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Carta a António Ferro

Peço desculpa da ousadia de escrever-lhe, não me conhecendo o Senhor António Ferro nem de nome. Mas talvez o nome de Eça de Queiroz, ou melhor, o do Círculo que tem o grande escritor como patrono – por sugestão do brilhante espírito de António Lopes Ribeiro -, talvez esse nome seja um cartão de visita para me apresentar ao Senhor António Ferro.

Calculo que o Círculo Eça de Queiroz lhe desperte muitas e gratas recordações. Para um espírito criativo e insatisfeito como o seu, que conseguia tornar realidade os sonhos, um clube, mas diferente dos outros clubes, lhe parecia um projecto, mais um, a lançar. Não um clube na grave tradição inglesa e ao gosto machista do português – um clube só de homens -, mas franqueado às senhoras que põem uma nota de graça, elegância e sensatez num ambiente em que a boa conversa poderá derrapar para a má língua. Se desde a criação do Círculo, e por expresso propósito do seu fundador, as portas se abriram às senhoras, elas são hoje, não apenas convidadas por um dever de cortesia, mas sócias de pleno direito, como tais eleitoras e elegíveis para cargos directivos. Mudam-se os tempos…. O senhor António Ferro, sempre avançado sobre o seu tempo, há-de gostar desta novidade, As damas só são indesejáveis quando pretensiosamente sabichonas ou estupidamente fúteis.

Um clube fundado por um escritor e que tem por patrono um escritor não é porém um clube de escritores, porque aberto a todas as profissões. É  a diversidade que gera a riqueza, com a permuta de ideais e experiências. E contra o unilateral espírito sectário, o Círculo, honrando, como lhe cumpre, a memória de Eça, não exclui outros escritores, a começar por Camilo dando a cada qual o que é seu, segundo um princípio que, na harmonia dos contrários, busca a complementaridade. A arte de Camilo brota da raiz; da arte de Eça desabrocha a flor. Sem raiz não há flor, sem flor não há graça.

As instituições, sejam elas quais forem – ordens religiosas, clubes sociais ou organismos de cultura -, poderão aperfeiçoar-se tanto mais quanto maior for a fidelidade ao espírito do fundador. O Círculo avança ao seguir os passos do fundador e seu primeiro director, naturalmente com as correcções impostas pela marcha do tempo. Outra é a cidade, outro o país, outro o mundo e a mentalidade. Mas as alterações indispensáveis não devem traduzir-se em gosto da mudança pela mudança, desrespeito pelo passado e pelo património granjeado pelas gerações anteriores. O Senhor António Ferro é todo o oposto do imobilismo bovino e ruminante, incapaz de acrescentar um côvado ao que herdou. Como na parábola dos talentos, há gente que se limita a restituir, a exemplo do prudente administrador, o que lhe foi confiado. Ora o Senhor António Ferro, além de constituir o capital da instituição, aumentou-o sempre. Mas, se é possível segui-lo aí, quem o pode limitar no rasgo e na capacidade de tornar fértil o deserto? E embora o meio não dê, como reconheceu num artigo dos começos dos anos 20, reagiu ao comodismo e à mediocridade abrindo portas fechadas e navegando mesmo contra ventos contrários.

Se me fosse concedido tempo e vagar, ainda gostaria de escrever, mesmo com lacunas, sobre a acção do fundador do Círculo. Um aspecto eu tomaria a peito focar: o dos visitantes ilustres ou dos grandi ospiti (para lembrar o título do livro de G.B. Angioletti), visitantes que, a seu convite, vieram ao Círculo falar ou, simplesmente, conviver: Maeterlinck, Marañon, tantos outros.

Na hora da despedida, quando penso na sua acção e, ai de mim, nos meus pecados de omissão, sinto-me confundido. Pecados (digo para justificar-me) cometidos, não por culpa subjectiva, mas por culpa objectiva: falta de meios materiais e humanos. Por isso, não se fizeram coisas que se pensaram e até prometeram. A que mais me custou foi a não publicação das conferências proferidas no centenário queiroziano de 2000 (como aconteceu, por sua iniciativa e gosto gráfico, no ano centenário de 1945). Mas o subsídio prometido acabou por não vir, e teve de sacrificar-se a edição do livro porque outras despesas houve que fazer, e urgentes: reparações na nossa sede, muito afectada por grandes obras na vizinhança. Viveram-se maus momentos, tiveram de fechar-se as portas, na incerteza de quando e como se voltariam a abrir. Valha-nos a preocupada atitude de algum sócio que se lamentava unicamente de não poder ir almoçar ao Círculo….

Agora que já se pode fazer um balanço do que se fez e, sobretudo, do que não se fez, há como um sentimento de fracasso. Mas, se alguma coisa serve de conforto, é o testemunho do Senhor António Ferro que, tendo realizado tanto – dir-se-ia que tudo -, vem confessar, nas páginas privadas do seu melancólico diário, a falência da sua acção. Quando a sua imagem pública é a de um vencedor, eis que, na sua confissão em surdina, se lamenta de ser um vencido.

Não um vencido por atitude estética, a exemplo dos escritores da Geração de 70, mas como homem activo que, na hora crepuscular da retirada, verifica. Como o Ega, que falhou. Falhámos a vida, menino! E nessa falência inclui uma obra literária em fragmentos, intuições, paradoxos, toda de páginas febris de jornalismo e reportagem.

Retratado por um pintor espanhol, num quadro hoje exposto no Salão Nobre o Círculo, o Senhor António Ferro aparece pesadamente sentado, segurando Os Lusíadas e com o Castelo de S. Jorge como pano de fundo. Imagem convencional, estática e passadista de um homem que vemos sempre de pé, ainda que sentado, caminhando com desembaraço ao encontro do futuro. Imaginamo-lo, mais facilmente, como um livro de greguerías de Ramón Gómez de la Serna ou de um dos seus companheiros da Semana de Arte Moderna de São Paulo, como provocador Oswald de Andrade e a sua Revista de Antropofagia. E, como décor, um cenário pintado por Léon Bakst para os Ballets Russes.

E nesta onda de fantasia permita-me o Senhor António Ferro surpreendê-lo no Círculo, na companhia de Ramón, com a sua inextinguível verve ou o seu ramonismo… Mas, em 1940, já o seu amigo Ramón se fixara, definitivamente, em Buenos Aires. E o também amigo Unamuno já partira, antes de Rámon, para um continente muito mais longínquo e de onde não se regressa; a eternidade, esse enigma ou essa Esfinge que ele interrogara agonicamente.

Não devo abusar mais da sua paciência em ouvir-me, embora desejasse prolongar esta conversa epistolar. Tantas coisas ainda para dizer, tantas perguntas a fazer, como se eu quisesse entrevistar o brilhante entrevistador. Antes de terminar, ainda lhe confidenciarei que sonho às vezes um clube diferente – um clube reservado aos grandes aventureiros do espírito, inimigos do lugar-comum e do conformismo. Clube em que estaria, por direito próprio, o Senhor António Ferro e, só para citar mais um nome, o seu amigo Mircea Eliade,

Cumprimentos do seu admirador
João Bigotte Chorão