Subscrever Newsletter
 
Fundação António Quadros
Bibliografia Passiva Imprimir e-mail

 Autores 
Bibliografia Passiva
Alexandra Prado Coelho
Alexandre Oliveira
António Maria Zorro
António Quadros
Cândida Cavadez
Eduardo Mayone Dias
Eduardo Pitta
Fundação António Quadros
João Bigotte Chorão
João Gonçalves
Jorge Ramos do Ó
José Almeida
José Blanco
Luis M. Gaspar e Sara A. Ferreira
Luís Raposo Pereira
Maria Estela Guedes
Maria João Castro
Miguel Bruno Duarte
Teresa Rita Lopes
Vera Marques Alves

PROBLEMÁTICA CONCRETA DA CULTURA PORTUGUESA (I)

Prólogo

Fomos, recentemente, à Fundação António Quadros para analisar e apreciar, Ainda que ao de leve, a correspondência e aspectos afins entre António Quadros e algumas figuras insignes da política e da cultura portuguesa, entre elas Oliveira Salazar, Henrique Veiga de Macedo, Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino. A Fundação, na pessoa de Mafalda Ferro, pôde assim facultar-nos testemunhos de ordem histórica susceptíveis de novos elementos para a compreensão psicológica, cultural, artística e filosófica dos diferentes entre os semelhantes. E nisto nada melhor que a referida correspondência que esperemos seja o mais breve possível divulgada ao público interessado na relação objectiva e actuante entre o passado e o porvir da cultura portuguesa.

Conversando com Mafalda Ferro e António Quadros neto, não pudemos deixar de aflorar as relações entre António Ferro e Oliveira Salazar, assim como as relações entre António Quadros e a filosofia portuguesa. Dois mundos diferentes e distintos que figuras como Eduardo Lourenço e seus epígonos propositada e ideologicamente confundem, assim participando ex professo de uma historiografia oficial que é toda ela, como não podia deixar de ser, a história simplesmente contada pelos vencedores da organização revolucionária e marxista que se apoderou de facto, mas não de direito, de Portugal. A Fundação António Quadros pode, entrementes, contribuir, por via da cultura e da filosofia portuguesa, para que assim não seja, disponibilizando testemunhos e elementos valiosíssimos que levem pensadores e investigadores livres e independentes a pensarem e a descobrirem novos e supernos horizontes.

Não por acaso António Quadros neto nos indicara um livro significativo do avô, intitulado Problemática Concreta da Cultura Portuguesa. Datado de 1961, aí se espelha a decisão, não tanto histórica ou, sequer mesmo, passadista, mas filosófica quanto ao património económico, político e essencialmente cultural do povo e do Ultramar português. Daí que, ao contrário do que falsamente aventam as figuras labirínticas da cultura universitária em Portugal, tal decisão não teve por significado uma adesão ao regime de então, pelo facto de significar antes e, sobretudo, a consciência multissecular de uma missão teleológica de Portugal no mundo.

Por conseguinte, António Quadros, ainda que não perfilhando das razões históricas enquanto fundamento único e exclusivo da cultura nacional, compreendia que estava em questão a existência de Portugal enquanto Estado, Nação, Pátria e República. Por outras palavras, já sabia e compreendia, não obstante as contradições do regime em vigor, que o mais importante e vital, que é a autonomia cultural de Portugal, sem a qual não é possível a verdadeira independência política, não implicava a desistência e muito menos o abandono da missão universal e teleológica de Portugal na Europa, na África, na Ásia, na Oceânia e na América Latina.

Na verdade, reconhecemos que não é fácil a lídima percepção dessa missão universal e futurante de Portugal no mundo, até mesmo entre portugueses. E também não nos admiramos que se tenha escrito, por entre vicissitudes que atravessam a filosofia luso-brasileira, que António Quadros tenha sido «o primeiro a empreender a tentativa de instrumentalizar a filosofia», tal como a «Escolástica fez o mesmo a seu modo, atribuindo-lhe [à filosofia] a função de difundir o cristianismo» (cf. António Paim, As Filosofias Nacionais, 3.ª edição revisada e ampliada, 2007, p.148). Neste passo revela-se, pois, incompreensão no preciso sentido em que a filosofia, ao invés de ser instrumento para o que quer que seja, é antes, nos termos apropriados de Leonardo Coimbra, órgão de liberdade relativo ao sentir e à visão de um povo cuja feição atlântica nunca se pautou, nem mesmo para Oliveira Salazar, por simples imposição de factores geográficos ou, se quisermos, meramente territoriais (cf. A Política Imperial e a Crise Europeia, Discurso pronunciado pelo Presidente do Conselho na sessão extraordinária da Assembleia Nacional, de 22 de Maio de 1939, reunida para dar o seu assentimento à viagem do Chefe do Estado [Óscar Carmona], Edições SPN, p. 27).

Todo este processo implica uma intuição dirigida à capacidade distintiva que foge e escapa à maioria das pessoas, ao passo que outros, mais ladinos, se têm aproveitado disso para lançar ardilosamente a confusão preconceituosa e ideológica sobre a filosofia portuguesa, sendo já esse o caso potencial de Eduardo Lourenço em 1946, ao procurar reduzir a mesma a questões menores, tão filosóficas quanto podem ser, diga-se de passagem, «camisas ou água de colónia», ou ainda a «importação de batatas da Dinamarca e automóveis de Detroit» (cf. Vértice, Vol. II, f. 7, 1946, p. 157). Seja como for, a filosofia portuguesa lá seguiu o seu rumo até culminar na concepção da ideia de Pátria enquanto ideia distinta da imagem veiculada pelo território, pelo país ou pela paisagem, ou até mesmo da ideia militar de Pátria, confinada, eventualmente, à guerra e à destruição do inimigo (cf. «Ainda temos Pátria», in Escola Formal, n.º 4, 1977, pp. 11-12). Todavia, tal concepção tanto mais se impôs quanto Portugal deixou de existir historicamente com a revolução comuno-socialista de 74, confinado, em consequência de premeditada traição política e militar, ao território da primitiva nacionalidade.

Hoje, lançado num abismo político-económico, como fora, aliás, previsto desde há muito, Portugal, tendo até aqui vivido de esmola alheia e administrativamente dirigido por potências, organismos e organizações estrangeiras e internacionais, só é Portugal de nome e enquanto ideia. Desse ponto de vista está vivo, embora em termos patrimoniais esteja pura e completamente depauperado e hipotecado por uma oligarquia política que se apoderou dos poderes do Estado ao mesmo tempo que se mantém e reserva para si os privilégios do fisco republicano à custa da existência económica, política e cultural dos Portugueses. Prova disso são as mesmas figuras, sempre as mesmas, a quem se dá, no maior desrespeito pelo povo português, direito de antena nos órgãos radiofónicos e televisivos, como por exemplo os Medina Carreira, os Silva Lopes e toda essa cangalhada de socialistas que hoje vivem a sua reforma choruda apontando o dedo a tudo e a todos menos a eles próprios, como se fossem cidadãos de primeira água e sem culpas num passado bastante próximo.

Além disso, também é verdade que António Quadros, pese embora a sua obra crítica e antevisora do nosso trágico quão dramático destino, não imaginara até que ponto lastímavel e degradante os Portugueses haveriam de chegar. Ainda assim, o Liceu procurará dar ao leitor o conhecimento de algumas passagens da Problemática Concreta da Cultura Portuguesa, numa época em que a esperança era ainda mais viva em virtude, não de um regime largamente situacionista, mas de um Portugal que, para todos os efeitos, e com todos os problemas ora acrescidos, era, apesar de tudo, um Portugal histórica e politicamente existente. Logo, numa linha bastante divergente no que respeita a António Ferro, o autor do livro supracitado deixa, porém, transparecer o respeito quer pela posição assumida pelo pai quer para com Oliveira Salazar, a quem, efectivamente, cita em epígrafe do mesmo livro, a saber: «Estudar com dúvida e realizar com fé».

Entretanto, algo de curioso resulta dessa mesma epígrafe, quanto mais não seja porque também nós sabemos que Álvaro Ribeiro a apreciava enquanto tal, sem que isso, por si só, signifique que o filósofo português solidarizasse a filosofia portuguesa com o salazarismo, coisa que nunca fez e só a perfídia ideológica de um Eduardo Lourenço e outros que tais pode sugerir e academicamente fazer parecer o que não é. Aliás, já que falamos de filosofia portuguesa, o próprio José Marinho não deixava de se referir a Oliveira Salazar como «esse teimoso universitário», qual eco do influxo mental que o filósofo portuense também, em certa medida, recebera da figura altiva e ilustre que fora, sem dúvida, Jaime Cortesão, porquanto, já de si, um forte e contumaz opositor a Salazar, nomeadamente aquando da Guerra Civil Espanhola, chegando mesmo, ao lado de Armando Cortesão, a publicar «na imprensa estrangeira protestos contra a intervenção de Lisboa em favor dos nacionalistas» (cf. Franco Nogueira, Salazar, Livraria Civilização Editora, Vol. III, p. 44). E mais adianta o biógrafo do último monarca perante a respectiva oposição de ordem ideológica e política:

«Mas correm boatos alarmantes: organizada pelo Grupo de Buda, sob o impulso de Moura Pinto, Jaime de Morais e Jaime Cortesão, e com desconhecimento dos exércitos nacionalistas, estava sendo preparada algures em Espanha uma invasão de Portugal; e na fronteira estariam mesmo alguns tanques. Roque de Aguiar escrevia ao chefe do governo, exprimindo as suas preocupações perante a ofensiva comunista; e, de Paris, Virgínia e Castro e Almeida informa Salazar das actividades dos budistas, que seriam coadjuvados pelos serviços secretos britânicos (Efectivamente - anota Franco Nogueira -, a Inteligence inglesa seguia as actividades dos emigrados portugueses em França, para junto dos quais destacara um agente de nome Wilkins; mas não encontrei documento ou indício de que Wilkins, além de colher informações, prestasse ao Grupo de Buda qualquer auxílio contra o governo de Lisboa» – in ob. cit., p. 179).

Dir-se-ia que o permite distinguir, mais fundo e perspicazmente, Oliveira Salazar das insignes figuras da cultura portuguesa foi a singular intuição norteadora da sua acção pragmática que o levou, inclusivamente, a dizer, quando entrevistado por António Ferro, que o professor universitário não é, por natureza, um homem de acção. Ora, uma resposta deste teor de quem fora professor universitário durante uma parte considerável da sua vida poderá parecer uma flagrante contradição, e, no entanto, compreensível se observada à luz das circunstâncias do caminho tomado por quem igualmente se vira no dever de substituir a leitura dos livros pela compreensão dos homens e da vida (Oliveira Salazar, O Meu Depoimento, Edições SNI, 1949, p. 7). E mesmo quando, sabendo o alcance de tudo isso, talvez não o aplicasse tão escrupulosamente na predilecção que manifestava aristocraticamente pelos professores universitários a quem incumbia de constituírem a hierarquia civil do Estado.

Por outro lado, há ainda a questão da “Política do Espírito”, em relação à qual António Quadros tece algumas considerações na Problemática Concreta da Cultura Portuguesa. Como tal, por respeito e reconhecimento pela obra cultural do pai, considera, no entanto, que uma nova fase da cultura nacional, sem desdenho e indiferença para com as vicissitudes pretéritas, se deve traduzir na criação filosófica que caminhe a par da cultura popular espelhada no folclore e na poesia tradicional portuguesa. Nesse sentido, António Quadros reformula, pois, uma restauração da mentalidade lusa segundo directrizes científicas, artísticas e filosóficas que vão, significativamente, além das preocupações de ordem económica, política e cultural do Estado Novo. E embora fale em «centralização cultural», não deve ser esta entendida no sentido de uma planificação centralizadora por parte do Estado, em certos aspectos presentes no regime de então, mas no sentido de uma presença salutar e irradiante do Génio português em todas as actividades, leis e instituições relativas ao carácter fisionómico e espiritual do povo português.

Na sua obra intitulada Prémios Literários, António Ferro define a «Política do Espírito» como fundamental e estruturalmente oposta à política da matéria. Não se trata simplesmente de fomentar o desenvolvimento literário, artístico e científico do povo português, já que, no seguimento de Paul Bourget, em Le Disciple, a questão primacial reside em «estabelecer e organizar o combate contra tudo o que suja o espírito, fazer o necessário para evitar certas pinturas viciosas do vício que prejudicam a beleza, a felicidade da beleza, como certos crimes e taras ofendem a humanidade, a felicidade do homem» Enfim, defender «a Política do Espírito é combater sistematicamente, obra da vida ou obra da arte, tudo o que é feio, grosseiro, bestial, tudo o que é maléfico, doentio, por simples volúpia ou satanismo!» (in Prémios Literários (1934-1947), Edições SNI, 1950, p. 19).

Oliveira Salazar, naturalmente, comungava desta definição, conforme se adianta:

«Quando Bourget pôs em Le Disciple a tese da responsabilidade do escritor pelos efeitos da sua obra na inteligência e na moral dos seus admiradores ou sequazes, parece ter-se operado um movimento de espanto, sobretudo nos que tendiam a formar da literatura e da arte mundos à parte, bastando-se a si próprios, tendo em si mesmos a sua finalidade e razão de ser, e não viam nelas manifestações humanas, integradas na vida e susceptíveis de a embelezar, de a melhorar, de ajudar o homem na conquista dos seus fins superiores. Estes desconheciam as profundas realidades humanas, perderam a rota das grandes certezas morais, criaram o amoralismo e a arte pela arte, como frutos lindos de ver-se mas inaproveitáveis ou nocivos. Na melhor das hipóteses desperdiçou-se o génio, em prejuízo da humanidade.

A tese da responsabilidade pode continuar a discutir-se teoricamente, abstractamente; mas aos homens que sentem sobre os ombros o peso da direcção dos povos ensinou-lhes a História, quando não a observação própria, coincidir a decadência com certas manifestações mórbidas das inteligências e das vontades, com a pretensa emancipação do jugo de regras superiores, impostas ao homem e oriundos da sua natureza e dos seus fins. Para elevar, robustecer, engrandecer as nações, é preciso alimentar na alma colectiva as grandes certezas a contrapor às tendências de dissolução propósitos fortes, nobres exemplos, morigerados.

É impossível, nesta concepção da vida e da sociedade, a indiferença pela formação mental e moral do escritor ou do artista, e pelo carácter da sua obra; é impossível valer socialmente tanto o que edifica como o que destrói, o que educa como o que desmoraliza, os criadores de energias cívica ou morais e os sonhadores nostálgicos do abatimento e da decadência.

As literaturas costuma dizer-se que são o espelho das diferentes épocas; mas se tão fielmente as reflectem, é que ajudaram a criá-las. Neste momento histórico, em que determinados objectivos foram propostos à vontade nacional, não há remédio senão levar às últimas consequências as bases ideológicas sobre as quais se constrói o novo Portugal. Cremos que existe a verdade, a justiça, o belo e o bom; cremos que pelo seu culto os indivíduos e os povos se elevam, enobrecem, dignificam; cremos que ao alto sacerdócio de buscar e transmitir a virtude, é inerente a responsabilidade pelas devastações acumuladas nas almas e até pela inutilidade da obra produzida» (in Prémios Literários, pp. 11-12).

Nisto, poder-se-á objectar, invocando as palavras de José Régio, que há uma tendência para o «sectarismo voluntarioso, o dogmatismo sufocante, o propagandismo brutal, o simplismo sistematizado (…) inculcados aos novos como virtudes indispensáveis e modernas» (cf. Em Torno da Expressão Artística, Editorial Inquérito, p. 9). Talvez assim seja, pese embora seja de distinguir, em termos conceituais e até de oposição ideológica, a «Política do Espírito» da infraliteratura comunista ou, como então se designava, de neo-realista. Aliás, como dizia, para além disso, José Régio, «não faço o mínimo empenho em ser do meu tempo».

Fiquemos então, sem nos alongarmos mais, com algumas passagens da Problemática Concreta da Cultura Portuguesa, desejando, sincera e honestamente, que a Fundação e a Família Quadros enriqueçam a pobre mas providencial cultura portuguesa.
 

Miguel Bruno Duarte
in "Liceu Aristotélico"