A influência dos Ballets Russes na criação do Verde Gaio Ao longo da primeira década do século XX e num clima recheado de vanguardas artísticas, Paris exibia triunfalmente os seus Ballets Russes, trazendo a dança para o século XX e constituindo-a numa arte autónoma maior. Em Portugal os Ballets Russes foram recebidos 8 anos depois da sua estreia parisiense e em ambiente adverso: • I Guerra Mundial e • O advento de Sidónio Pais, reduziram-lhe seguramente o impacto. Portugal, que assistira quase indiferente à estadia dos Ballets Russes em Lisboa de 2 de Dezembro de 1917 a 28 de Março de 1918, apenas teve nos modernistas portugueses os seus maiores defensores e entusiastas. A situação política inesperada provocada pelo golpe sidonista, veio alterar os planos previstos e a apresentação dos Ballets Russes, em Lisboa, em muito foi prejudicada pela circunstância de ter ocorrido em plena revolução. Um alargado conjunto de circunstâncias históricas fez com que a companhia permanecesse uma larga temporada em Lisboa; três meses de quase inactividade, com Diaghilev ausente tentando arranjar espectáculos em Espanha, dentro de uma Europa em plena guerra. A companhia encontrou na sua primeira e única visita, um amplo acolhimento e entusiasmo da intelectualidade moderna nacional e uma contida recepção do público e da crítica que não souberam ver nem reconhecer a sua proposta de modernidade. Antecedentes Quatro antecedentes tornaram possível a criação da primeira companhia de bailado nacional sob uma inspiração dos Ballets Russes: • Manuel Sousa Pinto, • Modernistas, • António Ferro, • Teatro Revista. a) Manuel Sousa Pinto, talvez o único crítico esclarecido da época, parece ter entendido a importância dos Ballets Russes, escrevendo fluentemente sobre a companhia, sendo o primeiro a gizar uma certa ideia de inspiração nos russos para a criação de uma companhia nacional. Ele publica na revista Atlântida de 15 de Dezembro de 1917 (dois dias após a estreia dos Ballets Russes no Coliseu de Lisboa), a sua apreciação a três ballets (continuando o artigo em Janeiro e Fevereiro 1918), artigo esse ilustrado com desenhos de Almada Negreiros. Depois, Manuel de Sousa Pinto defende os modelos folclóricos numa espécie de manifesto pela dança portuguesa nas suas Danças e Bailados , livro publicado em 1924, e passo a citar: “A dança portuguesa, bailados portugueses? Porque não? O difícil é lançar a semente. Depois as flores nascem (…) há principalmente uma maneira bem portuguesa de dançar, que muito conviria aprofundar, estilizar, desenvolver” . b) Pouco depois da partida dos Ballets Russes de Lisboa, já os futuristas portugueses propunham ballets, nomeadamente Almada, o grande animador que se desdobrava entre poeta, pintor, coreógrafo e bailarino. A 11 de Abril de 1918 (15 dias depois da partida dos Ballets Russes de Lisboa) estreia no S. Carlos um espectáculo de ballet que alguns artistas portuguesas conceberam sob o patrocínio de Helena de Castelo Melhor e denominados: Bailado do Encantamento e A Princesa dos Sapatos de Ferro. Ficou a tradição de que durante a estadia forçada dos Ballets Russes em Lisboa, “alguns colaboradores de Diaghilev teriam dado uma ajuda falando-se de que até o próprio Massine (...) teria dado a Almada alguns conselhos sobre as suas coreografias” . Apesar ainda de mais algumas incursões de Almada Negreiros pela dança, os modernistas portugueses tiveram que esperar vinte anos para que se realizasse todo um cenário propício à criação de uma companhia de bailado. c) António Ferro, que vira provavelmente os Ballets Russes em Lisboa em 1917 e depois em Paris na década de 20, e que pertencera à primeira geração de modernistas, incluído no grupo de Almada, é o homem de charneira de todo um projecto que se vai efectivar em 1940, chamado Verde Gaio. Este seu projecto foi sendo esboçado ao longo dos anos 20 e 30, nos vários escritos que deixou. Logo no início dos anos 20, quando Ferro se torna director da revista Ilustração Portuguesa, não esquece a temática e afirma, passo a citar, “A Ilustração Portuguesa procurará mostrar Portugal aos Portugueses, procurará, com o auxílio de todos, estilizar a raça. A linha do bailado português, por exemplo, está por descobrir. Encontrada essa linha, Portugal pode ter a sua companhia de bailados, como os russos, bailados modernos, nas nossas danças populares, nos nossos trajes regionais, nos nossos costumes, temos matéria-prima para estilizações admiráveis, temos tinta de sobra para um grande cartaz a pôr na Europa, a pôr no mundo... Portugal, meu amigo, eu já o disse algures, ou será um “baile russo” – ou não será ”. d) Ao longo ainda destes anos 20 e 30, o teatro de revista pontuou as suas peças com pequenas marcações de dança e à sombra da imagem deixada pelos Ballets Russes em Lisboa, a hegemonia do teatro musical fez sobressair os primeiros bailarinos nacionais. A dança animou os vários quadros de revistas e daí saíram os primeiros “bailarinos” nacionais. Luísa Santanella, Lubelia Stichini, Francis Graça entre outros, formaram um primeiro grupo que ajudou a delinear uma certa aptidão, ainda que tímida, pela arte de Terpsícore. É dentro deste contexto, e tendo em conta estes 4 antecedentes (MSP, Modernistas, António Ferro e o Teatro de Revista), que se vai delineando todo um projecto, que se vão criando as condições necessárias para que em 1940, por altura da grande Exposição do Mundo Português, surja a companhia de bailados portugueses Verde Gaio. O Verde Gaio Assim, com o patrocínio da Comissão dos Centenários e do Secretariado de Propaganda Nacional, António Ferro funda em 1940 o Grupo de Bailados Portugueses Verde Gaio, inspirados nos Ballets Russes e inseridos no espírito do Teatro Novo, em torno do qual a ideia da fusão das artes, à maneira da obra de arte total wagneriana (Gesamtkunstwerk), é proposta. Para que tal acontecesse, António Ferro aglomerou à sua volta um conjunto de artistas que ajudaram a “colorir” os seus “Ballets Russes à portuguesa”: cenógrafos, compositores, figurinistas, escritores e bailarinos, formaram um grupo heterogéneo unido por um ideal comum: criar uma companhia de dança vinculadamente portuguesa. Na apresentação do Verde Gaio a 8 de Novembro no teatro Trindade, o director do SPN validou o projecto como mais uma concretização da sua “Política do Espírito”. Sob a égide de um compromisso, Ferro, com o aval do Estado Novo, desenhou uma política de proteccionismo cultural investida de uma face dinâmica que se queria moderna. Assim, o Verde Gaio constituía a exaltação de motivos nacionais ainda que - apresentando-se sob uma orientação de cariz folclórico – aspirando anos depois a ballet clássico. Aos Ballets Russes, António Ferro não foi só buscar a ideia de uma companhia nacional que veiculasse um ideal, mas acrescentou-lhe um cunho acentuadamente português que espelhasse o carácter nítido de folclore estilizado, tão caro ao Estado Novo. No espírito de António Ferro, o Verde Gaio apareceu como a síntese de todo um conjunto de referências (estéticas, ideológicas, culturais e artísticas) que se desejava efectivar e não é de estranhar que o grupo tenha recorrido ao elemento do folclore como modelo coreográfico: o Verde Gaio, foi criado e adaptado ao condicionalismo nacional que preconizava uma estética que fosse entendida por todos, baseando-se assim em temas populares ou de índole histórica. Dentro desta linha, o director do SPN nas palavras de apresentação ao Verde Gaio em 1940 ressalvava que, e passo a citar,” essa maravilhosa companhia de Diaghilev (…) guardou e enviou para fora da pátria, as imagens, os ritmos, as melodias da Rússia de todos os tempos, da Rússia eterna (…) sobrevivendo e escapando à revolução. Se hoje, na verdade, ainda a podemos evocar (…) é através dessa pátria ambulante dos Bailados Russos” . Fernanda de Castro (mulher de António Ferro), nas suas memórias relembra esses tempos e a forma como tudo se efectivou: “o António tinha o Verde Gaio. Quantos anos teria andado este sonho bailar na sua cabeça? Talvez, tenho quase a certeza, desde aquele tempo em que vimos pela primeira vez, em Paris, os bailados russos de Diaghilev... É claro que ele sabia perfeitamente que não tínhamos à mão um Nijinski ou uma Pavlova para levar a cabo um empreendimento dessa natureza, mas sabia também que tínhamos um folclore riquíssimo, um dos mais puros da Europa, usos e costumes com raízes profundas, lendas que vinham do fundo dos séculos, e, além disso, todo o material humano necessário: compositores, artistas plásticos, etnógrafos. Não tínhamos, é certo, uma tradição balética, nem escolas de bailado, nem bailarinos, mas também a ideia de António não era pôr de pé uma companhia de bailados clássicos mas de bailados portugueses” . A falta de comparação, ou seja, de companhias concorrentes, fizeram vida fácil ao Verde Gaio durante os primeiros anos e a política cultural de mera aparência que subsistiu depois da saída de António Ferro, relegou o Verde Gaio para uma actividade ornamental da ópera, numa instrumentalização cultural que havia de se encaminhar noutras direcções e preocupações que não a dança. No fundo, o Verde Gaio constituiu uma representação simbólica de um Portugal idealizado pelo Estado Novo e gizado por António Ferro mas que mal sobreviveu ao afastamento do seu mentor. A sua reanimação ao longo das décadas seguintes, foi mal sucedida e culminou já nos anos 90 numa iniciativa do Ministério da Cultura quando este o pretendeu reinventar . Verde Gaio, os “Bailados russos portugueses” induz na ideia de que a companhia de Diaghilev foi criada a partir de uma raiz folclórica o que não é de todo verdade. Apesar dos Ballets Russes incorporarem no seu repertório temáticas folclóricas, o fundamento da companhia encontra-se na escola clássica dos teatros imperiais, que ao longo de séculos tinha vindo a aperfeiçoar a arte balética. Ora em Portugal não existia esta escola clássica: inventou-se então uma, baseada no folclore estilizado que depois, como já referi, aspirou a criações clássicas. O Verde Gaio ao elevar a dança a uma arte maior constituiu em si um gesto moderno mas raras vezes ultrapassou a sua temática histórico-folclórica; como objecto de propaganda, a companhia educou o espírito (segundo os valores instituídos) e serviu de veículo de prestígio no estrangeiro, projectando a imagem da nação que pretendia valorizar. Por detrás destes dois aspectos está sem dúvida uma certa ascendência e uma notória influência da companhia de Diaghilev; mas por não se saber, não se querer ou não se poder, o Verde Gaio não se efectivou na arte nacional e internacional da maneira que Ferro desejara, e ainda não foi com esta experiência que se estabeleceria uma efectiva companhia nacional. Maria João Castro 19 de Maio de 2009 |