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 Sei enfim o que aconteceu

(Ah! Sei enfim o que me aconteceu.
Subitamente, compreendi:
eu já morri,
porém a minha morte
ainda se esconde em mim
e não chegou ainda à superfície.
Como as estrelas mortas
que ainda brilham no céu,
assim sou eu!)

Ai, a estrela,
a minha estrela!
Como pude esquecê-la,
não esta, que está morta,
mas a outra, tão bela?!
- «Avó, quantas estrelas há no Céu?»
- «Duas, Maria da Lua:
a minha e a tua.»
- «Eu também tenho uma estrela?»
- «Tens, Maria da Lua.»
- «E qual é? Onde está?»
- «Não sei, tens de escolhê-la.»
E escolhi, escolhi a maior,
não por ser a mais bela,
mas para vê-la melhor,
a minha estrela.
era tão grande o seu fulgor
Que uma noite pensei:
«Não será ela
a Estrela de Belém,
a Estrelas dos Reis Magos?»
A minha Avó sorriu:
- «Porque não?
Cada estrela
é um caminho de luz
para Jesus.»

Andava então
a preparar-me
para a minha primeira Comunhão.
(Doce recordação de terços e novenas,
de murmúrios de rezas, de ramos de açucenas.)
O cabelo frisado,
rosas brancas na mão,
o vestido engomado,
um pássaro assustado
no coração.
O sino da Capela,
as imagens do altar,
e a alma a palpitar
como a pequena chama
duma vela.
(Igreja dos vinte anos,
também tu me viste ajoelhada
no teu altar de esperança.
Velha igreja onde fui baptizada,
e depois fui casada,
também tu me ficaste
para sempre gravada na lembrança.
E tu também,
Igreja da Saudade,
onde, no tempo morto
duma manhã de Outono,
Ele dormiu, enfim liberto, o derradeiro sono.)

Ah, não, como esquecê-lo,
esse dia irreal de Comunhão,
em que senti maior,
mais puro o coração?
Deram-me coisas lindas, das que os anjos
também têm no Céu:
Nossa Senhora vestida de azul,
um colar de coral,
um véu branco de tule,
medalhinhas de prata
e um missal.
Já mil anos passaram
desde então,
mas nada se perdeu
desse dia distante,
de glória, de vergonha e de perdão.
Irmãos, Primos, Amigos,
olhavam para mim de forma estranha,
com um misto de respeito
e de despeito
que não entendo ainda.
Respeito por me verem sossegada,
penteada,
sem nódoas no vestido
nem arranhões nas pernas,
pelos sorrisos,
pelas frases ternas
da família.
Despeito
pelos pratos de arroz-doce
com o meu nome em canela,
pela música, as flores, o incenso
da Capela,
pelas prendas que me enchiam a cama
e pelas atenções da minha Ama.
(Fosse pelo que fosse,
por isto ou por aquilo,
pelo arroz-doce,
por mimos ou desvelos,
nenhum deles me puxou pelos cabelos.)
Eram sete, os rapazes… sete lobos
em busca de cordeiro;
sete corsários dum navio-fantasma
perdido no nevoeiro;
sete piratas em busca de aventuras
no sótão às escuras;
sete cow-boys,
sete ladrões de gado;
sete soldados,
sete sheriffs, sete generais
a guerrear galinhas e pardais;
sete bandidos,
sete aventureiros
em busca de tesoiro…
sete toureiros à procura de toiro…
Nesse dia, porém, eu não fui toiro,
nem refém de soldado,
nem presa de pirata,
nem cavalo roubado.
Nesse dia feliz
eu fui apenas a menina de branco,
emocionada, que fez com devoção
a sua doce, grave, primeira Comunhão.
Eram sete, os rapazes…sanguinários
como animais da selva perseguidos,
mas só então, nesse dia de paz
e de bandeiras brancas,
eu tive medo.
Um deles era loiro,
o Príncipe, talvez,
da Bela Adormecida.
Tinha cabelos de oiro,
olhos de céu,
e a Princesa era eu.
Não tinha diademas,
nem mantos de brocado,
nem preciosas gemas…
tinha sapatos rasos,
tinha trança caída
e bibes de riscado,
mas era eu
a Bela Adormecida.
Nesse dia levou-me pela mão:
- «Vou dizer-te um segredo…» -
e foi então que tive medo.
Não entendi o que me disse…
Mostrou-me um coração
Entrelaçado com grinaldas de flores,
desenhado com tintas e com lápis de cores,
puxou-me para si e disse-me em segredo:
- «Gosto de ti.»
Foi então que tive medo,
medo e uma estranha vergonha
daquela voz desconhecida,
e da peçonha
do olhar com que me olhou
e que não era o dele.
Então rasguei,
dilacerei
o coração de tinta e de papel,
e com a ira, o fel
daquela dor sem nome,
bati, bati às cegas
até cair no chão
a soluçar. Inconsciente,
perverso ou inocente,
o Príncipe Encantado,
batido e arranhado,
foi contar.
Angustiada,
a minha Mãe olhou-me longamente
mas logo me sorriu:
- «Pateta, não foi nada.»
Ansiosa, a minha Ama,
com o sangue vermelho
a ferver-lhe nas veias,
perguntou-me, furiosa:
- «Bateu-te? Fez-te mal?
Disse-te coisas feias?»
Abanei a cabeça, disse não,
sem coragem para falar.
Então alguém disse, indignado:
- «Deviam castigá-la. É um bicho selvagem.»
Deixaram-me enfim só,
e foi então que a minha Avó
se aproximou, inquieta,
e me disse, grave e pálida:
- «Pobrezinha, é a vida…
A borboleta a sair da crisálida…»
E repetiu, com um triste olhar,
- «É a Vida,
A Bela Adormecida
que está quase a acordar…»
Nada entendi
desta música vaga,
mas, ao beijar-lhe a mão,
uma luz de perdão
curou-me enfim a chaga.
Já quase nada lembro desta imagem,
mas quem o disse então
tinha razão:
era um bicho selvagem.

Cresci,
domesticou-me a vida sem clemência,
mas como foi difícil, dolorosa,
a minha adolescência!
A minha alma era uma rosa brava.
Espinho a espinho,
rasgaram-lhe a inocência,
corromperam-lhe a essência.
No meu corpo secreto não tocaram.
Cerrei os olhos, tapei os ouvidos,
fechei à chave os meus cinco sentidos,
atravessei, sozinha e pura,
a ponte para a Vida,
para a Dor,
e só então eu aceitei o Amor.

O Amor…
Chegou, leve e inocente,
como aragem, gorjeio
ou pétala de flor,
e tudo foi milagre
em meu redor:
as cinzas deram brasas,
as pedras deram flor,
os braços deram asas.
Duas estrelas
caíram-me nos olhos.
O sol veio morar dentro de mim
e em cada vaso das janelas
eu plantei um jardim.
Mas a hora passou…
Começou a entardecer,
a anoitecer,
murchou-me o coração,
e o meu primeiro amor
desfez-se como bola de sabão.
Depois…
Depois a vida começou a sério.
Degrau após degrau
fui subindo as escadas do mistério.

Então deitei raiz,
e adubada com dor,
dolorosa e feliz,
duas vezes dei flor.

Depois…depois
a luz foi-se apagando…
a alma foi subindo,
o corpo foi baixando,
e o cavalo de fogo,
em linha recta,
lá vai com rumo ao Sol,
na direcção da Seta.

Agora já não chove…
Um raio de luar
e um Anjo de asas brancas
vieram-me buscar.
(Ou estarei a sonhar
o meu sonho de paz e de perdão,
de glória e redenção,
o mais belo de todos,
o da Festa?)

Por uma estrada azul
E entre nuvens de cores,
Eu deslizo, radiosa,
com vestidos de tule
e grinaldas de flores.
O caminho é de plumas,
o som, de harpas eólias,
o Palácio, de lua e de cristal,
o aroma, de jasmins e de magnólias.
Ondas de luz,
milhões de velas,
inúmeras estrelas,
iluminam as salas.
Harpas, liras, violinos,
sublinham em cadência
a música dos gestos
e das falas.
Há festa no Palácio
e eu deslizo apressada,
atrasaram-me as nuvens do caminho
e as pétalas de arminho
da Lua desfolhada.
Mas chego enfim,
abrem-se, enfim, as portas de cristal,
e tudo o que era dor,
e que era mal,
agora se transforma e se reduz
a música, a perfume,
a deslumbrante luz.
Amigos, Conhecidos,
acenam-me de longe.
Como estão belos, como estão felizes!
Que fizeram ao tempo, às cicatrizes
da vida mal vivida?
Ao vê-los, dir-se-ia
que andavam mascarados
com máscaras de dor,
e que, transfigurados,
só agora os seus rostos
têm a luz, a cor
que Deus lhes destinara.
Então alguém sorri-me, doce e clara
como pétala branca de luar,
 e em leves passos,
silenciosos passos,
devagar,
aproxima-se e estende-me em silêncio
os carinhosos braços.
Só então,
trémulo de esperança
o coração,
eu reconheço nesse alguém
a minha Mãe.
Mas então,
se a minha Mãe morreu
e estou a vê-la,
se a minha Mãe morreu
e posso vê-la,
é porque estou no Céu,
porque morri também.
Olho de novo em meu redor,
olho melhor,
e o Palácio de lua,
as harpas, os violinos,
os perfumes, as flores,
os vestidos antigos,
tomam novo sentido,
e reconheço então os meus amigos…
Luzia, Irene…Branca…
(Na terra, não ouvias
para ouvires melhor
as melodias
do Céu,
que é hoje teu.)
Então vejo o meu Pai que me pergunta
com a sua mesma voz
um pouco rouca,
e o seu sorriso malicioso e bom:
- «Que tens na boca?»
E, como há quarenta anos, eu respondo
falsamente confusa:
- «Bâton.
Agora é moda, toda a gente usa.»
O Tio António,
feliz e sem idade,
toca enfim à vontade
uma flauta de cana
que Deus lhe ofereceu.
A Tia Emiliana,
sem rugas e sem gelhas,
tem um leque na mão
e sobre o coração
duas rosas vermelhas.
Mais Tias, mais Amigas, mais Parentes…
A minha Bisavó,
sentada numa nuvem
entre anjos
e arcanjos,
conta a duas Meninas,
ainda há pouco chegadas,
uma história de Fadas,
e elas riem,
beijando-lhe as mãos finas.
A Ele vejo-o mal,
talvez porque a saudade
é como um nevoeiro
nos meus olhos cansados.
Faz-me, porém, sinal,
e lá vamos os dois
pelos salões doirados
do Palácio de lua e de cristal,
suspenso duma estrela.
Chego então à janela,
e sem temor
estendo os braços,
gritando aos que ficaram
lá em baixo
à minha espera:
- «Venham todos, aqui é Primavera…
Nem medos, nem cansaços,
nem angústia, nem dor,
nem culpas, nem castigos…
Venham todos, Amigos!»

(Onde estou, afinal?
Metade, aqui deitada,
a pensar no meu estranho aniversário,
o resto, a galopar
na metade cavalo do meu signo
de Sol e Fogo,
o Sagitário?)

onde estou, afinal?
Hoje, tantos de tal,
faço anos. Cem anos.

Fernanda de Castro, in «A Ilha da Grande Solidão», 1962