duas das suas bêtes-noires: a Igreja Católica, em geral, e o catolicismo português, em particular, a que chamou “meiguice religiosa, preguiçosamente incerta do em que realmente crê”. O Padre Vasco Reis, escreve Pessoa, “a quem Deus fez ser franciscano para fins simbólicos – pertence portuguêsmente a este catolicismo amoroso”. Os louvores à obra seguem depois destas linhas assassinas...12
Assim, ao contrário do que afirmaram João Gaspar Simões e todos que continuaram (e continuam) a repetir a sua errada lição, a Mensagem não recebeu um prémio de consolação: foi, na realidade, um dos dois vencedores do Prémio Antero de Quental.
Por essa razão, pouco tempo depois (em data provável de Fevereiro de 1935), Pessoa escreveu, a meu ver sem qualquer ironia, que o seu livro fora “premiado, em condições especiais e para mim muito honrosas, pelo Secretariado da Propaganda Nacional”.13
Pondo o dedo na ferida, Adolfo Casais Monteiro comentou em carta para Pessoa datada de 10 de Janeiro de 1935: “Não acho absurdo – acho pelo contrário normal – que um júri ache A Romaria bom, e a Mensagem mau. Mas que o mesmo que acha bom, digno dum 1º. Prémio, o livro de Vasco Reis, ache também bom o seu – isso é que me deixa siderado! E por isso, felicito-o pelos tantos mil escudos, pois que o resto não lhe dá uma consagração que já tem há muito tempo, ainda que para um demasiadamente restrito público”.14
Por não ser muito conhecido, tem interesse contar o que posteriormente se passou com duas personagens fulcrais desta história: João Gaspar Simões e o Padre Vasco Reis.
Gaspar Simões, que concorrera ao Prémio Eça de Queiroz com o seu romance Amores Infelizes e não fora premiado, envolveu-se nas páginas da revista Fradique numa azeda polémica com Vasco Reis, descrevendo “A Romaria” como “essa obrinha para costureiras e marçanos”, e o seu autor como “um cândido franciscano tão pobre de talento quanto o fundador da sua ordem era pobre de bens deste mundo”.15
Quanto ao Padre Vasco Reis, anos depois secularizou-se, passando a ser o publicista Reis Ventura. Traumatizado durante toda a sua vida por ser publicamente acusado de ter sido o injusto “vencedor” de Fernando Pessoa declarou em 1973 numa entrevista: “Tem corrido um equívoco a esse respeito, que profundamente me molesta. Não há termo de comparação entre a ‘Mensagem’ e o poema, dos meus 19 anos, chamado ‘A Romaria’ (...) Embora regulamentarmente figurasse ‘A Romaria’ em 1º. lugar, não pode haver dúvidas nem termos de comparação com a obra magnífica desse génio!”16 E em 1985, numa carta dirigida ao director de O Jornal e publicada em 19 de Novembro, reiterou que os seus “versinhos de adolescente nem sequer existem” e que quem ganhou o “primeiro prémio” foi Fernando Pessoa.
José Blanco
1 Albano Nogueira [A.N.], “Uma iniciativa cultural”. Presença, Ano VII, Vol. II, nº. 40, Dezembro de 1935, p. 15. 2 Adolfo Casais Monteiro, A POESIA DE FERNANDO PESSOA. 2ª. ed., Org. de José Blanco. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, pp. 228-229. 3 CARTAS DE FERNANDO PESSOA A JOÃO GASPAR SIMÕES. Prefácio, posfácio e notas do destinatário. 2ª. ed., Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, pp. 91 e 93. 4 Adolfo Casais Monteiro, op. cit., p. 244 5 Pessoa tinha já publicado em A Revolução (no nº. 74 de 6 de Junho de 1932) um dos poucos textos do “Livro do Desassossego” que revelou em vida. 6 Esta versão de “Mar Português” é a que havia sido publicada em 1922, no nº. 4 da Contemporanea. 7 A versão publicada na revista (“Passa um gigante pela vasta terra”) foi substituída por uma variante total incluída na versão final da “Mensagem”. 8 Conhecem-se sete cartas de Pessoa a Mário Beirão, altamente elogiosas do seu talento poético. 9 “No XIV aniversário da morte de Fernando Pessoa. Algumas revelações curiosas do seu primeiro impressor Armando de Figueiredo”. Átomo, nº. 23, Lisboa, 30 de Novembro de 1949. 10 Diário de Lisboa, 31 de Dezembro de 1934, p. 16. 11 Luís Pedro Moitinho de Almeida, “Os vales à caixa de Fernando Pessoa”, in FERNANDO PESSOA. NO CINQUENTENÁRIO DA SUA MORTE. Coimbra: Coimbra Editora, 1985, pp. 43-48. 12 OBRAS EM PROSA DE FERNANDO PESSOA. PÁGINAS SOBRE LITERATURA E ESTÉTICA. Org. de António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1986, pp. 190-191. 13 OBRA POÉTICA DE FERNANDO PESSOA. MENSAGEM E OUTROS POEMAS AFINS. Org. de António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1986, p. 171. 14 Adolfo Casais Monteiro, op. cit., pp. 224. 15 João Gaspar Simões, “Fernando Pessoa e o Prémio Antero de Quental”, in HETEROPSICOGRAFIA DE FERNANDO PESSOA. Porto: Inova, 1973, pp. 381-398. 16 “Em diálogo com Reis Ventura” (entrevista do Major Manuel Barão da Cunha). Jornal do Exército, nº. 159, Março de 1973, pp. 22-23.
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