Bibliografia Passiva

ANTÓNIO FERRO: BIBLIOGRAFIA PASSIVA e ALGUMAS OBRAS ASSOCIADAS

Obra publicada

1933

Oiça, António Ferro!

Autoria: Artur Inês,

Lisboa: edição de autor, 1933.

 

1960

António Ferro e a Politica do Atlântico. Saudade… dos Estados Unidos da Saudade…

Autoria: Gastão de Bettencourt. Prefácio de Martinho Nobre de Mello.

Lisboa: edição de autor, 1960.

 

1963

António Ferro.

Autoria, selecção, prefácio e comentários: António Quadros.

Lisboa: SNI, Edições Panorama, 1963.

 

1986

Obras de António Ferro – Intervenção Modernista – Teoria do Gosto.

Coordenação, selecção e organização: António Quadros. Prefácio de António Rodrigues.

Lisboa: Editorial Verbo, 1986.

 

1990

António Ferro. Estudo e antologia.

Autoria: Raquel Pereira Henriques.

Lisboa: Publicações Alfa, 1990.

 

1994

António Ferro. Espaço Político e Imaginário Social (1918-32)

Autoria: Ernesto Castro Leal.

Lisboa: Edições Cosmos, 1994.

António Ferro na Idade do Jazz Band. Ensaio.

Autor: António Rodrigues.

Colecção "Estudos de Arte", n.º 12. Lisboa:  1995. Livros Horizonte.

Estado Novo e Propaganda em Portugal e no Brasil – O SPN/SNI e o DIP.

Autoria: Heloísa Paulo.

Coimbra: Edições Minerva, 1995.

 

1997

António Ferro e a sua Politica do Espírito.

Autor: Fernando Guedes.

Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1997.

 

1999

Os Anos de Ferro. O dispositivo cultural durante a “Politica do Espírito” 1933-1949

Autoria: Jorge Ramos do Ó.

Lisboa: Editorial Estampa, 1999.

Retrato de uma família: Fernanda de Castro, António Ferro, António Quadros. Fotobiografia.

Autoria: Mafalda Ferro; Rita Ferro.

Lisboa: Círculo de Leitores e autoras, 1999.

Verde-Gaio. Uma Companhia Portuguesa de Bailado (1940/1950)

Coordenação: Vítor Pavão dos Santos.

Lisboa: Museu Nacional do Teatro, 1999.

 

2001

Cecília em Portugal. Ensaio biográfico sobre a presença de Cecília Meireles na terra de Camões, Antero e Pessoa.

Autoria: Leila V. B. Gouvêa.

Lisboa: Editora Iluminuras,  2001.

Salazarismo e Cultura Popular (1933-1958)

Autoria: Daniel Melo.

Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2001. Estudos e Investigações n.º 22.

 

2003

O Baile do Turismo. Turismo e propaganda no Estado Novo.

Autoria: Ema Cláudia Pires.

Lisboa: Caleidoscópio, 2003.

 

2006

Com un Sogno nel Bagaglio. Un Viaggio di Pirandello in Portugallo.

Autoria: Maria José de Lencastre.

Palermo: Sellerio editore, 2006.

 

2011

Delfim Santos e a família Castro e Quadros Ferro.

Coordenação: Mafalda Ferro.

Organização, estudo introdutório e notas: Filipe Delfim Santos.

Lisboa: Fundação António Quadros, 2011.

 

2012

Turismo em Portugal. Passado, Presente. Que futuro?

Coordenação e prefácio: Mafalda Ferro.

Lisboa: Fundação António Quadros, 2012.

 

2013

António Ferro. A vertigem da Palavra. Retórica, política e propaganda no Estado Novo.

Autoria: Margarida Acciaiuoli.

Lisboa: Editorial Bizâncio, 2013.

Mircea Eliade em Portugal 1941-1945.

Autoria: Rosa Fina:

Lisboa: Pearlbooks, 2013.

 

2015

Com um Sonho na Bagagem. Uma Viagem de Pirandello a Portugal.

Autoria: Maria José de Lencastre.

Lisboa: Dom Quixote, 2015.

Pousada de São Brás 1944 | 2014

Coordenação: Cristina Fé dos Santos.

Nota introdutória: Rita Ferro.

São Brás de Alportel: Casa da Cultura António Bentes – Museu do Traje de São Brás de Alportel, 2015.

António Ferro: o inventor do Salazarismo.

Autoria: Orlando Raimundo.

Lisboa: Dom Quixote, 2015.

Cottinelli Telmo: os arquitectos são poetas também.

Coordenação: Margarida Kol de Carvalho; Maria Cecília Cameiro; João Paulo Martins.

Lisboa: EGEAC, 2015.

 

2016

António Ferro: 120 anos. Actas.

Coordenação: Mafalda Ferro.

Lisboa: Fundação António Quadros | Texto Editores, 2016.

História do Livro e Filologia.

Autoria: Artur Anselmo.

Lisboa: Guimarães, 2016.

António Ferro: um homem por amar.

Autoria: Rita Ferro.

Lisboa: Dom Quixote, 2016.

Exposição do Mundo Português: explicação de um lugar.

Coordenação: Margarida Magalhães Ramalho: Margarida Cunha Belém.

Lisboa: Fundação Centro Cultural de Belém, 2016.

The Portuguese World Exhibition: Explaining Belém.

Coordenação: Margarida Magalhães Ramalho: Margarida Cunha Belém.

Tradução: Stewart Lloyd-Jones.

Lisboa: Fundação Centro Cultural de Belém, 2016.

 

2017

Orpheu e o Modernismo Português. Livro do Colóquio.

Coordenação: Paulo Samuel.

Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 2017.

José Coelho Pacheco: o falso semi-heterónimo de Pessoa.

Autoria: Ana Rita Palmeirim.

Textos: Richard Zenith; Fernando Cabral Martins.

Edição: Lisboa: BN, 2017.

 

2019

A Herança de António Ferro: Museu de Arte Popular.

Autoria: Alexandre Oliveira.

Lisboa: caleidoscópio, 2019.

 

TESES E DISSERTAÇÕES

Inéditas

António Ferro e o Nacionalismo Imaginário, Ideologia, Organização (1919-1926) - Autoria: Ernesto Castro Leal.

Dissertação de Mestrado em História na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,1988.

 

Análise Socio-Cultural da Figura de António Ferro. "Do Fervor Modernista ao Desencanto do Poder Instituído".

Autoria: Cidalisa Ludovino Guerra.

Dissertação de Mestrado em Cultura Portuguesa Contemporânea apresentada à Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Junho de 2002.

 

Som, Corpo e Imagem. Estratégias de comunicação nos Bailados Portugueses Verde-Gaio.

Autoria: Rosa Paula Rocha Pinto.

Dissertação apresentada ao Centro de Estudos em Sociologia e Estética Musical (CESEM) da Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 2002.

 

Museu de Arte Popular - Antecedentes e Consolidação (1935-1948)

Autoria: Maria Micaela Deyris de Barthez de Marmouriéres de Bragança.

Dissertação de Mestrado em Museologia e Património apresentada à Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Lisboa, 2007.

 

Camponeses Estetas no Estado Novo: Arte Popular e Nação na Política Folclorista do Secretariado da Propaganda Nacional.

Autoria: Vera Marques Alves.

Tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Antropologia do ISCTE, Departamento de Antropologia, 2007.

 

Um instrumento de consenso: Panorama – revista portuguesa de arte e turismo (1941-1950).

Autoria: José Guilherme Victorino.

Tese de Doutoramento apresentada à Universidade Complutense de Madrid, Faculdad de Ciencias de la Información, Dep. de Periodismo III, 2007.

 

O cinema português e António Ferro. Aspectos da Política do Espírito nos prémios cinematográficos do S. N. I. (1944 - 1950).

Autoria: Maria Miguel Silva Pereira.

Dissertação de Mestrado em História da Arte Contemporânea apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, Março de 2009.

 

O “Alquimista de Sínteses”: António Ferro e o Cinema Português.

Autoria: Carla Patrícia Ribeiro.

Dissertação de Mestrado em História Contemporânea apresentada à Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 2010.

 

A Bem da Nação. As Representações Turísticas no Estado Novo entre 1933 e 1940.

Autoria: Cândida Cadavez.

Tese de doutoramento em Estudos de Literatura e de Cultura (Ciências da Cultura), apresentada á Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 2013.

 

Imagens e representações de Portugal: António Ferro e a elaboração identitária da Nação.

Autoria: Carla Patrícia Ribeiro.

Tese de doutoramento em História apresentada à Universidade do Porto, Faculdade de Letras, 2014.

 

António Ferro: Modernismo e Nacionalismo.

Autoria: Isabel Maria Morão Teixeira Lino Ferreira.

Dissertação de Mestrado em Ciência Politica apresentada à Universidade da Beira Interior, Outubro de 2014.

 

Estrelas e Ases: o retrato fotográfico em Portugal (1916 - 1936).  

Autoria: Paulo Ribeiro Baptista.

Tese de doutoramento em História de Arte, defendida em 2016.

Orientação científica: Margarida Acciaiauoli.

 

 

Museu de Arte Popular
O regresso do museu que se recusou a morrer 

Criado no Estado Novo, mal-amado quase desde o início, pior amado depois do 25 de Abril, o Museu de Arte Popular fechou, esteve para acabar e transformar-se no Museu da Língua. Afinal, voltou como Arte Popular. Esta terça-feira abre as portas por um dia para mostrar porque é valeu a pena ter sobrevivido.

Há quatro anos, estávamos nesta sala a assistir ao fim do Museu de Arte Popular (MAP). A então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, chamou os jornalistas e comunicou-lhes que o espaço, que se encontrava encerrado, iria ser transformado no novo Museu do Mar da Língua.

Havia já um projecto de arquitectura que previa que as pinturas murais fossem emparedadas - quem quisesse vê-las teria que se encolher e espreitar por detrás das paredes falsas. Dificilmente alguém acreditaria que aquele não era o fim do museu inaugurado em 1948 por António Ferro, director do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN) e com que o Estado Novo quisera celebrar a cultura popular.

Mas, contra tudo e contra todos, o museu conseguiu expulsar a Língua e as paredes falsas, e reabre agora as portas para uma inauguração antecipada de um dia. Só será verdadeiramente inaugurado no último trimestre do ano, mas, amanhã, Dia dos Museus, o MAP vai mostrar-se de novo à cidade (entre as 10h e as 18h, com visitas guiadas, oficinas de artesanato e teatro).

Estamos de volta à mesma sala e o que se vê são técnicas da Fundação Ricardo Espírito Santo, no cimo de andaimes, a trabalhar no restauro das pinturas murais. Afastada a ameaça de emparedamento, os grandes painéis que decoram as paredes das várias salas são, num museu que ainda não recuperou a sua colecção (guardada temporariamente no Museu de Etnologia, mas pronta a regressar), o centro das atenções.

Há o painel de Lisboa, em tons de amarelo e azul, com peixeiras, manjericos, Santo António e fado (pintura de Paulo Ferreira, 1948), há, do mesmo autor, Terra Saloia, permanente romaria da Estremadura, Ribatejo, arte popular da bravura, e Nazaré, ex-voto do Mar Português. Tomás de Mello (Tom) e Manuel Lapa pintaram, logo na primeira sala, Minho, caixa de brinquedos de Portugal. As Beiras couberam a Carlos Botelho, o Alentejo a Estrela Faria, Trás-os-Montes a Eduardo Anahory, a Tom e a Manuel Lapa, e o Algarve novamente aos dois últimos.

"Como é que passou pela cabeça de alguém que era possível ocultar estas pinturas?", indigna-se o crítico de arte Alexandre Pomar, um dos activos defensores da continuação do MAP (juntamente com a historiadora de arte Raquel Henriques da Silva, a empresária Catarina Portas, e as artistas Joana Vasconcelos e Rosa Pomar, que chegaram a ir bordar para a porta do museu como protesto), e que no seu blogue (alexandrepomar.typepad.com) tem reunido uma enorme quantidade de informação sobre a história do museu.

"Não têm a componente política de serem artistas da oposição, mas não são menos valiosos por isso", defende, referindo-se à equipa de pintores modernistas reunida por Ferro. "São representantes de um compromisso dos pintores modernistas, uma modernidade pacificada. Este é o momento que melhor sobreviveu do trabalho dessa equipa que se destacou na Exposição do Mundo Português em 1940 [para a qual foi construído o primeiro pavilhão, o da Vida Popular, que viria a ser adaptado para o MAP pelo arquitecto Jorge Segurado] e em exposições internacionais", como a das Artes e Técnicas da Vida Moderna, em 1937, em Paris.

O capitão Henrique Galvão [que viria a celebrizar-se pelo afastamento do regime e o assalto ao paquete "Santa Maria"] "atacou ferozmente aqueles pintores, acusando-os de um cosmopolitanismo europeu quando a arte portuguesa devia desenvolver a sua relação com o Ultramar", explica Pomar.

"Esse apelo que Ferro faz à estética modernista em conjunto com a valorização da arte popular tem muito a ver com o seu contacto, logo desde os anos 20, com o movimento modernista, nomeadamente na Semana da Arte Moderna, em 1922 em São Paulo", sublinha Vera Marques Alves, antropóloga e autora da tese Camponeses Estetas no Estado Novo.

"Ele faz essa afirmação da identidade nacional através da reinvenção da estética popular já na [revista] Ilustração Portuguesa [início dos anos 20] e em 1921 fala na criação de bailados portugueses que recuperem o folclore, ideia que mais tarde leva à criação do Grupo de Bailado Verde Gaio." É uma alternativa à História dos grandes feitos e heróis, e "a estética contemporânea é uma forma de mostrar a arte popular como afirmação de uma nação plena de vitalidade no presente" e não a viver de glórias passadas.

O que é o "popular" hoje?

O MAP "é um projecto que vem de 1936, altura em que é completamente contemporâneo", explica Vera Alves. Mas sofre atrasos e em 1948, quando abre, "já está um bocadinho fora do tempo". É sobretudo um projecto de Ferro, diz a investigadora, e "nunca é muito acarinhado pelo regime". Sofre sempre de problemas estruturais, só tem electricidade em 1952, nos anos 60 corre o risco de fechar, mas o seu exterior serve de palco, no final dessa década, ao Mercado da Primavera, que, depois do 25 de Abril, se transforma no Mercado do Povo.

Mas, ao contrário dos outros museus do seu tempo, o MAP sobreviveu, congelado, praticamente esquecido. Chegou "intacto até hoje e é isso que o torna um caso único", defende o antropólogo João Leal. "É raro encontrar exemplos de museus que tenham sobrevivido tanto ligados ao seu projecto inicial."

O que se faz hoje de um museu assim? "É importante mostrá-lo como produto de um determinado discurso que teve a sua época e que pode ser desconstruído", diz João Leal. E abri-lo às expressões das culturas populares de hoje. "Durante muito tempo, elas eram valorizadas como testemunho de um mundo em extinção. Procurava-se o que era autêntico, legítimo, o menos tocado pelas culturas urbanas."

Hoje sabe-se que nunca nada esteve nesse estado puro e que as culturas populares foram sempre híbridas e inseridas em dinâmicas históricas. É possível "pôr em diálogo o popular e o erudito", assumir a hibridização do popular, afirma Leal, lembrando as queens (rainhas) das festas do Espírito Santo, nos Açores, uma influência dos emigrantes que foram para os Estados Unidos e o Canadá.

É a Andreia Galvão, directora do MAP e autora de uma tese sobre o arquitecto Segurado, que cabe a tarefa de "descongelar" o museu. Como? Primeiro, assumindo este museu-documento como uma cenografia que ele sempre foi (Segurado falava na arquitectura como cartaz, lembra Galvão), nesse conjunto "indissociável" entre arquitectura, pinturas murais (com as frases que as acompanham, que terão sido inventadas pela poeta Fernanda de Castro, mulher de Ferro) e a colecção.

Para já, o MAP, com uma equipa ainda pequena mas com um "corpo de voluntariado notável", será um "museu em obra", aberto a quem queira ver como vai nascendo - isso acontecerá no site que será apresentado amanhã, e no qual será possível marcar visitas guiadas ou fazer inscrições nos ateliers de Verão. O exterior, que está degradado, vai também ser recuperado.

Haverá núcleos de memórias. "Estamos a trabalhar com a Cinemateca, teremos filmes de época, sobre a Exposição do Mundo Português e não só, vamos recorrer a muitos documentos da época. Com o Museu do Traje estamos a estudar a possibilidade de trazer o núcleo ligado ao Grupo de Bailado do Verde Gaio", explica a directora. A colecção de fotografias do "povo português" em trajes tradicionais, que estava nas paredes do museu e foi guardada no CCB quando ele fechou, já está de volta e vai ser recuperada.

A colecção só regressará do Museu de Etnologia para a reabertura definitiva, mas para já será possível ver o mobiliário expositivo da época, de Jorge Segurado e Tom, que está a ser recuperado.

Haverá também núcleos interpretativos temáticos ligados aos diferentes espaços no museu. E, claro, a ligação à contemporaneidade: "Vamos explorar o conceito de contemporâneo na arte popular, trabalhar coisas como a reutilização de materiais orgânicos ou a investigação tecnológica no ramo das técnicas tradicionais." O MAP será ainda "uma embaixada do país em Lisboa" aberto às comunidades "para mostrarem o melhor que tenham, da gastronomia às festas".

Só muito poucos acreditaram que seria possível. Mas amanhã o MAP vai provar que há museus que se recusam a morrer.

Alexandra Prado Coelho
in Jornal "Público", 17.05.2010

 

Uma abordagem preliminar a 60 anos do Museu de Arte Popular
Alexandre Oliveira (bolseiro de doutoramento FCT, Departamento de Antropologia ISCTE-IUL, Museu Nacional de Etnologia)

Um dos elementos relevantes para a presente discussão em torno do Museu de Arte Popular é o facto de que ao longo dos seus 60 anos de vida, o museu não ter sofrido grandes alterações arquitectónicas e, menos ainda, no seu discurso expositivo. Tal constatação levou a que, no debate público decorrido nos últimos anos, o conceito de que o MAP teria entrado em decadência logo após a sua inauguração fosse tomado como facto adquirido, pressupondo-se a existência de um desinteresse tanto dos organismos de tutela como também das suas direcções.
Os dados que tenho vindo a recolher nos arquivos do MAP e nos do SPN / SNI indicam uma realidade diferente. Desde a sua abertura, as sucessivas direcções procuraram sempre melhorar o MAP propondo a criação de áreas técnicas de trabalho, a ampliação da área expositiva e redefinições da sua museografia. Se em alguns casos os organismos tutelares do MAP se mostraram interessados e foram até agentes dessa mudança, na maior parte dos casos a conjuntura política e as limitações orçamentais acabaram por frustrar as propostas das direcções do museu. Quero com este breve resumo contribuir para o debate sobre o MAP, revelando alguns destes casos que são apenas parte de uma história ainda pouco conhecida. Porque a minha investigação ainda não está terminada, os factos aqui revelados não podem ser considerados como definitivos.
António Ferro refere no seu célebre discurso de inauguração que o MAP tinha sido pensado logo desde a organização da exposição de arte popular portuguesa em Genebra em 1936. Esta exibição que ilustrou a presidência portuguesa da assembleia da Sociedade das Nações, foi orientada por Francisco Lage, dramaturgo e encenador e também etnógrafo que irá ocupar a partir de então o papel de responsável pela etnografia e cultura popular em todas as iniciativas do SPN. A colecção inicialmente recolhida para a exposição de Genebra irá sendo ampliada passando por sucessivas exposições no estrangeiro, tendo como ponto alto a secção de vida popular na Exposição do Mundo Português de 1940. Será nos pavilhões desta secção que o SPN encontrará o espaço condigno para o museu sonhado por Ferro. Apesar do carácter temporário dos edifícios, a decisão de os converter em construções permanentes foi tomada ainda durante a vigência da exposição ou logo a seguir. De facto, o anúncio do concurso público para a empreitada de alterações é publicado em Dezembro de 1941, tendo sido seleccionado o arquitecto Veloso Reis Camelo, o autor dos pavilhões originais. O primeiro projecto de alteração dá entrada no Ministério das obras públicas em Março de 42 e sendo em Abril que surge o primeiro documento de Francisco Lage relativo ao Museu. Tratase de um parecer de quatro páginas, dirigido a António Ferro, criticando fortemente o projecto apresentado. Neste documento Lage salienta a ausência de uma memória descritiva que permitisse justificar as opções do arquitecto e o facto de que, no seu entendimento, o projecto aparenta ser apenas uma adaptação dos pavilhões para uma nova exposição e não a transformação necessária para um museu propriamente dito com todas as instalações, espaços e equipamentos necessários. Depois de constatar as limitações e lacunas do projecto, Lage conclui com uma interrogação: “Seria exagerado ouvir-se antecipadamente a entidade a quem se destinava a missão de instalar o museu?” Deixando esta interrogação, Francisco Lage responderá depois em Outubro, com um documento muito mais detalhado com 47 páginas denominado “Plano de organização do museu do povo português”.
Este plano afasta-se de todos os eventos de carácter etnográfico realizados até então pelo SPN. Trata-se de uma proposta racional para um museu etnográfico apresentando um elaborado esquema organizativo. Nele, Lage apresenta a divisão da exposição permanente em salas correspondendo às regiões tradicionais dividindo-as depois em secções correspondendo ao “meio geográfico”; ao “homem”, apresentando as características físicas e “dialectológicas” dos habitantes de cada região; e à “vida” onde se encontrava a alimentação, trajo, habitação, trabalho, agricultura e indústrias conexas, indústrias caseiras, transportes e manifestações “individuo-sociais” (música, religião, teatro).
Para além da exposição permanente, Lage não descurava também todas as estruturas de apoio que um museu necessitava. Um auditório polivalente, sala de exposições temporárias, gabinetes de trabalho administrativo, salas e laboratório de conservação, oficina de reparações, biblioteca, arquivo, discoteca e filmoteca, armazéns de reserva e uma loja. Por fim, Francisco Lage deixava uma série de advertências, prevendo possivelmente as limitações que a adaptação dos pavilhões iria criar. Designou-as como “os sete pecados capitais do museu do povo português”: A falta de segurança nos acessos, a falta de ventilação, a produção ou invasão de pó devido à facilidade de comunicação com o exterior, a humidade, a facilidade no surgimento de insectos parasitas, o envelhecimento de espécies sensíveis e um itinerário sem lógica. A estes “pecados” acrescento ainda as outras recomendações complementares do seu primeiro parecer, como a existência de luz difusa por clarabóias e não por janelas e a existência de um sistema de aquecimento central para todas as dependências.
Era um plano muito ambicioso mas que será, com o tempo e as restrições orçamentais reduzido sucessivamente, até que por fim será praticamente descartado, não sendo tomado em conta pela última comissão encarregada da instalação do museu.
Em 1943 é por fim constituída uma comissão técnica e artística para a instalação do MAP constituída apenas pelos artistas - decoradores do SPN: Bernardo Marques (que sairá depois), Tomás de Melo, Carlos Botelho e Fred Kradolfer, que irão assinar a memória descritiva do projecto definitivo de Jorge Segurado. Esta comissão era ainda superiormente orientada pelo Secretário Nacional, António Ferro, que regularmente (aos sábados depois do almoço) organizava reuniões com a comissão no próprio local do museu. As obras vão-se arrastar. As alterações iniciais ao edifício (feitas por Veloso Reis) que implicaram a abertura de janelas e óculos protegidos por ferro forjado (e que tanto foram criticadas por Francisco Lage) oneraram em demasia o orçamento do SPN que terá de procurar outras fontes de financiamento. A oportunidade surge no verão de 1944 quando o representante em Portugal do comité internacional da Cruz Vermelha contacta o governo português, tendo em vista o aluguer dum espaço para o armazenamento temporário de um carregamento de correio para prisioneiros de guerra; uma vez que com o desembarque aliado na Normandia, todos os portos da França ocupada estavam encerrados. Faltam ainda pormenores sobre este episódio. Aparentemente o assunto foi tratado de uma maneira secreta, ou pelo menos discreta, sem divulgação pública, tendo os edifícios do SPN em Belém sido escolhidos porventura por estarem ainda isolados numa área murada e vigiada como era então o espaço da antiga Exposição do Mundo Português. Os edifícios que serão o futuro MAP são assim arrendados a uma firma de advogados até Fevereiro de 1945 e as verbas, pagas directamente ao SPN, acabam por permitir a continuação das obras.
Em 1945 o SPN é refundado no Secretariado Nacional da Informação. Francisco Lage que até então era o “sub-chefe dos serviços exteriores do gabinete técnico” passa a ocupar o cargo de chefe da 3ª Secção (etnografia, exposições, cinema, teatro e música) da 3ª Repartição (cultura popular) e por inerência, com responsabilidades na organização e instalação do acervo do SNI no edifício do MAP. Nesta nova função vai ele próprio prosseguir os seus planos para a instalação do que ele chamava de “Museu do Povo Português”. Começa a compilar mapas regionais de dialectos e de flora local para serem depois convertidos em mapas e esquemas parietais por Tomás de Melo. Nos anos de 1946, 47 e 48 vai contactar com uma série de individualidades académicas portugueses convidando-as a colaborar com textos e informações para o museu. A.A. Mendes Correia, Manuel Paiva Boléo, Sebastião Pessanha, Guilherme Felgueiras, Luís Chaves, Padre António Mourinho, Joaquim Santos Júnior, António Santos Graça, são apenas algumas dessas individualidades. No entanto não encontrei nenhuma resposta a Francisco Lage, por outro lado, os mapas regionais com que Lage contava também não chegam a ser feitos, limitando-se cada sala a um único mapa regional. À medida que a data de inauguração se aproxima em 1948, Tomás de Melo vai progressivamente ocupando a direcção da instalação do acervo bem como da disposição final dos objectos. Francisco Lage fica apenas responsável pelos contactos com os artífices locais e pela aquisição de novos objectos. Um último trabalho antes da inauguração será a contratação de um empreiteiro de Olhão que no fim-de-semana antes de inauguração constrói no museu as quatro chaminés algarvias. Após a inauguração, Lage assume por inerência o cargo de director do museu e poucos dias depois propõe, por escrito, a António Ferro um ambicioso plano de ampliação e melhoramento do MAP consistindo prioritariamente na electrificação do edifício e na sua necessária ampliação para os dois pavilhões anexos constituindo os muito necessários gabinetes técnicos, espaços de reservas, sala de exposições temporárias e auditório. Lage termina essa carta relembrando a Ferro que tal como está, o museu “não era um museu mas apenas uma montra”. Do pedido de Francisco Lage só a electrificação é considerada, contudo com a saída de António Ferro e os baixos orçamentos do SNI o processo vai-se arrastar por quatro anos. Os pavilhões anexos serão consecutivamente reclamados por Francisco Lage mas, se por um lado não havia cabimento orçamental no SNI para as obras necessárias, por outro eles eram bastante convenientes como armazéns e oficinas do material expositivo, como guarda-roupa do grupo verde-gaio e como pavilhões polivalentes para exposições temporárias. Francisco Lage morre inesperadamente em 1957 e durante boa parte desse ano o museu fica sem director. Na mesma altura tomava posse como novo Secretário Nacional César Moreira Baptista. O SNI é então remodelado passando a focar-se muito mais na propaganda turística e não tanto na chamada cultura popular. O MAP deixa de estar dependente da 3ª secção da 3ª repartição para a passar a responder directamente ao Secretário Nacional. Moreira Baptista acaba por escolher Manuel de Melo Correia, chefe da “brigada de decoradores” das pousadas nacionais e exímio conhecedor dos antiquários portugueses, como director interino do MAP. Melo Correia é desafiado por Moreira Baptista para melhorar o museu, criando condições para a montagem de exposições temporárias, aumentar o seu acervo e transformar o museu numa “varanda sobre Portugal”. A tarefa não vai ser fácil para Melo Correia que quando chega ao museu se depara com um quadro de funcionários desmotivados e objectos em avançado estado de degradação (Lage encomendava regularmente doces regionais feitos sem açúcar e pães para exposição). No seu primeiro ofício enquanto director, escreve: O que ali foi um dia colocado, manteve-se até agora, carinhosamente conservado. Mas o que esse carinho e dedicação não podem evitar, por maiores que sejam, são os terríveis resultados da acção do tempo: peças e objectos na sua maioria executados em matérias frágeis e humildes, vivos apenas pela graça da sua espontaneidade e da sua enternecedora ingenuidade, não resistiram todos estes anos à acção corrosiva da luz, do clima, da poeira e de tantos outros inimigos coligados para a sua destruição: os papéis de cores encontram-se desbotados; os metálicos enegrecidos; as penas desfrisadas e roídas; enfim um conjunto confrangedor de coisas que, vivendo exclusivamente da sua frescura, da sua cor e da sua graça, tudo já perderam por completo.
Acima de tudo faltava um profissional, um conservador que estivesse sempre presente no museu, pois até então tanto Francisco Lage como Melo Correia tinham os seus gabinetes na sede do SNI, no palácio Foz nos Restauradores. A escolha vai recair em Maria Madalena Cagigal e Silva com quem Melo Correia já tinha trabalhado em Leiria e Alcobaça nas recepções feitas durante a visita de Isabel II. É pois sobre os ombros de Cagigal e Silva que vai recair a responsabilidade de renovar o museu. Não será uma tarefa fácil para uma mulher que terá de se impor perante um quadro de funcionários maioritariamente composto por guardas vindos da legião portuguesa sem o ensino primário completo. Apenas com a intervenção directa do Secretário Nacional irão os guardas passar a assinar o ponto, a vestir o fardamento designado e a deixar de fumar nas salas de exposição. Só depois pode então fazer um relatório sobres as necessidade imediatas e futuras do MAP: Primeiro a revisão de todos os objectos e substituição ou restauro dos mais degradados, ao mesmo tempo que se revia a disposição das salas. Essas alterações implicavam também a substituição dos painéis de madeira com as indicações das feiras e mercados, a renovação dos painéis fotográficos e por fim a criação de “placas indicativas” (hoje diríamos “legendas”) que eram escassas e em cartolina. A longo prazo, Cagigal e Silva propunha o inventário das colecções sala a sala com a publicação simultânea dos catálogos respectivos; exigia a criação de novos espaços de trabalho até então inexistentes como gabinetes técnicos e uma biblioteca – arquivo; e o ajardinamento definitivo da área envolvente, a qual dependia já então da Administração do Porto de Lisboa. Por fim, estabelecia também um primeiro programa de animação para o recinto exterior do museu com peças de teatro popular e exibições do verde-gaio.
Moreira Baptista a tudo anuiu e em 1959 iniciou-se um período de obras pontuais em todas as salas que só iriam terminar em 1969. Primeiro com a construção dos novos gabinetes e biblioteca e depois com o arranjo e substituição dos tectos falsos de todas as salas bem como os arranjos pontuais do telhado e dos caixilhos das janelas. De facto, a situação na altura era grave como se pode depreender por esta passagem de um ofício de Madalena Cagigal e Silva de 1960: Conforme o meu pedido deste inverno, é da maior urgência a substituição dos tectos do museu. Caiu parte do tecto da sala das beiras, caiu parte do tecto do pátio entre a sala de Trás-os-Montes e a sala do Algarve, tecto este que que continuará a cair. Além deste, grande parte dos tectos do museu não oferece segurança alguma e os desabamentos suceder-se-ão enquanto um trabalho completo não for realizado. Sabemos que o museu está condenado pelo plano de urbanização da Praça da Império, mas enquanto a sua demolição não se realizar, é da maior utilidade, tanto sob o ponto de vista cultural, como de propaganda para o país, mantê-lo aberto ao público. Propomos, por isso, nele sejam realizadas as necessárias reparações para se evitarem desgostos com perdas de obras de arte que podem vir a ser insubstituíveis e principalmente, com desastres pessoais, tanto dos visitantes como do pessoal do museu. Tal como se encontram, os tectos do museu constituem uma ameaça para todos os quantos o frequentarem.
Efectivamente o plano de urbanização da Praça do Império, da responsabilidade do
Arq. Cristino da Silva, propunha a demolição do conjunto do edifícios do MAP e do espelho de água e só no final de 1962 é que o Ministro das obras públicas autorizou “reparações pontuais” indicando no despacho que era tempo do SNI procurar um novo edifício para o museu. Essas reparações pontuais não vão resolver definitivamente os problemas das infiltrações e com o terramoto de 1969 o edifício chega a abrir fissuras nas paredes exteriores. Madalena Cagigal e Silva ficará no MAP até 1969, ano em que é nomeada Directora do Museu dos Coches. Durante esse tempo conseguiu criar a biblioteca e um arquivo tendo catalogado as peças então existentes nas salas do Minho, Trás-os-montes e Algarve. Os catálogos nunca foram escritos, tendo encontrado apenas uma maqueta da capa e da introdução do primeiro volume. Neste período o museu ganha alguma projecção exterior, primeiro com o artigo muito elogioso do museólogo americano Albert Parr na revista Curator (cuja cópia é enviada ao senhor Presidente do Concelho) e depois com a inscrição do MAP no ICOM. O acesso a esta organização vai permitir a participação da conservadora numa série de encontros internacionais, bem como ao estabelecimento de troca de correspondência e publicações com museus europeus e americanos. Destes contactos o museu irá abrir as suas portas, em 1966, 67 e 68 à presença de estudantes e estagiárias brasileiras e francesas. O lugar de Madalena Cagigal e Silva é prontamente ocupado por Maria Helena Coimbra, com quem Manuel de Melo Correia já tinha trabalhado em exposições temporárias no Museu da Cerâmica das Caldas da Rainha. Dos textos e ofícios escritos por Helena Coimbra retenho principalmente a preocupação sempre presente de humanizar o museu e melhorar o contacto com os públicos, reforçando as componentes pedagógica e científica.
Fazendo referência a Georges Henri Rivière e Ernesto Veiga de Oliveira, chega a propor num ofício a alteração de todo o discurso expositivo, baseando-se no sistema expositivo das cadeias operatórias, então usado na grande referência dos museus de etnografia o Museu das Artes e Tradições Populares de Paris. Mas as limitações orçamentais da já então Secretaria de Estado da Informação e Turismo e os problemas estruturais que a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais demorava a reparar, impediram a prossecução de tal projecto. Até 1974, Maria Helena Coimbra limitou-se a gerir o possível: Orçamentos cada vez mais curtos que limitavam até a limpeza das salas, tectos que continuavam a cair devido às infiltrações no telhado e um número de guardas cada vez menor para as salas do museu.
Com o 25 de Abril o MAP mantém-se inicialmente na alçada da Secretaria de Estado (depois Ministério) da comunicação social. Melo Correia reforma-se nesse ano e Helena
Coimbra assume a direcção. A sua prioridade é manter o museu de portas abertas e mais ainda, fazer chegar o museu a um maior público. Participando em acções de formação na Fundação Gulbenkian e com o apoio de um grupo de professoras do ensino secundário, vai estabelecer um projecto para a organização de um serviço educativo e a constituição de um grupo de monitores que não se limitava a receber alunos no museu, antes funcionava como uma extensão do museu para o exterior em escolas, lares, hospitais e até prisões. Em 1975 o museu encerra para obras profundas, incluindo a substituição da rede eléctrica e revisão geral dos telhados e tectos falsos. Enquanto as obras decorrem o museu é transferido para a Direcção Geral do Património Cultural.
Em 1977, com o museu ainda encerrado, Maria Helena Coimbra propõe à tutela a execução de uma exposição sobre louça popular das Caldas da Rainha que seria feita em paralelo com a exposição retrospectiva de faiança das Caldas, a realizar no Museu Nacional de Arte Antiga. Para esta exposição, Helena Coimbra organiza uma verdadeira campanha de recolha e de investigação pelas aldeias em redor das Caldas da Rainha. É feito um levantamento das olarias existentes, entrevistam-se os oleiros, fazem-se fichas fotográficas de peças e locais, compram-se peças e recolhem-se ferramentas e oficinas inteiras. No projecto da Conservadora tal exposição seria apenas a primeira de uma série de exposições sobre olaria tradicional português, a que culminariam numa grande exposição nacional a realizar num MAP completamente renovado.
No entanto a exposição nunca chegou a efectuar-se. Em 1978, com as peças seleccionadas já em Lisboa, a conclusão das obras nas primeiras salas tarda. Embora a sala do Minho já esteja terminada a DGEMN não tem orçamento para a instalação das novas calhas de iluminação nem para os novos projectores. O MAP acaba por não abrir a tempo para a exposição do MNAA, embora os jornais noticiem que iria abrir em breve. A exposição iria ser sucessivamente adiada e o financiamento para a publicação do catálogo, prometido pelo fundo de fomento cultural, acaba também por nunca aparecer. Maria Helena Coimbra vai afastar-se do MAP em 1979, acompanhando o marido como bolseira de investigação nos Estados Unidos. Em seu lugar e acompanhando o enquadramento do MAP no novo IPPC, fica Elisabeth Cabral, técnica superior do Museu Nacional de Arqueologia, transferida naquele ano para o MAP para apoiar a montagem e reabertura das salas.
Elisabeth Cabral vai prosseguir o projecto dos serviços educativos, ao mesmo tempo
que conta poder ampliar o museu recorrendo ao espaço da Galeria de Arte Moderna, destruída por um incêndio em 1981 e libertar os jardins e espaços contíguos ocupados abusivamente pelo Mercado do Povo desde 1974. Em 1985 apresenta à direcção do IPPC um anteprojecto para aqueles espaços. Previa-se: uma sala de exposições temporárias de 750m2, um auditório de 200 lugares, uma cafetaria, biblioteca pública, laboratório de restauro, laboratório de fotografia, carpintaria, refeitório, sala de reservas, salas para actividades dos serviços educativos e 15 gabinetes de trabalho sem contar com os espaços reservados para a Associação dos Amigos dos Moinhos e para a APOM que então tinham o museu como morada institucional.
Mas este projecto de ocupação da Galeria de Arte Moderna vai colidir com as intenções da Secretaria de Estado da Cultura de ali criar um “Centro Nacional de Artesanato”.
As limitações orçamentais e os interesses antagónicos vão arrastar o projecto de recuperação da galeria. Em 1985, o MAP voltava a acusar problemas com infiltrações sucessivas das chuvas e Elisabeth Cabral passa a reclamar a dotação das verbas necessárias para obras de conservação, nomeadamente na ala dos gabinetes, o único espaço que não tinha sido intervencionado na década de 70. Só em 1989 é que o museu encerra por seis meses para reparações pontuais.
É também em 1989, devido a uma restruturação do IPPC com a concentração dos serviços e colecções de etnologia no Museu Nacional de Etnologia, que o MAP é extinto. O edifício passa a albergar o Núcleo de Arte Popular do MNE. Na prática, pouco muda, dado que o quadro técnico do Museu de Etnologia não tinha transitado do Instituto de Investigação Científica e Tropical, Elisabeth Cabral acaba por assumir a direcção do MNE e os restantes funcionários mantiveram-se nos seus locais de trabalho.
Este período acaba por ser de curta duração já que o Secretário de Estado seguinte,
Pedro Santana Lopes, defende publicamente a autonomia do MAP, o que acaba por acontecer em 1994. Pouco tempo depois, o museu voltaria a encerrar para obras de remodelação, dotando-o de uma sala de exposições temporárias e de novos gabinetes de trabalho. Deste modo o MAP vai-se manter aberto apresentando exposições temporárias todos os anos.
Contudo, os problemas estruturais do edifício não foram devidamente corrigidos e vão-se agravando com o tempo, apesar dos avisos sucessivos da directora. Em 1999, o tecto da sala do Algarve cede com o peso da água das chuvas acumulada, o que leva ao encerramento da exposição permanente e à consequente decisão por parte do IPM da necessidade de um projecto de recuperação profunda do edifício. Devido à sua complexidade, o planeamento e as obras vão-se prolongar por quase uma década até que em 2006 a Ministra da Cultura opta por uma nova utilização do edifício.
A história continua. Presentemente o novo MAP procura encontrar o seu significado, a sua nova função social. As opções tomadas na sua construção, privilegiando uma visão estética e sedutora em detrimento de uma visão científica, bem como uma completa ausência de serviços técnicos e de espaços de trabalho e reserva, limitaram severamente a actuação das suas direcções e foram uma das causas do seu encerramento. Mas o novo MAP existe hoje também por causa dessas opções originais. É uma situação ambígua: O MAP nunca será o museu desejado por Francisco Lage, mas também não poderá ser apenas a “montra” desenhada por Tomás de Melo.



ANTÓNIO FERRO - VÁRIOS ESPELHOS PARA UM SÓ ROSTO

Meses antes do desastre nacional do «25 de Abril» as edições «Panorama» publicaram uma antologia de António Ferro, com selecção, prefácio e comentários de seu filho, o escritor António Quadros, dando a público algumas páginas do "Diário» escrito em Berna e em Roma, durante os seis anos em que o condutor da "Política de Espírito» esteve à frente das nossas representações diplomáticas naquelas capitais.
Ferro morrera em 11 de Novembro de 1956. A data do armistício da primeira guerra mundial fora, para ele, também outro armistício - num quarto do Hospital de S. José, no coração de Lisboa que o vira nascer sessenta e um anos antes em 17 de Agosto de 1895, o combatente da «Batalha de Flores» firmava tréguas com a Vida. Talvez haja repetido, de si para si, aquilo que dissera na sua «Arte de Bem Morrer»: «Não há vida que valha qualquer morte com asas».

Alada tinha sido, em boa verdade, toda a sua carreira. Só com asas - asas de talento, de sensibilidade, de inteligência e de extraordinário poder de trabalho - seria possível cruzar horizontes e pousar em tantas árvores, da poesia ao jornalismo, do teatro à diplomacia, da agitação demolidora de um franco-atirador à firme e persistente acção criadora de um bom governante. E em cada um desses voos, nada de desnorteado, nada de inútil, todo o roteiro de uma obra em que, como observou António Lopes no comentário à reedição póstuma da «Leviana» e da «Teoria da Indiferença», «não há uma iniciativa falhada, urna nota de mau gosto, uma incoerência mental».

Com a Revolução de Abril o nome de António Ferro foi, evidentemente, para o rol dos malditos, em companhia, aliás, de muitos nomes ilustres. Era, sem discussão possível, um nome grande do jornalismo português; deviam-se-lhe serviços de maior préstimo na valorização da arte e da cultura nacionais; havia tornado possível a realização de um sem número de vocações literárias ou artísticas; mas nem nenhuma dessas credenciais nem a sua honestidade pessoal o absolviam do «nefando crime»: fora um dos mais directos colaboradores de Salazar. Cometera, além desse, outros delitos graves: era um homem inteligente e civilizado. Isso lhe garantia a incompatibilidade com um regime personificado com criaturas paranóicas ou semi-analfabetas.

O ostracismo começou a ter o seu termo neste ano de 1984, mercê da iniciativa do Grupo de Teatro «Primeiro Acto», de Algés, ao pôr em cena «Mar Alto», a peça de António Ferro cuja estreia se fizera com êxito no Brasil em 1922, primeiro no Teatro Sant' Ana, de São Paulo, para logo se repetir no Lírico, do Rio de Janeiro, mas cuja apresentação no Teatro Nacional de São Carlos, aos 10 de Julho de 1923, redundou em escândalo. Tratou-se de uma manipulação levada a cabo por uns tantos escribas bem-pensantes da época e com impacto bastante para o governador civil de Lisboa mandar proibir a representação, insistindo nesse bem pouco democrático processo não obstante o protesto de intelectuais como Fernando Pessoa, Aquilino Ribeiro, António Sérgio ou João de Barros - dezenas de intelectuais. Não havia muito, também, uma das melhores peças de Alfredo Cortez, «O Lodo», havia sofrido idêntica sabotagem. Vivia-se, como se vê, em plena democracia.

A reposição de «Mar Alto» pela equipa do «Primeiro Acto», acompanhada por uma exposição bibliográfica e por colóquios acerca da peça e do autor, constituiu, nestes tempos em que hoje vivemos, um acto de audácia - de uma audácia muito ao estilo de António Ferro - e foi, aliás, um bom espectáculo, quer pela internegração que lhe deram Arminda Taveira, Fernando Loureiro e João Vasques, quer pelo facto de se tratar de um texto teatral bem construído e que, não sendo uma obra de génio, merece com inteira justiça ser colocado ao nível das obras válidas, muito acima da mediania, e isto independentemente do seu valor documental para a história do moderno teatro português.

Deve dizer-se que esta verificação surpreendeu muita gente, sem excluir admiradores de António Ferro e cultores da sua memória. Sendo um trabalho datado do mais intenso período « modernista» do escritor, quem nunca houvesse lido a peça teria algum direito a pensar que «Mar Alto» não passaria de mais uma « Leviana», de mais uma travessura literária do jovem que a si próprio se considerava «um trapeiro de cores, um fumador de paradoxos». Acontece, porém, que «Mar Alto», embora repleto de paradoxos, tem consistência e densidade bastantes para ser posto em cena e aplaudido, como se viu agora.

Debaixo da maquilhagem do absurdo, a peça é profundamente realista, e profundamente analisadas são as almas das suas personagens e a sociedade a que pertencem. Prova, em suma, que António Ferro foi também um homem de Teatro.

É de crer que em matéria de Teatro, António Ferro tenha escrito algo mais do que «Mar Alto» e de que «O Estandarte», estreada esta no Sá da Bandeira, do Porto, em 1932. Pelo testemunho de Fernando Pessoa, sabemos que já em 1913 tinha três peças de Teatro escritas, ou em esboço, e na resenha biográfica que António Quadros agora traçou para o espectáculo do «Primeiro Acto», inteiramo-nos de que escreveu em Berna, entre 1951 e 1953, uma outra peça intitulada «Eu não sei dançar». Mas o seu nome fica menos ligado ao Teatro pelas obras que escreveu do que pelo interesse e pelo estímulo que lhe dispensou.

Em 1925, muito longe de vir a ser o director do SPN, António Ferro fundou com José Pacheco, em uma das salas do cinema Tivoli, o primeiro Teatro-Estúdio que houve em Portugal. Chamava-se «Teatro Novo», tinha programado vasto reportório de autores nacionais e estrangeiros, mas ficou-se por levar à cena, Para cada um a sua verdade». de Pirandelo. e «Knock ou a VIsta da Medicina», de Jules Romains. O «Teatro Novo» acabou por falta de verba. Melhor dito: acabou por não haver ainda nessa altura, na esfera dos poderes públicos, um António Ferro que lhe desse ajuda.

Apareceria oito anos mais tarde esse António Ferro, quando Salazar lhe confiasse a direcção do Secretariado de Propaganda Nacional: o «Teatro do Povo», entregue a Francisco Ribeiro (Ribeirinho) e a Francisco Lage, seria uma das mais louváveis e mais úteis realizações, tal como em 1949 a criação dos Prémios de Arte Dramática para as Sociedades de Recreio. A fundação em 1940 do famoso «Grupo de Bailados Verde Gaio» situa-se, evidentemente, fora do âmbito do Teatro, mas nem por isso deixa de ser obra de alguém desde sempre fascinado pelo palco, pelo espectáculo.

Para o «Verde Gaio» escreveu António Ferro o argumento de quatro bailados - «D. Sebastião», «Imagens da Terra e do Mar», «Noite sem fim» e «A Noite sobre o Monte Calvo». Criar uma companhia portuguesa de bailado deve ter sido para Ferro uma felicidade muito especial - era um dos sonhos da sua Juventude, de quando se não cansava de ilustrar crónicas ou conferências, a propósito de tudo e de nada, com alusões aos «BalIets Russes». E é de lembrar que o primeiro Congresso de Crítica Dramática e Musical, realizado em Lisboa em 1933, foi iniciativa do antigo crítico teatral do «Diário de Lisboa» - ele próprio, António Ferro.

«UM CINÉFILO COMO NÃO HOUVE OUTRO»
Homem de Teatro, Ferro esteve quase a ser um homem do Cinema - do Cinema que tinha a idade dele, ambos nascidos na última década do século XIX, ambos feitos para o século xx. O cinema foi um dos muitos cenários da adolescência de António Ferro, já a motivar-lhe aos 22 anos uma conferência no Salão Olímpia sobre «as grandes trágicas do silêncio». Dele escreveu Manuel Maria Múrias, na sua «História Breve do Cinema», «foi um cinéfilo como não houve outro em Portugal».

Cinéfilo, apenas, sem chegar a ser cineasta. Cinéfilo em HolIywod, a entrevistar «astros» e «estrelas» do fim dos anos 30. Cinéfilo, sobretudo, nos esforços que despendeu ao serviço da chamada «Sétima Arte»: devem-se-Ihe as equipas do Cinema Ambulante do SPN, a instituição dos Prémios Cinematográficos e a Lei de Protecção ao Cinema, com o Fundo do Cinema e a Cinemateca Nacional. E apetece dizer - um pouco à sua maneira - que esboçar a biografia de António Ferro é como que planejar as sequências de um filme de grande metragem em vários episódios, a que se poderia chamar "O descobridor de horizontes», ou - talvez melhor, talvez mais à tona de água - 0 homem dos sete ofícios».

A «POLÍTICA DO ESPÍRITO»
A poesia foi um desses horizontes. Pode até dizer-se ter sido o primeiro e o último horizonte da sua carreira literária, que começou com «Missal de Trovas», aos 17 anos, e acabou com «Poemas Italianos» de 1955, que supomos ainda inédito. Teatro e Poesia são, porém, horizontes em que o perfil de António Ferro se esfuma, contrastado com as dimensões assumidas naqueles dois campos em que se impôs e impõe até aos adversários. De tal modo imagine-se! - que há quem cuide agora, ao que parece, de lhe recriar a imagem fora do quadro dos valores do Estado Novo.

No campo da «Política de Espírito», (título de um editorial seu de 1932 no «Diário de Notícias» e que serviu de legenda para toda a acção desenvolvida à frente do organismo oficial chamado de início SPN e mais tarde SNI) perfilam-se, sucessivamente, a instituição dos Prémios Literários (1934), as exposições de Arte (a primeira de Arte Moderna foi em 1935) e os respectivos galardões, o comissariado do Pavilhão de Portugal na Exposição Internacional de Paris (1937) e nas exposições de Nova York e de San Francisco (1939), a condução geral das comemorações do Duplo Centenário (1940), o Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal ( 1939), os Concursos das Estações Floridas (l94\), a remodelação da Emissora Nacional (1941), as Pousadas de Turismo (1942), o lançamento das revistas «Atlântico» e «Panorama» (1942-43) os Salões de Arte Moderna dos Artistas do Norte (1945), o Museu de Arte Popular (1948) ou o Estatuto de Turismo (1949).

Tudo isto, além das já citadas realizações nos sectores do Teatro, do Bailado ou do Cinema e de múltiplas promoções de ordem menor, de que já ninguém fala mas que ao tempo significaram muito, como o popular «Concurso das Montras»: tudo isto, grandes ou pequenas coisas, mobilizando ano para ano intelectuais e artistas - alguns deles de primeira grandeza - e, sobretudo, de ano para ano revelando cada vez maior número de novos valores, ou de candidatos a tal. E tudo, salvo raras excepções, levado a efeito em gradual crescimento, com regularidade, com intensidade, florindo em cada ano com a naturalidade das coisas naturais. Apesar das incompreensões e das invejas que vieram de todos os lados. E isto, este querer ir até ao fim, aconteceu em Portugal, país das Capelas Incompletas, terra de uma gente que, no dizer de um dos seus poetas, «só sabe fazer bem Torres de Belém»...

O JORNALISTA
O director do SPN não carregou somente com o peso da má vontade dos adversários do Estado Novo e o das incompreensões opostas de muitos lados à sua obra de reformador da paisagem estética e literária. Do jornalista António Ferro o funcionário António Ferro herdou incompreensões e invejas acumuladas desde a publicação de «Gabriel D' Annunzio e Eu», que um crítico da época, de língua viperina, afirmava ser a versão portuguesa da fábula de La Fontaine «O leão caçando com o burro». Tinha sido, de facto, um jornalista incomodativo.
Duplamente incomodativo. Apareceu como neflibata que assim chamavam depreciativamente aos futuristas os «bem-pensantes» - mas surgiu e incomodou, sobretudo com um valor profissional muito acima da craveira vulgar. Passara desapercebida a sua passagem pelo «Orpheu», onde foi, simultaneamente, editor e catecúmeno do credo modernista. Talvez o mesmo tenha acontecido ao ser nomeado, em 1919, chefe de redacção do órgão sidonista «O Jornal», embarcadouro de largada para uma carreira que se prolongaria em O Século» a «Ilustração Portuguesa», o «Diário de Lisboa» e o «Diário de Notícias ... Mas deixou de ser um desconhecido, ou alguém a quem se não liga especial importância, a partir da sensacional reportagem em Fiume e das conversas com D' Annunzio, o libertador da pequena cidade adriática, então no auge da celebridade.

É difícil distinguir nessa carreira jornalística entre as reportagens, as entrevistas ou as crónicas, por um lado, e, por outro lado a exibição de acrobacias literárias como "Leviana .. (1921) e "Teoria da Indiferença .. (1920) ou a conferência sobre Colette (1921) e as do ciclo brasileiro - "A Arte de Bem Morrer .. e "A Idade do Jazz Band .. (1922-23), pois toda a literatura do jovem modernista é essencialmente jornalística:

"A Leviana" deve ser lida como reportagem da vida de certas mulheres, "Batalha de Flores .. (também do ciclo brasileiro) vale, sobretudo, por ser uma crónica da vida lisboeta, ou, mais exactamente, da Lisboa do Chiado e da Rua do Ouro. E não exageraremos ao observar que a "Arte de bem morrer .. é, afinal, uma extensa reportagem através da História, desde Petrónio a Landru, embora esquecendo Sócrates, e Maria Stuart, e D. Lourenço de Almeida ...

Como realizações de jornalismo puro - e do melhor quilate, sem gravador portátil, sem questionários pré-fabricados - foram as entrevistas recolhidas em "Viagem à volta das ditaduras .. , de 1927 (com Mussolini em Roma, Primo de Rivera em Madrid ou Kemal Ataturk em Ancara, para não falar de outros); em "Praça da Concórdia .. , de 1929 (autêntica salada de celebridades políticas. culturais ou mundanas, onde. a propósito de Bcrriot, se observava que «estar nas esquerdas em França é estar de um lado» mas que em Portugal "é olhar só de um lado ..... ); em "Novo Mundo, Mundo Novo .. e "Hollywood, capital da imagem .. , de 1930-31 (com as impressões trazidas dos Estados Unidos) e em "Prefácio da República Espanhola» (publicado em 1933 mas referente a uma reportagem inquérito feita em 1930). Depois, as entrevistas com D. Manuel lI, em 1932, e sobretudo, nesse mesmo ano, a série de entrevistas com Salazar, que devem considerar-se hoje indispensáveis textos de apoio para quem queira entender a sério o pensamento e a obra do fundador do Estado Novo.

Acrescente-se que outras entrevistas notáveis - com Afonso XIII de Espanha ou com Lloyd George, por exemplo - seriam recolhidas na colectânea publicada em 1941, sob o título "Homens e Multidões .., obra cuja leitura não será demais recomendar aos alunos das actuais escolas de Jornalismo. Para que se não perca a lição de um jornalista acerca do qual dizia, entusiasmado, Ramon Gomez de La Serna: "Dá a impressão de estar inteirado de tudo ...

O NACIONALISTA
Das peças magistrais de jornalismo há uma que anda geralmente esquecida; a da reportagem do funeral de D. Manuel lI, em Julho de 1932. Lembramo-la aqui por um motivo especial, que a seguir se verá qual é.

Depois das exéquias e antes de ser trasladada para Lisboa, a uma do monarca ficara depositada na pequena igreja de um arrabalde londrino, a igreja de Weybridge. E foi em certo domingo desse Julho de 1932 que António Ferro se encontrou à saída de Weybridge com um grupo de cem portugueses que tinham vindo de muito longe - "da Índia.., segundo dizia o guarda igreja - para velarem os restos mortais de um rei de Portugal.

Eram, todos, goeses embarcadiços da companhia "P & O .. da carreira das Índias; goeses que tinham trocado por Bombaim a sua terra natar quando ainda eram crianças, que dificilmente se exprimiam em português, que passavam a maior parte do tempo sobre o mar, mas goeses, também, que não haviam esquecido ser Portugal a sua pátria, ser a fé católica a sua fé; goeses que mantinham no porto de Tilbury, "terminus .. certo da rota dos seus barcos, uma capelinha chamada" Estrela do Mar .., e nessa capelinha, entre lumes e flores, porventura entre círios trazidos do Oriente e flores colhidas nos campos de Inglaterra, uma imagem de S. Francisco Xavier, a imagem portuguesa e cristã da alma de Goa, do povo de Goa. Comentava assim o jornalista: "Admiráveis rapazes, que nunca pediram nada à sua terra, que se contentam em amá-Ia de longe, como se a sua pátria fosse uma santa, como se estivesse num dos altares da igreijinha de Tilbury.

Como se a pátria fosse uma santa. A imagem criada por António Ferro ao correr da sua reportagem sobre "os goeses de Tilbury .. muitas vezes se me faria presente ao espírito, vários anos passados: primeiro com a morte do timorense régulo D. Aleixo; depois, com a de Aniceto do Rosário e com a resistência da população luso-indiana à integração no império de Nova Deli; por último, com o assassínio dos régulos moçambicanos que preferiram cair assassinados pela Frelimo. do que trair a bandeira portuguesa. Para todos eles a veneração que tinham por essa bandeira foi adivinhada na definição do portuguesismo dos goeses de Tilbury: "Como se a pátria fosse uma santa...

A citação daquela crónica de António Ferro tem aqui, como se disse, um motivo especial, que é o de apontar para a linha de rumo seguida imperturbavelmente pelo autor da" Viagem à volta das ditaduras», rumo que não foi mais do que o de um portuguesismo integral. Podem chamar-lhe sentimento de Portugalidade, não errarão se lhe chamarem só nacionalismo.

Ferro pertenceu ao número dos que sobrepuseram ao patrioteirismo indígena da idade liberal o nacionalismo integral, e no caso português, transeuropeu - de uma nova era, em que se passou a olhar mais para os construtores do futuro do que para os heróis do passado. A descoberta da real dimensão do portuguesismo começou para ele em Luanda, aos 23 anos, quando ajudante do governador-geral Filomeno da Câmara e, logo depois, secretário-geral de Angola. Dessa passagem por Luanda há, de resto, uma palpitação nas primeiras páginas da sua "Arte de bem morrer». Mas foi por certo a triunfal digressão pelo Brasil, no mesmo ano do seu casamento com a poetisa Fernanda de Castro e na mesma altura em que Lisboa e o Rio de Janeiro vibravam em uníssono com o vôo glorioso de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, que lhe afervorou o sentido lusíada, mais tarde expresso na crónica dos goeses de Tilbury.

Nessa digressão, aliás, António Ferro prestou o seu primeiro grande serviço a Portugal, desempenhou-se da sua primeira embaixada, foi mostrar aos modernistas brasileiros que Portugal não era, apenas, um exportador de emigrantes. Em troca, deu-lhe o Brasil a confirmação do que o jovem jornalista sentia: que um país como Portugal, capaz de realizar o prodígio da nação brasileira, não podia ser nunca «um pequeno país». Ninguém melhor entendeu isto do que Carlos Malheiro Dias, ao apresentar António Ferro ao público do Teatro Lírico do Rio, em 30 de Julho de 1922: «Nas vossas mãos de artista arvorais uma bandeira, agitada pelo vento que sopra não do quieto passado mas dos quadrantes do futuro. Convosco veio o clamor alegre dos que se banham nas águas vivificantes da mocidade. Vós atestais que as nações podem ser antigas sem serem velhas».

Desse ano de 1922, primeiro centenário da independência do Brasil e, em coincidência, ano do primeiro voo Lisboa - Rio de Janeiro e da primeira visita de um chefe de Estado português ao país irmão, fez António Ferro o pilar inicial de uma ponte que viria a chamar-se comunidade luso-brasileira, por ele franqueada ao trânsito mediante iniciativas culturais como a publicação da «Atlântico» e a criação da secção brasileira do SPN, além das amizades nascidas entre intelectuais e artistas das duas pátrias.

Por amor ao Brasil? Sem dúvida. Mas, essencialmente, por amor a Portugal. Por entender Portugal não só como um espaço ou um estado mas como o lar de uma grande família, tão necessitada de se manter unida e ligada a todos os parentes como carecida de se actualizar, de não viver só virada para as recordações do passado mas igualmente para as esperanças do futuro. Nacionalismo é isso.

LUGAR E TEMPO CERTOS
Foi um político António Ferro? Cremos que se lhe pode chamar muita coisa mas não um homem político. Tão pouco um intelectual modernista convertido aos cânones de uma ordem conservadora. Pertenceu a uma geração ao mesmo tempo irreverente e devotada, a assistir dia a dia ao desabar de tabiques carunchosos e ao alteamento de novas construções, que, quanto mais não fosse, tinham o mérito de ser novas e banhadas por lima luz solar. Foi um homem participante no fenómeno político do seu tempo. De modo algum um profissional da política.

Para António Ferro, a militância no campo político ainda hoje chamado «das direitas» (tal é o peso dos lugares comuns... ) começou da mesma manelrà do que para grande parte dos seus contemporâneos: começou por Sidónio Pais, em quem o próprio Fernando Pessoa veria uma «flor alta do paul da grei». Em «D. Manuel lI, o Desventurado», que publicou em 1954, Ferro evoca o dia em que pela primeira vez viu o chefe da República Nova, quando este saía da estação do Rossio, por entre o entusiasmo popular, e o jornalista de vinte e três anos abancava no Café Martinho, «quartel general da sua indolência». E conta: «foi Sidónio Pais, a figura esbelta de Sidónio, o nosso primeiro republicano sem barrete frígio, quem me arrancou a este adormecimento, a esta modorra». Mas note-se bem que o sidonismo de António Ferro não tem nada de político-partidário, é uma exigência do seu nacionalismo: compreendeu que as nações «só se prestigiam através da grandeza das suas figuras e nunca, nunca, através da pequenez dos seus figurantes». Também hoje se começa de novo a compreender isso.

O nacionalismo político de António Ferro (repetimos que não nos parece admissível falar a seu respeito de nacionalismo partidário, até porque a expressão, no fundo, é absurda) despertou oom Sidónia Pais, desenvolveu-se com Filomeno da Câmara, foi por certo influenciado pela palavra de Homem Cristo Filho (o que é patente na peça "o Estandarte») e, escusado será dizê-lo, realizou-se por completo em contacto com Oliveira Salazar e perante os claros, inegáveis sinais de ressurgimento nacional trazidos à ditadura militar de 1926 pelo seu ministro das Finanças.

Nem Sidónio nem Salazar representaram para António Ferro chefes partidários. Representaram, sim, chefes nacionais, potencialmente o primeiro, efectivamente o segundo. O nacionalismo de António Ferro é preexistente à sua acção como condutor da «Política de Espírito», embora este só com Salazar pudesse haver atingido a extensão e a profundidade alcançadas. O salazarismo de António Ferro - entusiástico mas lúcido, vibrante mas reflectido - é corolário natural do seu patriotismo. Caixeiro-viajante de Portugal no estrangeiro, conforme alguém lhe chamou, Ferro não foi um exportador de propaganda oficial, como nunca fora um importador de modas ou ideias estrangeiras. Tão errado é considerá-lo um estrangeirado em 1922 como julgá-lo em 1942 um «chauvinista».

De fora para dentro ou de dentro para fora, o que fazia num sentido ou em outro passava sempre pelo filtro de uma sensibilidade muito portuguesa, do culto da originalidade - e do bom gosto. Modernista, não há nele qualquer desacato à verdadeira Tradição. Admirador da vida parisiense, nas suas grandezas ou nas suas bagatelas, não pretende de modo algum que Lisboa seja uma imitação de Paris - só deseja, só exige que Lisboa faça, em relação a Paris, o triste papel da provinciana que cheira a cebola. Do mesmo modo, o que mostrou aos estrangeiros e aos portugueses espalhados pelo mundo não foi um cartaz de propaganda partidária mas sim a autenticidade da casa portuguesa, onde havia salas para mostrar os quadros de Nuno Gonçalves ou do Grão - Vasco, ou a Carta de Pêro Vaz de Caminha e outras para expor galos de Barcelos em cenários de azulejo e de chita.

O endiabrado modernista que escandalizou Lisboa com a sua «Leviana» e o seu «Mar Alto;>, o arrojado jornalista que transformou em entrevista o silêncio feroz de Clemenceau, o republicano que restaurou a realeza de D. Manuel II não no trono mas na alma do seu povo, esse homem fora de série tinha, em boa verdade, na terra portuguesa, no lar de todos nós, algo de exemplar dona-de-casa.
Sim. Qualquer coisa de dona-de-casa, sabendo pôr sempre tudo no lugar certo, desde os paradoxos e os ilogismos às ideias sérias e às grandes verdades que se não discutem. Tudo no lugar sério - a começar por ele.
Eu penso, muito sinceramente, que António Ferro em nada se melindraria com esta comparação. Mas sei que algumas sensibilidades mais delicadas, menos atrevidas, poderão achá-la irreverente, talvez até desrespeitosa. Mas nesse caso...
Pois nesse caso valho-me do que serviu de motivo a esta breve memória da obra e da personalidade de António Ferro - a reposição de «Mar Alto» em tábuas de um palco. E já o não comparo a uma dona de casa, mas sim a um contra-regra.
Dentro e fora do Teatro, ele foi autor, actor, encenador e espectador. Mas foi principalmente fora do Teatro - principalmente no jornalismo, principalmente no dia-a-dia de uma carreira composta em todos os tipos de letra - um genial contra-regra, que faz entrar em cena, a tempo e horas, algumas das maiores personagens do seu tempo de europeu e de português. Que fez até entrar em cena e no Grande Teatro do Mundo um povo chamado Portugal.

Fonte: Futuro Presente, Número Especial 21/22, Abril/Junho de 1985
 
A MATRIZ DE ANTÓNIO FERRO
António Ferro continua a ser uma figura incontornável para a compreensão das políticas culturais em Portugal. A cultura tornou-se com ele não apenas num veículo de propaganda, mas sobretudo um eficaz instrumento de controlo social. Ao contrário do que se afirma, a sua principal preocupação não era a criação e difusão das ideias do regime, mas a criação de meios de ocupação dos "tempos livres" dos portugueses. Estes constituíam um tempo potencialmente perigoso para o poder se não fosse organizado. A contribuição mais significativa de António Ferro foi, como veremos, ter mostrado que as múltiplas manifestações culturais podiam ser organizadas de modo a predisporem os indivíduos para certas formas de comportamento e pensamento espontâneo.

A política cultural do Estado Novo nos anos trinta e quarenta, estava longe de reduzir-se ao SPN/SNI. Era partilhada e prosseguida por diversos organismos do Estado, sob a orientação de Salazar, o seu verdadeiro mentor. Em todas as áreas contava com a colaboração de muitos dos melhores criadores e intelectuais do tempo. Para além dos aparelhos locais, como as câmaras municipais, no Estado, cinco organismos possuíam uma acção muito relevante, ainda muito longe de ser esclarecida na sua globalidade.
- O Ministério da Educação Nacional (MEN), com Carneiro Pacheco (1936-1940) e depois com Mário de Figueiredo (1940-1944), assumiu claramente uma função doutrinária no regime.
- O Ministério do Interior (MI), desde 1927 tinha a seu cargo a censura à imprensa e aos espectáculos. Cabia-lhe ainda o licenciamento dos espectáculos e divertimentos (vistos), assim como dos recintos onde estes se realizavam. Controlava ainda o registo dos artistas, intérpretes e das empresas promotoras de actividades artísticas. Em 1940, a censura da imprensa e espectáculos passou a ser coordenada também pelo SPN, sendo integrada definitivamente no SNI em 1944, assim com as restantes áreas. O MI assumiu então uma função mais estritamente policial.
- A FNAT- Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, criada em 1935, ocupava-se dos tempos livres dos trabalhadores e da sua formação cultural, segundo os valores do regime.
- O Comissariado Nacional do Emprego, criado em 1932, chefiado por Duarte Pacheco, de forma muito discreta, mas não menos eficaz, teve um papel activo na promoção cultural, nomeadamente financiando a contratação de desempregados.
- O Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), criado em 1933 e transformado em 1944, no Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), duas criações atribuídas a António Ferro, estavam directamente ligadas a Salazar. De forma persistente, António Ferro, ao longo de 16 anos foi transformando uma estrutura inicial muito artesanal, numa verdadeira máquina de propaganda e controlo das actividades informativas, culturais e turísticas que ainda hoje é apontada como modelo de eficiência.

Apesar das limitações inerentes a uma análise centrada apenas num destes organismos - a SPN/SNI/SEIT, foi todavia a perspectiva seguida neste trabalho, em grande parte ditadas por os condicionalismos que lhe são inerentes.

A "POLÍTICA DO ESPÍRITO"
António Ferro não estava sozinho quando defendia todo um ideário que expressava identidade da cultura portuguesa, naquilo que julgava ser a sua autenticidade. Desde finais dos anos trinta, que este ideário percorria toda a administração pública, sendo nos aos quarenta teorizado por muitos dos mais reputados intelectuais portugueses.

António Ferro, tal como Gobbels, tinha uma percepção clara de como a cultura se poderia transformar num poderoso instrumento de poder ao serviço do Estado, nomeadamente na construção de uma retórica cultural onde os conflitos sociais são harmonizados em torno de grandes desígnios nacionais.

Ao Povo Português é atribuída uma missão divina - propagar e defender os grandes valores da cristandade no mundo. O seu Império é apresentado como o exemplo da obra civilizacional do mundo ocidental. As suas aldeias, constituídas por gente trabalhadora, pobre e feliz, são apresentadas como um exemplo às outras nações civilizadas, onde pululam grandes urbes industrializadas minadas pela desordem e imoralidade.

A política do Estado Novo, no seguimento da ditadura militar de 1926, assumiu como missão restaurar a "alma da pátria portuguesa" que os governos democrático-liberais haviam procurado destruir. A ordem pública, o miraculoso equilíbrio das contas públicas eram apresentados como exemplos de um país que voltou a reencontrar-se consigo próprio, aceitando o que herdou do seu passado glorioso, com o orgulho de quem aceita o que melhor pode aspirar, libertando-se de todos os seus desejos exteriores. Conformam-se os pobres com o que possuem, e os ricos com aquilo que Salazar lhes proporciona. As elites culturais com o estatuto de privilégio que lhes é proporcionado. A exaltação patriótica dos “valores nacionais” não se projecta no sentido de descobrir novos saberes ou técnicas, mas na auto-contemplação do ser português, como se nessa atitude se contivesse tudo o que de melhor se pode aspirar. A história de Portugal, como a concebe Salazar e a encena António Ferro, termina afinal na quietude contemplativa da sua própria trajectória, nos seus hábitos e costumes, tudo o que em suma, faz que sejamos o que já somos.

ÁREAS DE INTERVENÇÃO
Nos dez primeiros anos, o SPN privilegiou três áreas: a propaganda do ideário do regime, o turismo como meio de difusão da imagem de um país feliz consigo próprio, e a cultura popular como instrumento integrador das camadas mais baixas da população.

Depois de 1944, o SNI, dotado de novos meios, para além da propaganda, começa a actuar no controlo e censura da informação veiculada pela comunicação social e com a inspecção das actividades culturais. O Estado Novo sente-se cada vez mais isolado, e com um ideário que não consegue gerar tão amplos consensos como os que no período anterior foi capaz de produzir. O turismo foi perdendo grande parte da sua função ideológica, para se transformar na promoção de mais um destino para férias a preços baratos. As preocupações económicas secundarizam as de natureza ideológica. A cultura popular acabou por ser enquadrada no âmbito da etnografia, em regra ao serviço também da promoção turística. O SNI que até aí privilegiara a população rural e o imaginário dirige-se agora para as camadas urbanas, nomeadamente as de maior rendimento e instrução. Só após a saída de António Ferro, em 1949, será possível dar corpo a esta nova orientação política.

ESTRUTURAS
Para além das ideias que caracterizaram, cada período, António Ferro, foi criando uma poderosa estrutura burocrática e concebendo amplos programas culturais que ainda hoje, em grande parte, sobrevivem. Entre as suas funções mais salientes destacam-se as seguintes:

A recolha e tratamento da informação dos órgãos de comunicação nacionais ou estrangeiros de apoio aos altos dirigentes do Estado, servidos por uma biblioteca, uma Fototeca e uma Filmoteca.
A propaganda era alimentada por uma contínua produção de informação destinada aos órgãos de comunicação e à Emissora Nacional, desdobrando-se numa vastíssima produção editorial, em diversas línguas, organização de exposições em Portugal ou no estrangeiro. O Brasil surgia neste contexto como uma força que permitia amplificar a voz de Portugal no mundo. António Ferro, apesar de entrever a importância económica do turismo, viu sobretudo nele um meio de propaganda. O apoio à cultura, nomeadamente às artes plásticas, cinema, música, dança, teatro, privilegiou a atribuição de prémios, a encomenda ou compra de obras ou a produção de eventos em detrimento do apoio à criação de estruturas para a produção cultural.

A grande promoção cultural de António Ferro centrou-se contudo em volta da cultura popular, que tinha nas romarias, arraiais e feiras a sua expressão mais genuína. À sua volta procurou criar uma grande encenação não apenas para os estrangeiros, mas sobretudo para consumo interno. Uma vasta equipa de artistas e intelectuais, como dissemos, ao longo dos anos sob os motivos mais diversos foi pacientemente re-elaborando as grandes manifestações populares em termos plásticos mais modernos, apresentado-as em seguida como expressões genuinamente populares. Fragmentos de memórias locais são pretexto para a criação de tradições centenárias. A confusão entre o falso e o autêntico era total. A promoção da cultura erudita junto do povo, foi neste contexto limitadíssima, pois a mesma correspondia a um desvio à integração do povo numa cultura popular que se lhe apresentava como exaltante.

No final da década de quarenta, a política cultural do Estado Novo, nas suas diversas vertentes, estava claramente esgotada, surgindo entre os defensores do regime, um número crescente dos que preconizam a sua mudança. No plano económico, o modelo corporativista, ainda assente na ideia de um retorno às corporações medievais, apesar de continuar a alimentar o imaginário de muitos intelectuais, é esvaziado de conteúdo ideológico. Em breve, teremos um corporativismo regulamentado pelo Estado, cujos dirigentes não se reconhecem no próprio corporativismo. No plano cultural, como reconhecerá Salazar, apesar das inúmeras obras encomendadas ou apoiadas pelo Estado Novo, nenhum criador, ideia ou obra cultural conquistara projecção além-fronteiras. Depois de 1938, a imposição por parte do Estado das temáticas regionalistas ou historicistas, contribuíra afinal para desligar ainda mais a arte produzida em Portugal das grandes correntes internacionais.

A "FILOSOFIA PORTUGUESA"
Face a esta evidência, muitos intelectuais passam a defender que a cultura portuguesa, reflectia outras categorias mentais inapreensíveis noutras línguas. A originalidade da racionalidade do pensar português, só os portugueses o podiam compreender. Durante os anos cinquenta, no nosso acanhado meio filosófico, a questão central é a existência ou não de uma filosofia portuguesa. Nos seus pressupostos, continuava-se afinal a discutir a política do espírito de António Ferro, afirmando ou negando-a.

AS CAUSAS DO AFASTAMENTO
Durante a II Guerra Mundial (1939-1945), dois fenómenos começaram a esvaziar o discurso ideológico montado por António Ferro.
- O primeiro, foi o contraste que transparecia entre a miséria sentida pela maioria dos portugueses e a exaltante opulência de paz e bem estar com que alguns milhares de portugueses e estrangeiros viviam nas estâncias balneares, em especial na Costa do Sol. A activa propaganda do SPN/SNI, exaltando a paz e prosperidade do país, feita na base de contrastes sociais, entre pobres e ricos, apenas aumentava esta sensação de privação para a maioria da população. A partir de 1943, conforme reconhecia a Igreja, o Partido Comunista Português começou a emergir explorando estes mesmos contrastes a que o Neo-Realismo dará forma artística.
- O segundo foi a emergência dos Estados Unidos da América como a grande potência mundial, constituindo os seus estilos de vida e a sua democracia verdadeiros símbolos da modernidade. Na reconstrução dos países europeus devastados pela guerra, a imprensa reconhecia ritmos de crescimento económicos que não tinham paralelo com os fracos progressos obtidos pelo Estado Novo. A comunicação social, afecta ou não ao regime, não deixa de difundir imagens desta prosperidade distante de que a grande maioria dos portugueses estava privada.

O discurso da superioridade de modelo de sociedade portuguesa, assente no corporativismo, transformou-se subitamente no discurso das causas do atraso económico do país. Neste contexto, Salazar rapidamente percebeu que tinha que alterar o discurso do regime e mudar os mecanismos de controlo social, mas para isso tinha também que afastar o homem que criara e encarnara o modelo anterior. Em 1949 António Ferro é compulsivamente afastado do cargo que desempenhara desde 1933. Chegara a hora dos burocratas.


Fonte: http://acultura.no.sapo.pt/page8Matriz.html

António Maria Zorro



Meu Pai

Excertos do testemunho de António Quadros, publicado no Diário de Notícias (Nov.56), dias após a morte de seu pai.

«(…) Deixa-me um imenso vazio, que nada poderá substituir. Creio que deixa um vazio, igualmente, na vida portuguesa. Homem público, funcionário, diplomata, o seu trabalho literário dos últimos anos não é conhecido. Espero que, conforme seu expresso desejo, sejam editados, pouco a pouco, a sua poesia, o seu teatro, o seu «Diário Íntimo», em que as páginas de memórias alternam com as impressões da vida quotidiana e com as observações literárias e artísticas. O público conhecerá ou reconhecerá então um António Ferro diferente, de delicada e profundíssima sensibilidade, e uma cultura vastíssima, actualizada, coada sempre pela emoção que toda a obra de arte provocava no homem e no esteta que ele era. Foi até ao fim um homem superior.(…) Deixou-me uma carta que é o mais nobre e rico testemunho que um pai pode deixar a um filho, e que guardarei sempre junto à minha alma. Diz, a terminar: Uma última recomendação: sê bom, sê bom através de tudo, até quando tenhas de responder à maldade dos outros. A glória humilde, a glória íntima do coração é a maior e a mais bela de todas. Não poder continuar a fazer bem aos outros, a ser, ao menos, gentil para com eles, é agora o meu maior sofrimento.

Era assim o meu pai. Era assim o António Ferro que eu conhecia.»

 António Quadros

TURISMO, FONTE DE RIQUEZA E DE POESIA

A figura de António Ferro permanecerá uma referência irrefutável no paradigma cultural português do século XX. Contudo, a importância das suas decisões no sector turístico tende a ser injustamente esquecida, apesar das diversas resoluções que protagonizou terem influenciado para sempre uma das mais importantes indústrias nacionais. Quase um século passado, as narrativas turísticas continuam a indicar a Aldeia Mais Portuguesa de Portugal (1938), assim como o espaço criado por ocasião da Exposição do Mundo Português e as pousadas de turismo (1940). Recorde-se que em 1940 o turismo passou a ser responsabilidade do Secretariado da Propaganda Nacional (SPN) e, posteriormente, do Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI), a cujas direcções Ferro presidiu. Em 1949, o SNI edita alguns discursos do seu director sob o título Turismo, fonte de riqueza e de poesia, onde terá sido um dos primeiros a expor objectivamente a urgência de aperfeiçoar os serviços turísticos, bem como a falta de alicerces essenciais ao desenvolvimento da indústria, cuja fama deveria atrair visitantes estrangeiros. Para o escritor e jornalista, o turismo é a grande indústria dos sonhos, geradora de receitas e prática unificadora das diversidades da nação. António Ferro sonhou um turismo, em que as experiências proporcionadas fossem mais bela[s] do que o sonho de cada noite.

Cândida Cadavez



ANTÓNIO FERRO E O SEU NOVO MUNDO
 
António Ferro foi indubitavelmente uma das mais controversas figuras do Estado Novo. Nascido em Lisboa em 1895, publica o seu primeiro livro aos dezassete anos, quando ainda aluno do liceu. Era um volume de poesia, Missal de Trovas, composto em colaboração com Augusto Cunha. Pouco depois estabelece amizade com vários membros do grupo do Orpheu, Mário de Sá-Carneiro, Luís de Montalvor, José Pacheco e Almada Negreiros, e frequenta as suas tertúlias, onde tem a oportunidade de conhecer Fernando Pessoa. Em 1915 é nomeado director da revista. Parece bastante plausível que a nomeação se tivesse devido a razões algo calculistas. O grupo sofria de persistentes dificuldades financeiras e, como menor, António Ferro não poderia ser legalmente responsável por quaisquer dívidas que a revista contraísse.

Em 1917 pronuncia uma conferência intitulada "As Grandes Trágicas do Silêncio", a primeira em Portugal sobre a nova arte cinematográfica. Também faz outras conferências sobre jazz, que mais tarde irá compilar em A Idade do Jazz Band.

Em 1918 parte para Angola como oficial miliciano. Aí serve como ajudante de campo do Governador Geral, Filomeno da Câmara, um homem de direita por quem António Ferro cria uma funda admiração, e é mais tarde nomeado secretário geral da colónia. De regresso a Lisboa no ano seguinte, é chefe de redacção de O Jornal, que apoiava a linha sidonista, muito próxima do conceito de uma monarquia sem rei. Nestes perturbados anos de caos político a carreira jornalística de António Ferro floresce.

Em 1920 chama a atenção do público ao fazer estampar n'O Século uma entrevista com Gabriel D'Annunzio, que acabara de ocupar a cidade de Fiume, reclamando-a para a soberania italiana. Também trabalha como crítico literário e teatral e em 1922 é escolhido como director de A Ilustração Portuguesa. Nesse mesmo ano está presente na Semana de Arte Moderna de São Paulo, que iria lançar o movimento modernista brasileiro. Entretanto continua entrevistando figuras célebres da actualidade internacional, como Mussolini, o General Primo de Rivera, Poincaré, Pétain, Jean Cocteau, Colette, Mistinguette e outros. Por estes tempos também segue fazendo conferências e escreve teatro.

Uma série de entrevistas com Oliveira Salazar, Presidente do Conselho de Ministros, em que se definiram os pontos mais importantes da orientação política do Estado Novo, lança António Ferro por um rumo diferente. Em 1933 é nomeado director do Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), mais tarde designado como Secretariado Nacional da Informação (SNI). Sob a sua direcção, que irá durar até 1950, além de dar publicidade ao novo perfil de Portugal no país e no estrangeiro, o Secretariado lança uma série de notáveis iniciativas culturais, entre elas o Teatro do Povo, o Cinema Ambulante e os Bailados Verde Gaio, além de exposições de arte, conferências, prémios literários e missões culturais. António Ferro é naturalmente o grande dinamizador deste programa e em breve consegue reconhecimento público como promotor da cultura portuguesa. Para isso tem de optar por um equilíbrio muito precário entre as exigências políticas extremamente conservadoras que o circundam e as suas próprias inclinações estéticas para um conceito modernista da arte. Outro projecto que dirige é a Exposição do Mundo Português, inaugurada em 1940, que atraiu um vasto número de visitantes nacionais e estrangeiros. Em 1941 é nomeado director da Emissora Nacional, a estação oficial de rádio, que ele imediatamente começa a remodelar. A sua última função pública é a de Ministro de Portugal em Berna. Vem a falecer em Novembro de 1956.

A associação de António Ferro com a ditadura e o seu papel como principal catalisador do mito salazarista antagonizaram muitos críticos. Por consequência o seu valor como escritor e jornalista nunca foi reconhecido com a devida justiça. De facto a imagem do homem de acção, formulador de uma política cultural que muitos consideravam manchada pelo totalitarismo do regime, obscureceu as qualidades artísticas na visão da predominantemente liberal intelligentsia portuguesa do tempo. Foi contudo um multifacético literato, um intérprete original e mundano da sociedade do tempo, uma personalidade combativa, um agudo crítico, um futurista que constituiu um dos mais importantes pilares de um sistema político ferozmente tradicionalista, uma curiosa combinação de boulevardier e oficiosa figura pública.

No início da década de vinte o espírito do Orpheu estava ainda presente na sua obra. O livro A Teoria da Indiferença causou uma forte repercussão dentro dos círculos literários de Lisboa pela sua natureza paradoxal e vanguardista. A peça Mar Alto foi proibida depois da primeira representação devido ao realismo cru que revelava e só pôde de novo ser encenada na década de oitenta. No entanto António Ferro parecia estar fascinado pelos regimes autoritários e euforicamente declarou "Há uma primavera de espadas por todo o mundo" uma semana antes da revolução de 28 de Maio de 1926, que pôs fim à primeira república portuguesa. No ano seguinte fez publicar a sua Viagem à Volta da Ditadura.

Em 1927 António Ferro visitou os Estados Unidos. Com base nas suas impressões deste país escreveu uma série de reportagens para o Diário de Notícias, mais tarde republicadas em dois volumes, Novo Mundo Mundo Novo (1930) e Hollywood, Capital das Imagens (1931). A viagem ao Novo Continente iniciou-se em Março, quando embarcou em Cherburgo no paquete americano Leviathan com destino a Nova Iorque. A vida a bordo deu-lhe já uma prefiguração da sociedade americana. Parece ter ficado especialmente impressionado pelo conforto, singeleza, opulência e mesmo uma certa excentricidade do ambiente que observou dentro do navio. Aí uma das mais sobressaltantes experiências foi uma visita à barbearia, comentada com a sua habitual originalidade de expressão:
Os barbeiros americanos são autênticos cirurgiões. Não fazem a barba: operam. Estendem-nos ao comprido na cadeira. Ficamos na posição horizontal das grandes operações. Uma vez nessa posição, será o que Deus quiser! Esfregam-nos, molham-nos, queimam-nos, esquartejam-nos...

Como se isso no fosse suficiente, o "carrasco inconsciente", como o autor lhe chama, apresentou-lhe uma conta de três dólares, uma soma que na realidade deveria ter parecido astronómica num contexto português da época.

Nova Iorque, a "cidade formidável, impossível, com as reticências infinitas das suas janelas", tal como ele a viu, foi logo uma revelação. Mesmo desde o navio deu-lhe uma imediata impressão de grandeza. Depois, ao deambular por Manhattan impressionaram-no o rápido andamento da vida americana, a azáfama das ruas, o intenso trânsito automóvel, a espantosa ostentação de riqueza na Quinta Avenida, a fúria da música de jazz em Harlem. Foi contudo capaz de se deter para uma visão poética da urbe: os arranha-céus que fogem da terra, os negócios tratados no trigésimo andar de um edifício do centro que sugerem o lirismo de um soneto composto numa mansarda, a Broadway que oferece a mágica da sua "luz-champanhe", os americanos que plantam jardins no topo dos mais altos buildings numa ilustração de idealismo prático.

A sua atenção divide-se entre os pormenores mais quotidianos, como uma banda do Exército de Salvação tocando em qualquer esquina, e os mais significativos, como a surpreendente espectaculosidade do acolhimento feito a Charles Lindbergh na cidade. Mesmo vendo-o à distância, António Ferro consegue captar as características mais marcantes da personalidade de Lindbergh através da sua expressão. Vê nele o all-American boy socialmente inocente, deixa-se impressionar pelo sorriso infantil, pela límpida pureza do olhar, a agradável combinação de uma desajeitada presença e um natural savoir faire.

As observações de António Ferro deixam a impressão de serem especialmente penetrantes e pertinentes. Bom europeu, sente-se esmagado pelas gigantescas dimensões da cidade mas consegue contudo acercar-se aos seus detalhes mais íntimos e tocantes como um pequeno cemitério escondido como um relicário entre a altura dos edifícios do centro da cidade. Vem para Nova Iorque com um espírito aberto, isento de preconceitos, sempre sensível à beleza -- sem exclusão da beleza feminina. Aqui e além um toque de delicada ironia emerge do seu maravilhar-se ante a tecnologia americana ou a estranheza dos novos costumes.

A sua aventura novaiorquina continua por outras paragens. Em New Bedford seduzem-no o esplendor, as cores e os sons de um circo americano. No comboio de Houston para St. Louis conhece um companheiro de viagem com aspecto de apagado caixeiro-viajante que depois se revela ser o filho do magnate Cornelius Vanderbilt. Isto é verdadeiramente a América, a terra dos incessantes assombros. Elogia os aspectos positivos e pragmáticos desta nova sociedade, tais como a simples e natural interacção entre os sexos: "Na América um e um são realmente dois...". Enleva-se com o sistema educativo, escolas que parecem palácios, o jeito amigável que professores e alunos têm uns para os outros, a pronta naturalidade com que os universitários aceitam o trabalho manual como forma de financiar os seus estudos. Mostra-se talvez algo exageradamente optimista quanto às virtudes do código de honra das instituições de ensino superior mas é tão compreensivo quanto os ziguezagues pelo labirinto da nova civilização lhe permitem ser. O seu humanismo é surpreendente. E também o é a sua imediata reacção aos instantâneos de dinamismo e vitalidade de que se vai apercebendo.
Em Washington tem a oportunidade de ser recebido pelo Presidente Coolidge que se mostra cordial e parece interessado em saber a sua opinião sobre a situação política portuguesa. Para António Ferro, Coolidge é o antigo lavrador, o político simples mas firme e inteligente que dirige a nação como dirigira antes o seu estado natal de Massachusetts. E o gabinete presidencial na Casa Branca simboliza o homem:
Não há um móvel ocioso, não há um quadro, não há um bibelot, não há uma flor. É um gabinete lacónico e seco, um artigo imperioso da Constituição. Uma grande secretária, uma estante de duas prateleiras enterrada na parede, uma mesa redonda ao centro da casa, meia dúzia de cadeiras, a bandeira americana junto da secretária.
Uma simplicidade eloquente. Mas este gabinete, de poucas palavras, é um discurso, é propaganda da boa democracia.

O jornalista que tinha tão ferventemente exaltado o poder da espada mostra-se agora deveras tocado pelo calmo poder da democracia.

A América passa como um filme diante dos olhos de António Ferro. Do vagão-observatório, durante longas viagens de comboio, vê cidade após cidade, mal diferenciáveis entre si, sempre com o mesmo edifício de madeira em frente da estação de caminho de ferro, a palavra HOTEL destacando-se da fachada. Ao aproximar-se de Chicago apercebe-se de um "exército infinito de chaminés" que desfila durante duas horas. Estas chaminés "são as árvores de Chicago e de Detroit, são os charutos das fábricas milionárias..." Nova Iorque e Chicago competem por um maior hotel, um arranha-céus mais alto, ambas oferecem o estonteante espectáculo de uma vaga de apressadas e palradoras empregadas de escritório invadindo os passeios às seis da tarde. A curiosidade de António Ferro é insaciável: "Todo o europeu que chega ao Novo Mundo é um descobridor, um descobridor de coisas simples e práticas, um descobridor de ovos de Colombo..." É de facto esta atitude, esta capacidade de fascinação pelas coisas singelas da vida que marca a cada passo a óptica do autor.

Com as suas flores, as suas árvores de fruto, os seus verdes, a Califórnia recorda-lhe o Minho. San Francisco é uma cidade mágica, debruçada sobre o Pacífico, espreitando o Extremo Oriente pela fresta da Golden Gate Bridge. Esta "cidade-cocktail", esta urbe sorridente e alegre desperta-lhe aquela sensação de estar em casa tantas vezes experimentada por gentes do sul da Europa que a visitam. Uma ida ao teatro chinês não pode deixar de contribuir para o mistério e encanto do ambiente.

O propósito primordial desta visita de dois meses aos Estados Unidos era entrar em contacto com a comunidade portuguesa aí emigrada. Para cumprir esse objectivo faz planos para passar vinte dias na Califórnia e mais alguns na Nova Inglaterra. Confessa que o quadro desta emigração se revela algo nebuloso em Portugal. O emigrante é ignorado, quanto muito ironizado. Visto como completamente absorvido pela América, privado dos seus valores ancestrais, não oferece uma silhueta diferenciativa aos olhos dos que ficaram atrás. Esta é a imagem que António Ferro se propõe desmentir. A sua intenção é demonstrar como os laços que ligam o emigrante à pátria continuam a ser vigorosos.

É todavia uma tarefa difícil. Embora António Ferro continuamente aluda aos ideais patrióticos e insinue as vantagens de um regresso à tradição, tem de admitir que se criou uma nova geração do outro lado do Atlântico. A mulher portuguesa na América impressiona-o em particular. Enfatiza em especial a capacidade organizativa das dirigentes das duas sociedades femininas da Califórnia. O leitor encontrará nas suas palavras um contraste discreto, talvez quase desapontado, com o comportamento feminino em Portugal quando faz notar que as portuguesas da América normalmente guiam carros, montam a cavalo, jogam golfe, frequentam as piscinas, dominam as danças modernas e se vestem do mesmo modo que as suas irmãs americanas. Admira francamente a sua liberdade, a sua abordagem prática da vida. Chega mesmo a apontá-las como modelos para as mulheres que ficaram na pátria, uma atitude surpreendente para um português dos anos vinte, produto de uma sociedade tradicionalista em que a cultura francesa, não a americana, era considerada a paradigmática.

Os seus encómios vão também para os homens. Vindo de um país onde se habituara ao panorama de um sector rural de limitados recursos, sublinha com impressionante justeza a relativa opulência do lavrador ou trabalhador agrícola português na Califórnia:
Todos vivem bem. Todos têm o seu "rancho", o seu bungalow, o seu automóvel. Há uma escala de fortuna que vai de dez mil dólares (poucos estão no princípio da escala...) até dois milhões de dólares. Não há grandes fortunas mas também não há miséria. O bem estar é geral. Ninguém precisa do seu vizinho para comer o pão de cada dia...

Conta depois uma série de histórias de êxito económico.
Menciona o rapazinho pobre que chega aos Estados Unidos sem conhecer uma palavra da nova língua e só com uns quantos dólares no bolso e consegue chegar a ser médico, advogado, político, próspero agricultor ou negociante. Manifesta espanto ante a extraordinária capacidade de aculturação ao mundo moderno demonstrada pelo emigrante português. Uma das suas mais vívidas ilustrações é a de um proprietário rural açoriano, analfabeto mas absolutamente familiarizado com sofisticadíssima maquinaria agrícola, que vive num lar confortável onde o jornalista pôde observar um piano, um fonógrafo, pratas e louças caras, uma elegante casa de banho e -- num irónico contraste -- um altar erigido em honra do Divino Espírito Santo.

Os sentimentos nacionalistas de António Ferro alvoroçam-se quando ouve os luso-descendentes falarem a língua ancestral. Talvez seja um português estranho, muitas vezes rústico e primitivo, mas é a língua da pátria. Por outro lado será talvez possível descortinar-se nele uma ligeira irritação quando ouve algumas luso--americanas conversando em inglês entre elas durante um almoço oferecido ao jornalista. Isto sugere-lhe a necessidade de Portugal prestar maior atenção aos seus filhos espalhados pelo mundo. De certo modo parece lamentar que outros países atraiam este segmento da população portuguesa e apela mesmo para um encaminhamento da emigração para as colónias portuguesas de África.

Existem, muito compreensivelmente, afirmações e quantificações bastante discutíveis no seu balanço geral da comunidade lusa na Califórnia. António Ferro veio como jornalista e escreveu sobre o que teve oportunidade de observar, talvez de um modo algo superficial em vários casos, e sobre o que lhe foi dito por compatriotas quiçá movidos por um desejo de supervalorização dos seus conseguimentos. Não fez, e não poderia ter feito, uma pesquisa metódica e em profundidade. Assim, pinta um quadro que de vez em quando parece demasiadamente cor-de-rosa e que algo diverge da realidade. O seu agudo sentido jornalístico leva-o contudo à essencialidade da vida emigrante. Pode errar um pouco nos pormenores mas patenteia um seguro instinto para imediatamente detectar as facetas mais pertinentes da presença portuguesa na Califórnia. Além disso pode reclamar para si a distinção de ter sido o primeiro autor que em Portugal se preocupou com esta emigração e sobre ela escreveu.

Los Angeles, onde passou duas semanas, foi outra revelação para António Ferro. A sua pintura desta "cidade festiva" está marcada por fortes pinceladas de impressionismo, que fazem ressaltar a luminosidade, a abundância de flores, uma arquitectura muito própria. O quadro geral da cidade é dado através de rápidas mas expressivas miniaturas: a visão do restaurante Brown Derby construído em forma de chapéu de coco, as cottages de Beverly Hills, o exótico perfil do Grauman's Chinese Theater, Hollywood Boulevard, o "boulevard-écran", todo um desfile de novas sensações. Aqui também se patenteia o deslumbramento sempre presente, uma aproximação quase lírica à nova ambiência.

Uma parte de Hollywood, Capital das Imagens trata do estranho mundo do filme, da sobreposição da fantasia à autenticidade. Com uma frase, "A realidade de Hollywood (...) é a sua irrealidade", António Ferro encapsula as suas perplexas conclusões. A recriação do ambiente da rua dentro de um estúdio deixa-o estupefacto, a estatura da gente do cinema, quase a roçar o épico, causa-lhe um notório impacto. É mais uma faceta desta estranha América, por vezes tão humana, por vezes tão artificial.

A sua última semana no Novo Mundo foi passada com as comunidades portuguesas da Nova Inglaterra. Lamenta que o tempo não lhe tivesse permitido uma visita mais prolongada a esta zona ou qualquer contacto com os núcleos de Newark ou Brooklyn, de facto colónias de maior densidade que a da Califórnia e, na altura, diferenciáveis dela pelo seu cunho urbano e industrial. Teve apesar de tudo ocasião de entrevistar alguns dirigentes comunitários e de apreciar a mesma pronta hospitalidade que já na costa do Pacífico lhe tinha sido brindada.

De um modo geral Novo Mundo Mundo Novo e Hollywood, Capital das Imagens são precisamente o que o primeiro título sugere. António Ferro chega à América com uma atitude de tabula rasa e deixa-se encharcar pelas maravilhas da nova civilização. Admira francamente o que vê e através das suas páginas o leitor dá-se conta da constante apetência de conhecer mais e mais, de penetrar mais fundo no novo ambiente, de o descrever artisticamente. Os seus antecedentes intelectuais e profissionais impelem-no para agarrar com ambas as mãos a novidade com que por todo o lado esbarra. O futurista tinha encontrado o futuro.

NOTAS

. Sidónio Pais fora assassinado a 14 de Dezembro de 1918.
. Recorde-se que em 1927 a ditadura militar atravessava ainda um período de relativa desorientação, que só se veio a estabilizar quando Oliveira Salazar tomou as rédeas do poder em 1932.
. Os comportamentos que ele descreve parecem no entanto mais típicos da mulher luso-- americana do que da mulher emigrante. É plausível que neste aspecto António Ferro se tenha deixado arrastar pelo indiscriminado uso americano de termos de nacionalidade, que engloba por exemplo como "portugueses" os luso-descendentes, mesmo de terceira ou quarta geração.
 

Eduardo Mayone Dias
University of California (Los Angeles)

CULTURA POPULAR

Vai com toda a probabilidade passar despercebido sob a torrente de bestsellers que entopem o circuito livreiro. Razão acrescida para falar do livro que o historiador Daniel Melo (n. 1970), investigador do Centro de História da Cultura da Universidade Nova de Lisboa, acaba de publicar:  A Cultura Popular no Estado Novo. Inserido na Biblioteca Mínima da editora Angelus Novus, o livro aborda «a política cultural do Estado Novo para o povo.» Trata-se de uma síntese breve  —  é esse o perfil da colecção dirigida por Rui Bebiano  —  sobre itens tão diversos como, entre outros, o nacional-ruralismo de Salazar; folclore e corporativismo nos campos; a “fábrica do espírito” de António Ferro; a FNAT; a literatura popular; Casas do Povo; a estetização do regime, do SPN ao SNI; animação cultural, do fado ao cinema; o Plano de Educação Popular; a Acção Católica Portuguesa; as bibliotecas da Gulbenkian; bem como as propostas alternativas dos sectores da sociedade que resistiram ao “cerco oficial”.

Brevíssimo excerto: «O circuito de reprodução ideológica incluía não só os folcloristas amadores como os agentes corporativos (Coelho do Vale, Manuel Couto Viana, etc.), os especialistas de disciplinas diversas, como a história (António G. Mattoso), a geografia (Amorim Girão), a arquitectura (Raul Lino), a linguística (Manuel de Paiva Boléo), entre outras. Ademais, as origens socioprofissionais eram diversas, abarcando padres, militares, aristocratas, políticos, etc. A maioria dos seus colaboradores tinha uma formação superior, destacando-se os professores, sobretudo os universitários. Uma elite intelectual preocupada com a dimensão da cultura popular devia instruir a elite local, isto é, os dirigentes corporativos das casas do povo, na perspectiva etnográfica oficial, de modo a que esta, por sua vez, estivesse em condições de realizar conscienciosamente a sua obra nacionalista no mundo rural.» (pp. 58-9)

Eduardo Pitta
in "Da Literatura"

ANTÓNIO FERRO E O MUSEU POÉTICO...

Dia 15 de Julho de 1948 António Ferro inaugurou o Museu de Arte Popular, em Belém, no qual participaram os arquitectos Veloso Reis e Jorge Segurado, os artistas Thomaz de Mello, Estrela Faria, Carlos Botelho, Manuel Lapa, Paulo Ferreira e Eduardo Anahory, além do etnógrafo Francisco Lage. Na revista «Panorama» (nºs 36 e 37, 1948), frisa: «Não é apenas um museu de arte popular, onde as coisas venham encher-se de bolor; é também, ou sobretudo, um Museu poético – o museu da poesia esparsa, do povo português, da terra portuguesa».

Fundação António Quadros
In Newsletter 01




Carta a António Ferro

Peço desculpa da ousadia de escrever-lhe, não me conhecendo o Senhor António Ferro nem de nome. Mas talvez o nome de Eça de Queiroz, ou melhor, o do Círculo que tem o grande escritor como patrono – por sugestão do brilhante espírito de António Lopes Ribeiro -, talvez esse nome seja um cartão de visita para me apresentar ao Senhor António Ferro.

Calculo que o Círculo Eça de Queiroz lhe desperte muitas e gratas recordações. Para um espírito criativo e insatisfeito como o seu, que conseguia tornar realidade os sonhos, um clube, mas diferente dos outros clubes, lhe parecia um projecto, mais um, a lançar. Não um clube na grave tradição inglesa e ao gosto machista do português – um clube só de homens -, mas franqueado às senhoras que põem uma nota de graça, elegância e sensatez num ambiente em que a boa conversa poderá derrapar para a má língua. Se desde a criação do Círculo, e por expresso propósito do seu fundador, as portas se abriram às senhoras, elas são hoje, não apenas convidadas por um dever de cortesia, mas sócias de pleno direito, como tais eleitoras e elegíveis para cargos directivos. Mudam-se os tempos…. O senhor António Ferro, sempre avançado sobre o seu tempo, há-de gostar desta novidade, As damas só são indesejáveis quando pretensiosamente sabichonas ou estupidamente fúteis.

Um clube fundado por um escritor e que tem por patrono um escritor não é porém um clube de escritores, porque aberto a todas as profissões. É  a diversidade que gera a riqueza, com a permuta de ideais e experiências. E contra o unilateral espírito sectário, o Círculo, honrando, como lhe cumpre, a memória de Eça, não exclui outros escritores, a começar por Camilo dando a cada qual o que é seu, segundo um princípio que, na harmonia dos contrários, busca a complementaridade. A arte de Camilo brota da raiz; da arte de Eça desabrocha a flor. Sem raiz não há flor, sem flor não há graça.

As instituições, sejam elas quais forem – ordens religiosas, clubes sociais ou organismos de cultura -, poderão aperfeiçoar-se tanto mais quanto maior for a fidelidade ao espírito do fundador. O Círculo avança ao seguir os passos do fundador e seu primeiro director, naturalmente com as correcções impostas pela marcha do tempo. Outra é a cidade, outro o país, outro o mundo e a mentalidade. Mas as alterações indispensáveis não devem traduzir-se em gosto da mudança pela mudança, desrespeito pelo passado e pelo património granjeado pelas gerações anteriores. O Senhor António Ferro é todo o oposto do imobilismo bovino e ruminante, incapaz de acrescentar um côvado ao que herdou. Como na parábola dos talentos, há gente que se limita a restituir, a exemplo do prudente administrador, o que lhe foi confiado. Ora o Senhor António Ferro, além de constituir o capital da instituição, aumentou-o sempre. Mas, se é possível segui-lo aí, quem o pode limitar no rasgo e na capacidade de tornar fértil o deserto? E embora o meio não dê, como reconheceu num artigo dos começos dos anos 20, reagiu ao comodismo e à mediocridade abrindo portas fechadas e navegando mesmo contra ventos contrários.

Se me fosse concedido tempo e vagar, ainda gostaria de escrever, mesmo com lacunas, sobre a acção do fundador do Círculo. Um aspecto eu tomaria a peito focar: o dos visitantes ilustres ou dos grandi ospiti (para lembrar o título do livro de G.B. Angioletti), visitantes que, a seu convite, vieram ao Círculo falar ou, simplesmente, conviver: Maeterlinck, Marañon, tantos outros.

Na hora da despedida, quando penso na sua acção e, ai de mim, nos meus pecados de omissão, sinto-me confundido. Pecados (digo para justificar-me) cometidos, não por culpa subjectiva, mas por culpa objectiva: falta de meios materiais e humanos. Por isso, não se fizeram coisas que se pensaram e até prometeram. A que mais me custou foi a não publicação das conferências proferidas no centenário queiroziano de 2000 (como aconteceu, por sua iniciativa e gosto gráfico, no ano centenário de 1945). Mas o subsídio prometido acabou por não vir, e teve de sacrificar-se a edição do livro porque outras despesas houve que fazer, e urgentes: reparações na nossa sede, muito afectada por grandes obras na vizinhança. Viveram-se maus momentos, tiveram de fechar-se as portas, na incerteza de quando e como se voltariam a abrir. Valha-nos a preocupada atitude de algum sócio que se lamentava unicamente de não poder ir almoçar ao Círculo….

Agora que já se pode fazer um balanço do que se fez e, sobretudo, do que não se fez, há como um sentimento de fracasso. Mas, se alguma coisa serve de conforto, é o testemunho do Senhor António Ferro que, tendo realizado tanto – dir-se-ia que tudo -, vem confessar, nas páginas privadas do seu melancólico diário, a falência da sua acção. Quando a sua imagem pública é a de um vencedor, eis que, na sua confissão em surdina, se lamenta de ser um vencido.

Não um vencido por atitude estética, a exemplo dos escritores da Geração de 70, mas como homem activo que, na hora crepuscular da retirada, verifica. Como o Ega, que falhou. Falhámos a vida, menino! E nessa falência inclui uma obra literária em fragmentos, intuições, paradoxos, toda de páginas febris de jornalismo e reportagem.

Retratado por um pintor espanhol, num quadro hoje exposto no Salão Nobre o Círculo, o Senhor António Ferro aparece pesadamente sentado, segurando Os Lusíadas e com o Castelo de S. Jorge como pano de fundo. Imagem convencional, estática e passadista de um homem que vemos sempre de pé, ainda que sentado, caminhando com desembaraço ao encontro do futuro. Imaginamo-lo, mais facilmente, como um livro de greguerías de Ramón Gómez de la Serna ou de um dos seus companheiros da Semana de Arte Moderna de São Paulo, como provocador Oswald de Andrade e a sua Revista de Antropofagia. E, como décor, um cenário pintado por Léon Bakst para os Ballets Russes.

E nesta onda de fantasia permita-me o Senhor António Ferro surpreendê-lo no Círculo, na companhia de Ramón, com a sua inextinguível verve ou o seu ramonismo… Mas, em 1940, já o seu amigo Ramón se fixara, definitivamente, em Buenos Aires. E o também amigo Unamuno já partira, antes de Rámon, para um continente muito mais longínquo e de onde não se regressa; a eternidade, esse enigma ou essa Esfinge que ele interrogara agonicamente.

Não devo abusar mais da sua paciência em ouvir-me, embora desejasse prolongar esta conversa epistolar. Tantas coisas ainda para dizer, tantas perguntas a fazer, como se eu quisesse entrevistar o brilhante entrevistador. Antes de terminar, ainda lhe confidenciarei que sonho às vezes um clube diferente – um clube reservado aos grandes aventureiros do espírito, inimigos do lugar-comum e do conformismo. Clube em que estaria, por direito próprio, o Senhor António Ferro e, só para citar mais um nome, o seu amigo Mircea Eliade,

Cumprimentos do seu admirador
João Bigotte Chorão

UMA FIGURA POLÉMICA

António Ferro é, de facto, uma figura intrinsecamente polémica, que desencadeia ódios e paixões, privilégio, aliás, daqueles que, sabendo o que querem, são os únicos capazes de despertar interesse na paisagem monótona e cinzenta das unanimidades castradoras. Navegando entre as tendências modernistas da sua juventude, em que acompanha Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro, o entusiasmo pelos regimes fortes, que o leva a admirar Mussolini, e o desejo de realizar em Portugal um renascimento cultural, que tenta com o apoio inequívoco de artistas e escritores e o apoio condicional de Salazar, primeiro, e com uma já translúcida oposição de parte da intelligentsia nacional e uma cautelosa reserva de Salazar, depois, António Ferro prossegue a (sua) política do espírito, discutível, sem dúvida, mas merecedora do reconhecimento nacional. Ele foi, avant la lettre e “avant Malraux”, o nosso primeiro ministro da Cultura.
João Gonçalves
17.08.09 

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António Ferro
 
Cumprem-se, no dia 11 de Novembro, 53 anos sobre o inesperado desaparecimento de António Ferro, jornalista, escritor, político e embaixador. Tinha então 61 anos e uma vida consagrada, em boa parte, à construção de uma possibilidade que ainda nos atinge no presente em toda a sua inteireza – a de que cabe ao Estado, no quadro das políticas de serviço público, apoiar as mais diversas práticas culturais, posto que a larga maioria não encontra possibilidade de se desenvolver sem este seu auxílio. Talvez o lance mais interessante da sua intervenção esteja no facto de muito cedo ter seduzido e convencido Oliveira Salazar de que seriam os artistas de vanguarda, os da sua própria geração, ainda relativamente jovens à época, aqueles que careciam de maior atenção e protecção do Estado Novo. O Secretariado da Propaganda Nacional, criado ainda em 1933, é, sem margem para dúvida, a estrutura mais remota do actual Ministério da Cultura. Concebido por António Ferro, paulatinamente viria a desenvolver modalidades de enquadramento e financiamento de todos os sectores da vida cultural portuguesa, até finais dos anos 40, nele se incluindo durante vários anos também os serviços de censura. O convívio inédito entre um regime autoritário e os representantes de uma estética não académica permitiu a invenção de novas formas de comunicação entre o Governo e as massas, daí resultando um imaginário – explorado tanto internamente quanto em grandes exposições internacionais –, baseado no culto do líder, numa multiforme exploração da herança patrimonial, mas sempre através de uma gramática modernista. António Ferro foi o teórico e o obreiro desta importante articulação entre Poder e Arte. Os diagnósticos e soluções que foi sistematizando ao logo dos anos 30 e 40 não conheceram, até aos dias de hoje, uma problematização que se apresente como alternativa.

Jorge Ramos do Ó   


“Invenções de Memórias e Reinvenções de Identidades no Séc. XX Português” - Crónica de uma conferência

A memória de António Ferro foi evocada e lembrada no passado dia 31 de Maio, na Escola Secundária do Padrão da Légua, em Custóias/Matosinhos, numa conferência do Mestre José Augusto Maia Marques, professor do Instituto Superior da Maia e director do Departamento da Cultura da Câmara Municipal da Maia, subordinada ao tema “Invenções de Memórias e Reinvenções de Identidades no Séc. XX Português”.

Esta apresentação foi organizada por um grupo de alunos de uma turma de 12º ano de Línguas e Humanidades, no âmbito da disciplina de Área de Projecto, cujo tema de trabalho se subordinava à “Divulgação da Cultura Portuguesa”. Esta foi a segunda e última conferência preparada no campo de acção proposta por este grupo de estudantes que, já anteriormente, tinha organizado uma outra apresentação subordinada ao tema “A Afirmação do Galego-Português no Séc. XIII”, proferida pelo Doutor José Carlos Miranda, investigador e docente da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Tal como no primeiro encontro, igualmente destinado à sensibilização e discussão de questões tão relevantes à compreensão da nossa identidade e matriz cultural, esta apresentação revelou-se um sucesso quanto à afluência de público, envolvendo a comunidade escolar, incluído alunos, professores, auxiliares de acção educativa e convidados.

Após uma breve contextualização, comportando questões ligadas à manipulação da memória histórico-identitária, forja de fontes, e consequentemente, da própria História, o Mestre Maia Marques passou à hermenêutica do séc. XX português, percorrendo os três grandes períodos políticos que marcaram a nossa última centúria: I República, Estado Novo e III República, destacando aqui, essencialmente, a época do PREC.

Apoiado por uma projecção didáctica visual, ricamente constituída por textos e imagens, o convidado interpretou as diferentes implicações da propaganda no séc. XX português, despindo sem preconceitos, mitos, fantasias e verdades históricas que, ano após ano, são indiscriminadamente transmitidas aos alunos, tanto no âmbito da educação formal, como informal. Partindo da ideia de dualidade entre bem e mal, o orador procurou distinguir as “invenções históricas” benéficas daquelas mais subversivas, e por vezes completamente falseadas, responsáveis pela manipulação da opinião pública. As reacções dividiram-se entre o espanto e algum desconforto inicial, denotado por algumas das pessoas presentes, que acompanharam com interesse toda a sessão.

Assim, após uma desconstrução de alguns dos embustes historiográficos relativos aos períodos da I República e pós-25 de Abril, passou-se finalmente ao contributo cultural das reinvenções da identidades e memórias nacionais durante o Estado Novo, materializadas e eternizadas pela obra de António Ferro.

Da Campanha do Bom Gosto, passando pela defesa e promoção generalizada do património histórico-etnográfico nacional, à realização da Exposição do Mundo Português, participação em diversas feiras internacionais, ou o apoio dos mais variadíssimos grupos artísticos, foram várias as áreas de intervenção de António Ferro dadas a conhecer à comunidade escolar, tendo sido evidenciada a importância indelével deste intelectual português na formação de uma ideia de portugalidade que, goste-se ou não, constitui indiscutivelmente a nossa idiossincrasia e mundividência.
José de Almeida
 
in Newsletter 12, da Fundação António Quadros
14 de Junho de 2010

A Verdade sobre a “Mensagem”

Um dos muitos mitos pessoanos criados por João Gaspar Simões na sua Vida e Obra de  Fernando Pessoa (1950) e que ainda hoje perduram, tornados lugares-comuns acriticamente  repetidos por sucessivas gerações de estudiosos pessoanos, é o do “prémio  de  consolação”  atribuído  em  1934  à  Mensagem  pelo  júri  dos  Prémios Literários do Secretariado da Propaganda Nacional (S.P.N.).

É esse episódio de que me vou ocupar, propondo não uma verdade “à la Gaspar Simões”,  mas uma tentativa de aproximação à verdade do que realmente se terá passado.

No entanto, como se verá, embora seja evidente que a Mensagem não recebeu um “prémio  de consolação” humilhante, persistem no processo alguns aspectos pouco claros (para não dizer misteriosos) que não encontram fácil explicação.

Em nota  publicada  nos  jornais de  29  de  Novembro de  1933, o  Secretariado da Propaganda  Nacional,  dirigido  por  António  Ferro,  anunciava  a  criação  de  cinco Prémios Literários – Prémio Eça de Queiroz (Romance), Prémio Alexandre Herculano (História), Prémio  Antero de Quental (Poesia), Prémio Ramalho Ortigão (Ensaio) e Prémio António Enes (Jornalismo), destinados a que “a Política do Espírito seja, em Portugal, uma realidade, e para que a nossa atmosfera intelectual se anime de novos estímulos e de novos motivos de expansão (...)”.

O  regulamento  do  concurso  punha  condições  à  índole  das  obras  que  seriam admitidas.  Falava-se  em  servir  “uma  intenção  amplamente  construtiva”  (para  o Romance),  em  “firme  critério  patriótico”(para  a  História),  em  “inspiração  bem portuguesa e, mesmo, de preferência, um alto sentido de exaltação nacionalista” (para a  Poesia), em  “espírito nacional e  renovador” (para  o  Ensaio)  e,  finalmente, em assunto de largo alcance nacional” (para o Jornalismo).

O Júri do Prémio Antero de Quental seria constituído por “um poeta de grande nome nacional, um poeta da nova geração literária e dois críticos literário em exercício na Imprensa de Lisboa”.

As condições do concurso provocaram uma reacção imediata da revista Presença, em cujo  número  39  (o  mesmo  em  que  veio  publicada  a  “Tabacaria”,  de  Álvaro  de Campos), Albano Nogueira veio severamente contestá-las, em nome dos “direitos do Espírito e a inalienável liberdade do Artista”. Escreve o articulista: “Seria por todos os títulos louvável tal iniciativa se, logo de princípio, os seus possíveis bons resultados não  estivessem  seriamente  comprometidos pelo critério adoptado”, porquanto tais bases não só tendiam a reduzir o artista, a “servidor de qualquer doutrina ou seita” ou a “panfletário”, como iriam certamente viciar o julgamento dos méritos das obras.1

As condições restritivas do Regulamento não preocuparam excessivamente Pessoa, que resolveu concorrer ao Prémio Antero de Quental com a Mensagem. Como disse a Casais  Monteiro, em carta de 13 de Janeiro de 1935, “Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei  porquê, ter  organizado e  pronto.  Como  estava  pronto,  incitaram-me  a  que  o publicasse: acedi”.2

Na mesma carta, Pessoa esclarece: “Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de “Mensagem” figurava em número  um”. Tipicamente, Pessoa dizia ao seu correspondente o que para ele, naquele momento, era “verdade” – mas não o tinha sido três anos antes, quando dava conta a João Gaspar Simões dos seus planos editoriais.

De facto, em carta de 28 de Julho de 1932, dizia a Gaspar Simões: “Primitivamente, era minha intenção começar as minhas publicações por três livros, na ordem seguinte: (1) Portugal,  que é um livro pequeno de poemas (tem 41 ao todo), de que o Mar Português  (Contemporanea 4) é a segunda parte (...)”. Seguir-se-iam o “Livro do Desassossego”,  os   “Poemas  Completos”  de  Alberto  Caeiro  e,  mais  tarde,  o “Cancioneiro” e a série das  “Ficções do Interlúdio” (com a poesia dos heterónimos). Mais adiante, Pessoa resume: “A  intenção, possivelmente provisória, em que estou agora é de publicar, sendo possível este ano, ou na passagem dele para o outro, o Portugal  e  o  Cancioneiro.  O  primeiro  está   quase  pronto  e  é  livro  que  tem possibilidades de êxito que nenhum dos outros tem. O  segundo está pronto: basta escolher e colocar”.3

Tais  como  a  informações  a  Casais  Monteiro,  estas  constituíam  a  “verdade”  do momento em que Pessoa escrevia. O livro “Portugal” - a futura Mensagem - não estava  “quase pronto” em 1932. Só o viria a estar em 1934, quando, com vista à iminente publicação para efeitos do concurso do S.P.N., Pessoa escreveu os últimos dez poemas que integrou na versão final, contendo, não os 41 poemas previstos em 1932,  mas  os  44  que  constituem  a  obra  entregue  na  tipografia.  Quanto  ao “Cancioneiro”,  estava,  em  1932,  muito  longe  de  acabado  (ou  até  mesmo  de começado). Em carta a Casais Monteiro datada de 20 de Janeiro de 1935 – dois anos e meio passados sobre as informações dadas a Gaspar Simões – Pessoa informa que está  em  vias  de  publicar  “o  livro  grande  em  que  congregue  a  vasta  expressão autónima de Fernando  Pessoa. Salvo qualquer complicação imprevista, deverei ter esse livro feito e impresso em Outubro deste ano”.4

Voltemos à carta de “explicações” sobre a Mensagem, dirigida por Pessoa a Casais Monteiro.  Escreve  Pessoa:  “Como  [o  livro]  estava  pronto,  incitaram-me  a  que  o publicasse”. “Incitaram-me” – quem?

Para mim, não oferece dúvidas que a publicação da Mensagem e a sua apresentação ao concurso foram o resultado de uma conspiração de, pelo menos, quatro amigos de Pessoa:  Augusto Ferreira Gomes, Augusto Cunha, Almada Negreiros e o próprio António Ferro.

O Director do S.P.N., antigo companheiro de Pessoa dos tempos do Orpheu, tinha todo o interesse político em reconhecer oficialmente o talento de Pessoa tornando-o, pelo menos na aparência, um escritor não desafecto à “Situação”. Sabe-se hoje que esse seu interesse em ver Pessoa concorrer e ganhar o Prémio Antero de Quental, o levou ao ponto de adiantar, do “saco azul” do Secretariado, o dinheiro necessário para a composição e impressão da Mensagem, como há anos me revelou o pintor Paulo Ferreira, à época jovem colaborador do S.P.N.

Assegurada  a  cumplicidade  activa  de  António  Ferro,  os  outros  conspiradores montaram um “lobby” destinado a influenciar o júri em favor da Mensagem.

Como o júri veio a reconhecer na decisão final, Pessoa era um escritor “isolado voluntariamente do grande público”; e António Ferro, no seu discurso na cerimónia final de  entrega dos prémios, sublinhou que o concurso atingira os seus objectivos, revelando  autores  como Vasco Reis ou “roubando-os ao seu isolamento, como no caso de Fernando Pessoa”.

Para quebrar um pouco desse isolamento, chamando a atenção do público (e do júri) para o Poeta, o “lobby” entrou em acção.

A primeira iniciativa,  em  16  de  Junho  de  1933,  foi  a  publicação, promovida por Augusto Ferreira Gomes, dos doze poemas de “Mar Português” no jornal A Revolução. Este  jornal  era   o   órgão  do  Nacional-Sindicalismo  –  o  movimento  nazi-fascista português, chefiado  por  Rolão  Preto,  que  pouco  mais  tarde  Salazar  haveria  de desmantelar e banir.5

Na nota de apresentação, Ferreira Gomes sugere ao Ministério da Educação Nacional que  recomende a  leitura  de  “Mar  Português” nas  escolas,  por  ser  “um  texto  de incontestável  superioridade,  de  incontestável  elevação  espiritual,  de  incontestável patriotismo e de incontestável utilidade nacional”.6

A segunda intervenção do “lobby” deu-se no mês seguinte:  a publicação antecipada de  poemas da Mensagem - “O Infante D.Henrique”, “D. João o Segundo” e uma primeira versão de “Afonso de Albuquerque7  na revista O Mundo Português, editada pela Agência  Geral das Colónias e pelo Secretariado da Propaganda Nacional. O director, Augusto Cunha, além de amigo pessoal e companheiro literário de Fernando Pessoa, era cunhado de António Ferro.

A publicação dos três poemas numa revista  oficial, em que, no mesmo número, colaboravam personalidades como Teófilo Duarte, Marcelo Caetano, Alberto Osório de Castro,  Diogo de Macedo e Henrique Galvão (este retratado por Eduardo Malta), tornava o seu autor “politicamente correcto”.

O terceiro momento do “lobby” ocorreu em 14 de Dezembro seguinte: a publicação de uma página inteira do Suplemento Literário do Diário de Lisboa dedicada a Pessoa e à Mensagem.  O livro já tinha sido posto à venda e estava-se a quinze dias  da decisão do júri.

Na primeira coluna, o jornal publica uma entrevista com Fernando Pessoa, conduzida por  Artur  Portela. É sintomática a presença, citada no texto, de Augusto Ferreira Gomes, autor da fotografia do Poeta que ilustra a entrevista.

Ao lado desta, são publicados, a três colunas, os poemas “O Infante”, “O Mostrengo” e “Prece”,   da  Mensagem,  acompanhados  de  três  desenhos  inéditos  de  Almada Negreiros.    (Note-se  a  preocupação  em  não  repetir  os  poemas  anteriormente revelados na revista O Mundo Português). É evidente que as ilustrações de Almada foram expressamente encomendadas para o efeito,  sendo uma paráfrase plástica dos poemas.

Na entrevista, Pessoa faz diversas revelações sobre a obra,  salientando  “é um livro nacionalista e, portanto, na tradição cristã representada primeiro pela busca do Santo Graal, e  depois pela esperança do Encoberto”, tendo como objectivo “Projectar no momento  presente  uma coisa que vem através de Portugal, desde os romances de cavalaria. Quis  marcar o destino imperial de Portugal, esse império que perpassou através de D.Sebastião, e que continua ‘há-de ser’”.

Dir-se-ia que, com estas palavras, Pessoa prevenia desde logo que o nacionalismo da obra –  característica exigida pelo regulamento do S.P.N. – ir muito além do cânone oficial do  Estado  Novo, para cujos próceres o “destino imperial de Portugal” era já então – e não haveria de ser num futuro indeterminado - uma realidade.

De resto, nas explicações dadas a Casais Monteiro na citada carta de 13 de Janeiro, Pessoa esclarece que convinha que aparecesse e “aparecesse agora” a sua faceta de “nacionalismo místico”, embora “de certo modo secundária” na sua personalidade. E precisa, cripticamente:  “Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do  subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto”.

É significativo o facto de as intervenções do “lobby” chefiado por Augusto Ferreira Gomes terem ocorrido em dois órgãos de informação ligados à “Situação” (O Mundo Português e A Revolução) e um conotado com a “Oposição” ou, como então se dizia, o “Reviralho” (o Diário de Lisboa), ficando assim cobertas as duas principais facções político-jornalísticas do tempo.

Assim, encorajado e ajudado pelos amigos, que lhe garantiam que a Mensagem seria premiada, esperançado em ver, finalmente, uma parte da sua obra apresentada ao público  leitor em geral de   forma autónoma - e não, como até então, dispersa nas páginas de jornais e revistas - Fernando Pessoa tomou, pela primeira vez, a decisão de terminar e publicar um livro.

Mencione-se, ainda, a circunstância de não ser  “pecado intelectual de maior” (como ele próprio disse)  reconhecer o jeito que lhe faria receber os 5.000 escudos do prémio – quantia muito apreciável para a época. Afinal, ao contrário do que dizia, Pessoa era capaz de “premeditação prática”...

Há, finalmente, uma terceira  hipótese (reconheço desde já  que não-provada) em defesa   da  “teoria  da  conspiração”.  Em  determinada  altura,  que  não  consegui determinar, o S.P.N. alterou a data limite da publicação, para efeito de admissão das obras ao concurso, alargando-a de 1 de Julho para 31 de Outubro de 1934.

Ora a Mensagem, ainda não estava pronta em 1 de Julho de 1934. Como Pessoa contou a  Casais Monteiro na citada carta de 13 de Janeiro de 1935, “O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim  de  Outubro”. O volume foi composto e impresso, segundo o colofon, durante o mês de Outubro. Se for possível provar que a alteração regulamentar de datas foi feita antes de Setembro de 1934, então ela tê-lo-á sido em benefício de Pessoa.

Em 31 de Dezembro, os jornais incluindo o Diário de Lisboa, noticiavam a atribuição dos Prémios. O prémio Eça de Queiroz (Romance, no valor de 10.000 escudos), não foi atribuído,  pois o respectivo júri “embora reconhecendo notáveis qualidades em algumas das obras que lhe foram submetidas”, deliberou, por maioria, não o conceder, “visto em nenhuma delas ter encontrado todos os requisitos exigidos pelas bases do concurso e pelas altas exigências  e finalidades a que deveria corresponder a sua escolha”. A não-atribuição deste prémio teve importância para o resto da história. O prémio Alexandre Herculano (História, no valor  de 6.000 escudos), foi atribuído a Caetano  Beirão da  Veiga, pelo  seu  livro  “D.Maria I”.  O  prémio Ramalho Ortigão (Ensaio, no valor de 4.000 escudos), foi atribuído a João Ameal, pelo seu ensaio “No limiar  da  Idade  Nova”.  O  prémio  António  Enes  (Jornalismo,  no  valor  de 2.000 escudos), foi atribuído a Augusto da Costa pelo seu livro de entrevistas “Portugal, Vasto Império”. O júri sugeriu que, na categoria “Jornalismo” fosse atribuído um prémio extraordinário ao livro de Fernando de Pamplona “Os Voronoffs da Democracia”.

O júri do Prémio Antero de Quental, presidido, como todos os outros, por António Ferro,  era  constituído  por  Alberto  Osório  de  Castro  (o  “poeta  de  grande  nome nacional”, então com 66 anos)  Mário Beirão (o “poeta da nova geração”, dois anos mais novo do que Pessoa e seu amigo pessoal)8  , e Acácio de Paiva, e Teresa Leitão de Barros (os dois “críticos literários em exercício”, o primeiro decano do júri com 71 anos de idade, a segunda, a mais jovem, com 36 anos).

O Diário de Lisboa, tal como o Diário de Notícias do dia seguinte, transcreve excertos da acta do júri: “Prémio Antero de Quental (Poesia) - 5.000 escudos. (...) Premiado: em primeira categoria, e por maioria, o livro de Vasco Reis, Romaria (..). Um prémio de segunda categoria, destinado a um Poema ou poesia solta, deu-se, por maioria, ao livro de Fernando Pessoa, Mensagem (...).

É forçoso reconhecer que a redacção da acta não é feliz: salientando o prémio da primeira  categoria (5.000  escudos  para  a  obra  de  Vasco  Reis),  refere  o  prémio atribuído a Pessoa como “um prémio de segunda categoria” – em vez de dizer, nos termos  regulamentares, “o prémio  da segunda categoria, destinado a “Poema ou poesia solta”.

A confusão pioneira de João Gaspar Simões talvez tenha começado aqui e é muito provável  que tenha também contribuído para o comentário sarcástico da escritora Alice Ogando na sua recensão crítica da Mensagem, desde logo publicada no jornal O Diabo em 27 de Janeiro de 1935: “Esta obra obteve um segundo prémio no concurso da Propaganda. Apre! Muito bom deve ser o primeiro premiado para uma obra como esta poder ficar em segundo lugar!”.

O facto é que o júri considerou o (mau) livro de Vasco Reis uma “obra de genuíno lirismo  português, que revela uma alta sensibilidade de artista e que tem um sabor marcadamente   cristão  e  popular”.  Alberto  Osório  de  Castro  fez  mesmo  uma declaração de voto,  afirmando que, ao ler “A Romaria” tivera a sensação que lhe produziria a aparição de um Cesário Verde ou de um António Nobre...

Quanto ao  livro  de  Fernando  Pessoa,  a  acta  reza  que  era  “um  alto  poema  de evocação e interpretação histórica, que tem sido merecidamente elogiado pela critica”, acrescentando que o seu autor “é uma figura de marcado prestigio e relevo nos meios intelectuais   de   Lisboa,  e   uma   das   personalidades  mais   originais  das  letras portuguesas”.

Gaspar Simões escreve no seu livro que, se a Mensagem não ganhou, houve, no entanto “membros do júri que lhe deram o seu voto”. Aqui não se engana, pois, como consta da acta, as decisões do júri do Prémio Antero de Quental foram efectivamente tomadas “por maioria”.

Ora o júri era constituído por quatro elementos, sob a presidência do Director do S.P.N.; se, como consta da acta, este último, “não teve de intervir em nenhuma das resoluções tomadas”, verifica-se que a única maioria possível num conjunto de quatro votos é a de três a favor e um contra. Assim, três membros do júri terão atribuído à Mensagem o prémio da  categoria, contra o voto negativo do quarto membro. Quem teria considerado que o livro de Pessoa não era merecedor do prémio?

Na categoria “livro de versos”, o regulamento impunha que as obras tivessem     mais de cem páginas. Ora o que acontece com a primeira edição da Mensagem ?

A última página numerada do volume é a página 102, seguindo-se-lhe duas páginas não  numeradas. Pode assim dizer-se que, tecnicamente, a brochura apresenta 104 páginas. Por que razão o júri decidiu que tinha menos de cem páginas?

A única explicação é a de que algum ou alguns membros do júri, com minucioso (e suspeito) zelo regulamentar, se deu ao trabalho de analisar tipograficamente o volume, página a  página. Teriam então verificado que o compositor    havia literalmente (e habilmente)  “esticado” o miolo do livro, com o seguinte resultado prático: do total de 104 páginas, 27 estão em branco. Das restantes 77 páginas, 55 contêm os textos dos poemas;  nas restantes 22 paginas estão impressos: títulos isolados (12 páginas), legendas  latinas,  também  isoladas  (4  páginas),  índice  (4  páginas),  frontispício  e colofon (1 página cada).

Ora bem: esta hábil montagem tipográfica foi obra de Augusto Ferreira Gomes, o mais constante amigo e companheiro de Fernando Pessoa: jornalista, poeta, astrólogo, escritor  esotérico  e  boémio,  que  trabalhava  como  artista  gráfico  no  serviço  de publicações do S.P.N. Foi Ferreira Gomes quem levou o Poeta à Editorial Império onde a Mensagem foi impressa e o apresentou a Armando de Figueiredo,  proprietário e gerente da empresa. Armando Figueiredo contou, anos depois, que  Pessoa ia regularmente à tipografia rever as provas do livro mas  “se os seus afazeres não lhe permitiam aparecer , a revisão era feita pelo seu amigo Augusto Ferreira Gomes, com quem tinha grande intimidade”.9

Acontece, todavia, que se o júri foi mesquinho e meticuloso na contagem das páginas da Mensagem, estranhamente (ou propositadamente) não terá notado que, aplicando o mesmo critério tipográfico-contabilístico, o livro de Vasco  Reis tão-pouco podia ser aceite, por não atingir as 100 páginas regulamentares.

Efectivamente, A Romaria tem 120 páginas, das quais     92    são numeradas. Se descontarmos  3  páginas  com  o  ante-frontispício, a  lista das  obras  do  Autor e  o frontispício, 1 página de dedicatória, 2 páginas contendo a “Carta-Prefácio” de Alfredo Pimenta, 8 páginas com epígrafes ou simples numerais romanos, 1 página de errata e 11 páginas em branco, o número de páginas efectivamente ocupadas pelo texto do poema é de 94 – menos seis do que as regulamentarmente exigidas...

O inacreditável subterfúgio do “número de páginas” utilizado para afastar a Mensagem do  prémio da categoria “livro de versos”, revela, a meu ver, que na fase final do concurso,  Fernando Pessoa terá sido vítima de uma contra-conspiração, agora por parte do júri. Terá sido a influência do muito poderoso Alfredo Pimenta, autor da carta- prefácio publicada em A Romaria, na qual fazia encomiásticos elogios a Vasco Reis? E Alfredo Pimenta era um dos inimigos de estimação de Fernando Pessoa – e vice- versa...

Só  a  leitura  da  acta  completa  do  júri  do  Prémio  Antero  de  Quental  poderá, eventualmente, trazer algumas clarificações para o que se passou. Mas ainda não me foi possível encontrar pistas seguras sobre o paradeiro e a acessibilidade das actas, que talvez ainda se encontrem nos arquivos do antigo S.P.N. Ficará, pois, para uma nova investigação e, de momento, temos de contentar-nos com os extractos que delas foram publicados nos jornais da época.

A inesperada decisão do Júri, relegando o livro de Pessoa para a categoria de “poema ou poesia solta”, foi um balde de água fria para o “lobby” pessoano, que nunca teria imaginado  que a Mensagem falhasse o Prémio Antero de Quental na categoria de “livro de versos”.

Foi assim que António Ferro decidiu, “depois da leitura das actas”, tomar a única decisão possível para minimizar o relativo fiasco  provocado  pelo  júri  “contra- conspirador”.

Na acta final ficou, assim, registado que  “O director do Secretariado da Propaganda Nacional não teve de intervir em nenhuma das resoluções tomadas. Mas decidiu, em vista de não ter sido concedido o prémio do Romance, e de existir, assim, um saldo no orçamento dos  prémios literários  deste ano, corresponder aos desejos do júri do Jornalismo  - estabelecendo um prémio extraordinário de 2.000 escudos para “Os Voronoffs da Democracia”, de Fernando de Pamplona. Decidiu também, atendendo ao alto  sentido nacionalista da obra e ao facto do livro 12ter passado para a segunda categoria apenas por uma simples questão de número de páginas - elevar para 5.000 escudos o prémio atribuído à Mensagem de Fernando Pessoa”.10

Em termos contabilísticos, António Ferro tinha efectivamente à sua disposição um saldo  de  10.000 escudos, proveniente da não-atribuição do Prémio de Romance. Dessa       importância,        retirou, primeiro,         2.000              escudos          para        criar           um        prémio extraordinário e extra-regulamentar na categoria de Jornalismo, conforme sugestão do Júri. E  retirou mais 4.000 escudos para aumentar de 1.000 para 5.000 a segunda categoria do Prémio de Poesia: ao menos pecuniariamente, Pessoa ficou equiparado a Vasco Reis e à sua “Romaria”. Não se tratou, assim, de um prémio especial ou extraordinário, mas sim de um aumento do montante regulamentar do Prémio.

Como contou Luís Pedro Moitinho de Almeida, os 5.000 escudos do prémio permitiram a Pessoa viver alguns tempos de desafogo, sem meter vales à caixa, embora pouco lhe tivesse sobrado depois de pagar as suas dívidas. 11

E, se Fernando Pessoa ficou por ventura melindrado com a decisão do júri, vingou-se, com  luva  branca, do seu “rival” e co-premiado Vasco Reis, publicando no Diário de Lisboa, de 4  de Janeiro de 1935, uma crítica generosamente elogiosa (como eram, normalmente, as que fazia aos livros de amigos e conhecidos).

Como em regra acontecia nos seus escritos de crítica literária, o verdadeiro intuito deste texto era denegrir, uma vez mais, duas das suas bêtes-noires:  a Igreja Católica, em geral, e o catolicismo português, em particular, a que chamou “meiguice religiosa, preguiçosamente  incerta do em que realmente crê”. O Padre Vasco Reis, escreve Pessoa,  “a  quem  Deus   fez  ser  franciscano  para  fins  simbólicos  –  pertence portuguêsmente a este catolicismo  amoroso”. Os louvores à obra seguem depois destas linhas assassinas...12

Assim, ao contrário do que afirmaram João Gaspar Simões e todos que continuaram (e continuam) a repetir a sua errada lição, a Mensagem não recebeu um prémio de consolação: foi, na realidade, um dos dois vencedores do Prémio Antero de Quental.

Por essa razão, pouco tempo depois (em data provável de Fevereiro de 1935), Pessoa escreveu,  a  meu  ver  sem  qualquer  ironia,  que  o  seu  livro  fora  “premiado,  em condições especiais e para mim muito honrosas, pelo Secretariado da Propaganda Nacional”.13

Pondo o dedo na ferida, Adolfo Casais Monteiro comentou em carta para Pessoa datada de 10 de Janeiro de 1935: “Não acho absurdo  – acho pelo contrário normal – que um júri ache A Romaria bom, e a Mensagem mau. Mas que o mesmo que acha bom, digno dum 1º. Prémio, o livro de Vasco Reis, ache também bom o seu – isso é que me deixa siderado! E por isso, felicito-o pelos tantos mil escudos, pois que o resto não  lhe  dá  uma  consagração  que  já  tem  há  muito  tempo,  ainda  que  para  um demasiadamente restrito público”.14

Por não ser muito conhecido, tem interesse contar o que posteriormente se passou com duas personagens fulcrais desta história: João Gaspar Simões e o Padre Vasco Reis.

Gaspar Simões, que concorrera ao Prémio Eça de Queiroz com o  seu romance Amores  Infelizes e não fora premiado, envolveu-se nas páginas da revista Fradique numa azeda polémica com Vasco Reis, descrevendo “A Romaria” como “essa obrinha para costureiras e marçanos”, e o seu autor como “um cândido franciscano tão pobre de talento quanto o fundador da sua ordem era pobre de bens deste mundo”.15

Quanto ao Padre Vasco Reis, anos depois secularizou-se, passando a ser o publicista Reis Ventura. Traumatizado durante toda a sua vida por ser publicamente acusado de ter sido o injusto “vencedor” de Fernando Pessoa declarou em 1973 numa entrevista: “Tem corrido um equívoco a esse respeito, que profundamente me molesta. Não há termo de comparação entre a ‘Mensagem’ e o poema, dos meus 19 anos, chamado ‘A Romaria’ (...) Embora  regulamentarmente figurasse ‘A Romaria’ em 1º. lugar, não pode haver dúvidas nem termos de comparação com a obra magnífica desse génio!16 E em 1985, numa carta dirigida ao director de O Jornal e publicada em 19 de Novembro, reiterou que os seus “versinhos de adolescente nem sequer existem” e que quem ganhou o “primeiro prémio” foi Fernando Pessoa.

José Blanco
in Portal Pessoa, 2006 


1 Albano Nogueira [A.N.], “Uma iniciativa cultural”. Presença, Ano VII, Vol. II, nº. 40, Dezembro de 1935, p. 15.
2 Adolfo Casais Monteiro, A POESIA DE FERNANDO PESSOA. 2ª. ed., Org. de José Blanco. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, pp. 228-229.
3 CARTAS DE FERNANDO PESSOA A JOÃO GASPAR SIMÕES. Prefácio, posfácio e notas do destinatário. 2ª. ed., Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982, pp. 91 e 93.
4 Adolfo Casais Monteiro, op. cit., p. 244
5 Pessoa tinha já publicado em A Revolução (no nº. 74 de 6 de Junho de 1932) um dos poucos textos do “Livro do Desassossego” que revelou em vida.
6 Esta  versão  de  “Mar  Português”  é  a  que  havia  sido  publicada  em  1922,  no  nº.  4  da Contemporanea.
7 A versão publicada na revista (“Passa um gigante pela vasta terra”) foi substituída por uma variante total incluída na versão final da “Mensagem”.
8 Conhecem-se sete cartas de Pessoa a Mário Beirão, altamente elogiosas do seu talento poético.
9 “No XIV aniversário da morte de Fernando Pessoa. Algumas revelações curiosas do seu primeiro impressor Armando de Figueiredo”. Átomo, nº. 23, Lisboa, 30 de Novembro de 1949.
10  Diário de Lisboa, 31 de Dezembro de 1934, p. 16.
11  Luís Pedro Moitinho de Almeida, “Os vales à caixa de Fernando Pessoa”, in FERNANDO PESSOA. NO CINQUENTENÁRIO DA SUA MORTE. Coimbra: Coimbra Editora, 1985, pp. 43-48.
12 OBRAS  EM  PROSA  DE  FERNANDO  PESSOA.  PÁGINAS  SOBRE  LITERATURA   E ESTÉTICA. Org. de António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1986, pp. 190-191.
13    OBRA POÉTICA DE FERNANDO PESSOA. MENSAGEM E OUTROS POEMAS  AFINS. Org. de António Quadros. Lisboa: Europa-América, 1986, p. 171.
14  Adolfo Casais Monteiro, op. cit., pp. 224.
15 João   Gaspar   Simões,   “Fernando   Pessoa   e   o   Prémio   Antero   de   Quental”,   in HETEROPSICOGRAFIA DE FERNANDO PESSOA. Porto: Inova, 1973, pp. 381-398.
16 “Em diálogo com Reis Ventura” (entrevista do Major Manuel Barão da Cunha). Jornal do Exército, nº. 159, Março de 1973, pp. 22-23.

António Ferro: Um Cometa a Sudoeste

António Ferro foi um protagonista incansável do período de afirmação da arte moderna na Península Ibérica. Além de participar nos mais diversos acontecimentos culturais dos "artistas avançados" de Portugal, Espanha e outros países, devem-se ao seu modo de ser, sedutor e dinâmico, não poucas linhas de uma dessas teias de afectos e cumplicidades culturais, por vezes quase secretas, que sempre sustentaram a vida pública das obras de arte.

No próximo ano, por iniciativa do MEIAC (Museo Extremaño y Iberoamericano de Arte Contemporáneo) de Badajoz, vai realizar-se a exposição "Suroeste: Relações Literárias e Artísticas entre Portugal e Espanha (1890 – 1935)". Será inaugurada naquele museu no dia 15 de Janeiro, marcando presença no Círculo de Bellas Artes de Madrid no mês de Março, e poderá ser vista em Lisboa, entre Junho e Agosto, no Museu do Chiado. É uma mostra dedicada a esses "embaixadores desconhecidos", para usar a expressão de Almada Negreiros, que teceram, através do pensamento, da escrita, das artes plásticas ou do cinema, as pontes mais sólidas que uniram os dois países num convívio sem excluídos, tragicamente perturbado pelo eclodir da Guerra Civil espanhola. Nesta exposição tornar-se-á evidente, para muitos, a riqueza do espólio conservado pela Fundação António Quadros com a divulgação de uma pequena mas significativa parte do epistolário espanhol de António Ferro. Estarão em destaque as cartas, brevemente reunidas em volume, que recebeu do seu companheiro privilegiado, o escritor vanguardista Ramón Gómez de la Serna, que durante algum tempo trocou Madrid pelo Estoril. Entre outras colaborações, Ferro prefaciou a edição portuguesa da novela "A Ruiva" de Ramón que, em 1929, retribuiria, escrevendo o prólogo à edição definitiva da "Leviana”.

Luis Manuel Gaspar
Sara Afonso Ferreira

"AO FIM DE MUITOS ANOS"
MUSEU DE ARTE POPULAR


“Este museu que tenho hoje a alegria de inaugurar, sonho que se tornou realidade ao fim de muitos anos (...), é a exemplificação viva, indiscutível de tudo quanto tenho desejado provar com a minha acção, com as minhas palavras.” No dia 15 de Julho de 1948, António Ferro, Director do então Secretariado Nacional de Informação [SNI], inaugurava o Museu de Arte Popular [MAP] com estas palavras. 15 anos depois do nascimento do Estado Novo de António de Oliveira Salazar e da criação do Secretariado da Propaganda Nacional [SPN], o Museu assumia-se como um símbolo vivo do regime e da «Política do Espírito» de António Ferro.

Fazendo da Arte e Cultura Popular um elemento de reafirmação dos ideais nacionalista, quando o SNI inaugura o Museu em 1948 possuía já um vasto trabalho nesse domínio, expresso na realização de exposições, festas, concursos, encenações culturais e espectáculos de música e dança. A reunião do acervo do Museu resultou de um conjunto de iniciativas desenvolvidas ao longo de 13 anos, e do trabalho de recolha de inúmeros colaboradores ligados ao SPN/SNI.

Fortemente conotado pela democracia de Abril com o Estado Novo e depois de declarado encerrado em 2008, 2010 surge como uma nova etapa na vida do museu. Depois de um forte movimento cívico e da projecção de um novo entendimento por parte do Poder político, a sua reabertura surge agendada para o mês de Outubro com um novo projecto museológico. Segundo o IMC, anuncia-se uma leitura actualizada da história e cultura popular da primeira metade do séc. XX português, numa lógica de articulação permanente com a contemporaneidade.

Luís Raposo Pereira
Publicado na Newsletter 11 da Fundação António Quadros
Maio de 2010

 
FERNANDA DE CASTRO E ANTÓNIO FERRO
- A Semana de Arte Moderna de São Paulo
Colaboração com os alunos de Jornalismo da UNISANTA - Universidade Santa Cecília, Santos. Abril de 2012

A recepção em Portugal da Semana de Arte Moderna de São Paulo traz-nos à memória um casal de jornalistas e escritores, e muito mais do que isso, pois, no caso dele, António Ferro, trata-se de um dos raros elementos positivos da política do Estado Novo. Antes de afastado por Salazar, António Ferro desempenhou importantes funções na Cultura, e nessa qualidade promoveu grandes acontecimentos e grandes artistas da modernidade
A arte é tecida de relações, um livro é um retalho desse tecido de diálogos, conhecimentos, leituras, espantos e descobertas da nossa experiência, que constituem o suporte da criação. Por isso não surpreende que este depoimento complete um anel na minha rede de afetos e práticas de exegese modernistas. Esse anel passa pela Guiné-Bissau, nas cercanias da Primeira Grande Guerra, e por Cascais, nos anos 70, para se fechar aí – ou aqui -, na Universidade Santa Cecília, em 2012.
Foi Fernanda de Castro, esposa de António Ferro, quem viveu em Bolama, nessa época capital da Guiné Portuguesa. Da experiência guineense deixou um belo poema, África Raiz, e romances que encantaram a nossa infância e adolescência: Mariazinha em África e Novas aventuras de Mariazinha.
Ora estava eu há dias a pensar, depois de ter metido no correio três cartas de um dos filhos do casal, António Quadros, com destino à Fundação do seu nome, que as minhas ligações intelectuais e artísticas mais fortes se estabelecem com o Modernismo e movimentos conexos. Uma delas, criou-a precisamente António Quadros, quer com a sua presença amistosa, na casa de Cascais, onde tive o gosto de o conhecer pessoalmente, quer com os seus livros, em especial sobre modernistas. A ação desenvolvida em nós por relações destas não se circunscreve à hora de apresentação ou visionamento, nem aos dias de leitura: ela penetra e perdura em nós muito tempo. Assim a Semana de Arte Moderna de São Paulo não se cingiu aos dias 11-18 de Fevereiro de 1922: o seu espírito já vinha da própria vontade de alguns artistas brasileiros, de outras partes do mundo, e durará para além de hoje.
É num ambiente esfuziante de alegria, provocador das mentalidades tacanhas, que o casal é recebido pelos artistas organizadores e participantes do evento, isto ao longo de vários meses, não apenas em São Paulo, mas também no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e outras cidades do Brasil. Uma peça de teatro de António Ferro, Mar Alto, andava pelos palcos brasileiros, acompanhada por conferências do autor e declamação de poemas de Fernanda de Castro. Ocasião excelente para travar novos conhecimentos e permutar experiências, quer do lado português, quer brasileiro. Porém acredito que a principal repercussão no casal de escritores portugueses, e portanto em Portugal, desta longa semana de arte, tenha sido um fruto humaníssimo em carne e osso. Eles tinham casado por procuração, estava António Ferro no Brasil, onde chegara uns três meses depois da Semana de Arte Moderna. Foi sua testemunha um herói futurista, bem integrado na épica urbana da velocidade e do progresso, Gago Coutinho. O Brasil homenageava o audaz piloto que, com Sacadura Cabral, acabava de realizar a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, integrada, como a Semana de Arte Moderna de São Paulo, nas comemorações do I Centenário da Independência do Brasil. Fernanda de Castro partiu então ao encontro do marido, e logo nos primeiros meses de vida conjugal geraram o menino que viria a nascer em Lisboa a 14 de Julho de 1923: António Quadros, seu primeiro filho.
Como se sabe, o grito de Ipiranga nas artes lusas foi soltado, oficialmente, em 1915, com a publicação da revista Orpheu, editada por António Ferro. A Semana de Arte Moderna de São Paulo tem na Orpheu algumas das suas raízes, pois a revista foi concebida como ponte entre os dois países. Daí ter dois diretores, Luís de Montalvor em Portugal e Ronald de Carvalho no Brasil. Com os seus dezoito anos à época, António Ferro foi escolhido para editor por ser menor de idade, e por isso «irresponsável», como eles gostam de reafirmar – óbvia provocação à caduca responsabilidade académica, atacada por Almada Negreiros no Manifesto anti-Dantas. Aliás a atitude provocatória e desafiadora mantinha-se no comportamento social dos artistas da modernidade no Brasil de 1922. Por isso mesmo Fernanda de Castro foi aclamada «Rainha da Semana de Arte Moderna»: por se ter apresentado suja de lama, de meias rotas, vestido escandalosamente encolhido pela chuva até acima do joelho, na sequência de um acidente de automóvel. Feitos acrescidos à missão de declamar poemas em casa de D. Olívia Penteado, senhora riquíssima e chiquérrima, famosa por no seu jardim funcionar o que então se designava por «primeira Academia Livre de São Paulo». Isto conta Fernanda de Castro no primeiro volume das suas Memórias, o que mostra o poder da Academia de D. Olívia Penteado: ao proclamarem Fernanda de Castro «Rainha da Semana de Arte Moderna», os artistas presentes proclamavam ao mesmo tempo que há semanas com muito mais de sete dias. Por algum motivo eles se consideravam os relógios do futuro, e gritavam que era a Hora! - Hora presente, de ação contra as vaias dos defensores da arte convencional.
António Ferro participou na Semana de Arte Moderna de modos variados, pelas relações de amizade que já tinha e criou depois com os artistas brasileiros e por ter colaborado na revista Klaxon, publicada pela Semana de Arte Moderna. No número 3 podemos ler o seu texto Nós, ou, de forma talvez mais acessível, no volume Intervenção Modernista, que colige umas dezenas de trabalhos seus. Nós é qualquer coisa como um sketch para teatro, com duas personagens, «Eu» e a «Multidão».
Outros contributos para a implantação do Modernismo no Brasil resultam das suas conferências, levadas ao Rio de Janeiro, a Belo Horizonte, ao Teatro Municipal de São Paulo e a mais auditórios. A atuação de António Ferro, recebido em especial como autor de Leviana, uma inovadora novela em fragmentos, e sobretudo as suas palavras, traziam a febre e o frenesi do futurismo: «A idade do Jazz-band» teve lugar a 12 de Setembro no Teatro Municipal de São Paulo, com apresentação de Guilherme de Almeida, e no Trianon do Rio de Janeiro, com apresentação de Ronald de Carvalho.
O jazz era a grande descoberta da Europa, e sobretudo de Paris, o que significa, mais uma vez, que a arte é feita de relações, de dádivas e de recepções, pois trata-se do contributo afro-americano para o estabelecimento da modernidade, o que aliás ainda não aconteceu por completo. Os movimentos mais renovadores da arte ainda esbarram com uma mentalidade rural que sobrevive nas populações de todos os países, mais sintonizadas com os paradigmas da representação, o que quer dizer, em termos singelos, que a maior parte das pessoas só é sensível a práticas estéticas realistas e românticas. No Brasil, invoca-se o parnasianismo como principal baluarte da arte académica, em guerra contra os modernos.
Os artistas da Semana de Arte Moderna (tal como os de hoje) foram por isso aplaudidos e zurrados, convidados a internarem-se nos hospícios para doidos, e António Ferro não escapou aos varapaus. Era muito jovem ainda, muito empolgado, muito provocador, não só nas palavras como na encenação das conferências: «A idade do jazz-band», por exemplo, era interrompida aqui e ali por trechos de jazz e terminou, como o conferencista solicitava em remate de texto, com um solo de tambor. «A arte de bem morrer», quando foi proferida em São Paulo, em Dezembro de 1922, teve apresentação de Menotti del Picchia.
As melhores recordações que Fernanda de Castro guarda das várias visitas ao Brasil são as relativas à «semana revolucionária», como ela mesma escreve. Foi pintada pelos pintores modernistas do Brasil, criou no Brasil novas amizades, foi no Brasil que passou a lua de mel, acontecimentos realmente inesquecíveis, de que fala nas Cartas para além do tempo e sobretudo nos livros de Memórias. É através dela que apresento o documento oficial de recepção em Portugal da Semana de Arte Moderna de São Paulo, redigido por António Ferro. Delego por isso em Fernanda de Castro o epílogo deste depoimento.
Eis o que o António escreveu a propósito desta memorável semana:
«Graça Aranha, na Tribuna do Teatro Municipal, proclamava a independência da Literatura Brasileira, os direitos do Escritor. Iniciava-se a semana da Arte Moderna de São Paulo, semana Revolucionária, à qual se seguiu uma verdadeira época de terror, no mundo das ideias feitas; Mário de Andrade vestiu-se de Arlequim na sua Pauliceia Desvairada. Oswald de Andrade, papão de burgueses, manifestava os primeiros apetites da sua antropofagia. Menotti tinha acabado de pintar, de modelar, de orquestrar o seu Juca Mulato. Cassiano Ricardo sonhava já com o seu Martim Cerêrê. Joca Tatu acabava de nascer, de ser dado à luz no Urupés, de Monteiro Lobato. E até a Poesia do meu querido Guilherme de Almeida, admirável retrato lírico do Brasil, se encontrava em rebelião contra si própria, desencaminhada, tresnoitada virando boémia [...j.»
«Foi neste acampamento revolucionário, neste Far-West de imagens que desembarquei certo dia, atraído por esse empolgante barulho, por essas pistolas, esses bacamartes que disparavam estrelas! Com um Jazz-Band inteiro na malinha de mão, com o meu escandaloso Mar Alto, menos peça de teatro do que peça de artilharia, fui logo festivamente recebido pelos meus camaradas de São Paulo, pelos cow-boys do planalto, tanto mais que vinha colaborar alegremente na sua algazarra, na sua gritaria, aumentar a confusão geral.
«Fazendo ruído, assaltando reputações frágeis que passavam ao nosso alcance, vivi quatro meses com esses bons companheiros, numa camaradagem íntima de todas as horas, numa boémia de espírito que nunca mais esqueço.»
Fernanda de Castro, Ao fim da memória, pp. 184-185

RELEITURAS
Fernanda de Castro, Ao fim da memória. Memórias (1906-1939). Portugal, Editorial Verbo, 1986.
Fernanda de Castro, Cartas para além do tempo. Portugal, Europress, 1990.
António Ferro, Obras de António Ferro. I - Intervenção Modernista. Portugal, Editorial Verbo, 1987.
Maria Estela Guedes
A influência dos Ballets Russes na criação do Verde Gaio
Ao longo da primeira década do século XX e num clima recheado de vanguardas artísticas, Paris exibia triunfalmente os seus Ballets Russes, trazendo a dança para o século XX e constituindo-a numa arte autónoma maior.
Em Portugal os Ballets Russes foram recebidos 8 anos depois da sua estreia parisiense e em ambiente adverso:
• I Guerra Mundial e
• O advento de Sidónio Pais, reduziram-lhe seguramente o impacto.
Portugal, que assistira quase indiferente à estadia dos Ballets Russes em Lisboa de 2 de Dezembro de 1917 a 28 de Março de 1918, apenas teve nos modernistas portugueses os seus maiores defensores e entusiastas.
A situação política inesperada provocada pelo golpe sidonista, veio alterar os planos previstos e a apresentação dos Ballets Russes, em Lisboa, em muito foi prejudicada pela circunstância de ter ocorrido em plena revolução.
 
Um alargado conjunto de circunstâncias históricas fez com que a companhia permanecesse uma larga temporada em Lisboa; três meses de quase inactividade, com Diaghilev ausente tentando arranjar espectáculos em Espanha, dentro de uma Europa em plena guerra.
A companhia encontrou na sua primeira e única visita, um amplo acolhimento e entusiasmo da intelectualidade moderna nacional e uma contida recepção do público e da crítica que não souberam ver nem reconhecer a sua proposta de modernidade.
Antecedentes
Quatro antecedentes tornaram possível a criação da primeira companhia de bailado nacional sob uma inspiração dos Ballets Russes:
• Manuel Sousa Pinto,
• Modernistas,
• António Ferro,
• Teatro Revista.
 
a) Manuel Sousa Pinto, talvez o único crítico esclarecido da época, parece ter entendido a importância dos Ballets Russes, escrevendo fluentemente sobre a companhia, sendo o primeiro a gizar uma certa ideia de inspiração nos russos para a criação de uma companhia nacional. Ele publica na revista Atlântida de 15 de Dezembro de 1917 (dois dias após a estreia dos Ballets Russes no Coliseu de Lisboa), a sua apreciação a três ballets (continuando o artigo em Janeiro e Fevereiro 1918), artigo esse ilustrado com desenhos de Almada Negreiros.
Depois, Manuel de Sousa Pinto defende os modelos folclóricos numa espécie de manifesto pela dança portuguesa nas suas Danças e Bailados , livro publicado em 1924, e passo a citar: “A dança portuguesa, bailados portugueses? Porque não? O difícil é lançar a semente. Depois as flores nascem (…) há principalmente uma maneira bem portuguesa de dançar, que muito conviria aprofundar, estilizar, desenvolver” .
b) Pouco depois da partida dos Ballets Russes de Lisboa, já os futuristas portugueses propunham ballets, nomeadamente Almada, o grande animador que se desdobrava entre poeta, pintor, coreógrafo e bailarino. A 11 de Abril de 1918 (15 dias depois da partida dos Ballets Russes de Lisboa) estreia no S. Carlos um espectáculo de ballet que alguns artistas portuguesas conceberam sob o patrocínio de Helena de Castelo Melhor e denominados: Bailado do Encantamento e A Princesa dos Sapatos de Ferro. Ficou a tradição de que durante a estadia forçada dos Ballets Russes em Lisboa, “alguns colaboradores de Diaghilev teriam dado uma ajuda falando-se de que até o próprio Massine (...) teria dado a Almada alguns conselhos sobre as suas coreografias” .
Apesar ainda de mais algumas incursões de Almada Negreiros pela dança, os modernistas portugueses tiveram que esperar vinte anos para que se realizasse todo um cenário propício à criação de uma companhia de bailado.
c) António Ferro, que vira provavelmente os Ballets Russes em Lisboa em 1917 e depois em Paris na década de 20, e que pertencera à primeira geração de modernistas, incluído no grupo de Almada, é o homem de charneira de todo um projecto que se vai efectivar em 1940, chamado Verde Gaio. Este seu projecto foi sendo esboçado ao longo dos anos 20 e 30, nos vários escritos que deixou.
Logo no início dos anos 20, quando Ferro se torna director da revista Ilustração Portuguesa, não esquece a temática e afirma, passo a citar, “A Ilustração Portuguesa procurará mostrar Portugal aos Portugueses, procurará, com o auxílio de todos, estilizar a raça. A linha do bailado português, por exemplo, está por descobrir. Encontrada essa linha, Portugal pode ter a sua companhia de bailados, como os russos, bailados modernos, nas nossas danças populares, nos nossos trajes regionais, nos nossos costumes, temos matéria-prima para estilizações admiráveis, temos tinta de sobra para um grande cartaz a pôr na Europa, a pôr no mundo... Portugal, meu amigo, eu já o disse algures, ou será um “baile russo” – ou não será ”.
d) Ao longo ainda destes anos 20 e 30, o teatro de revista pontuou as suas peças com pequenas marcações de dança e à sombra da imagem deixada pelos Ballets Russes em Lisboa, a hegemonia do teatro musical fez sobressair os primeiros bailarinos nacionais. A dança animou os vários quadros de revistas e daí saíram os primeiros “bailarinos” nacionais. Luísa Santanella, Lubelia Stichini, Francis Graça entre outros, formaram um primeiro grupo que ajudou a delinear uma certa aptidão, ainda que tímida, pela arte de Terpsícore.
É dentro deste contexto, e tendo em conta estes 4 antecedentes (MSP, Modernistas, António Ferro e o Teatro de Revista), que se vai delineando todo um projecto, que se vão criando as condições necessárias para que em 1940, por altura da grande Exposição do Mundo Português, surja a companhia de bailados portugueses Verde Gaio.
 
O Verde Gaio
Assim, com o patrocínio da Comissão dos Centenários e do Secretariado de Propaganda Nacional, António Ferro funda em 1940 o Grupo de Bailados Portugueses Verde Gaio, inspirados nos Ballets Russes e inseridos no espírito do Teatro Novo, em torno do qual a ideia da fusão das artes, à maneira da obra de arte total wagneriana (Gesamtkunstwerk), é proposta. Para que tal acontecesse, António Ferro aglomerou à sua volta um conjunto de artistas que ajudaram a “colorir” os seus “Ballets Russes à portuguesa”: cenógrafos, compositores, figurinistas, escritores e bailarinos, formaram um grupo heterogéneo unido por um ideal comum: criar uma companhia de dança vinculadamente portuguesa.
Na apresentação do Verde Gaio a 8 de Novembro no teatro Trindade, o director do SPN validou o projecto como mais uma concretização da sua “Política do Espírito”. Sob a égide de um compromisso, Ferro, com o aval do Estado Novo, desenhou uma política de proteccionismo cultural investida de uma face dinâmica que se queria moderna. Assim, o Verde Gaio constituía a exaltação de motivos nacionais ainda que - apresentando-se sob uma orientação de cariz folclórico – aspirando anos depois a ballet clássico. Aos Ballets Russes, António Ferro não foi só buscar a ideia de uma companhia nacional que veiculasse um ideal, mas acrescentou-lhe um cunho acentuadamente português que espelhasse o carácter nítido de folclore estilizado, tão caro ao Estado Novo.
No espírito de António Ferro, o Verde Gaio apareceu como a síntese de todo um conjunto de referências (estéticas, ideológicas, culturais e artísticas) que se desejava efectivar e não é de estranhar que o grupo tenha recorrido ao elemento do folclore como modelo coreográfico: o Verde Gaio, foi criado e adaptado ao condicionalismo nacional que preconizava uma estética que fosse entendida por todos, baseando-se assim em temas populares ou de índole histórica.
Dentro desta linha, o director do SPN nas palavras de apresentação ao Verde Gaio em 1940 ressalvava que, e passo a citar,” essa maravilhosa companhia de Diaghilev (…) guardou e enviou para fora da pátria, as imagens, os ritmos, as melodias da Rússia de todos os tempos, da Rússia eterna (…) sobrevivendo e escapando à revolução. Se hoje, na verdade, ainda a podemos evocar (…) é através dessa pátria ambulante dos Bailados Russos” .
Fernanda de Castro (mulher de António Ferro), nas suas memórias relembra esses tempos e a forma como tudo se efectivou: “o António tinha o Verde Gaio. Quantos anos teria andado este sonho bailar na sua cabeça? Talvez, tenho quase a certeza, desde aquele tempo em que vimos pela primeira vez, em Paris, os bailados russos de Diaghilev... É claro que ele sabia perfeitamente que não tínhamos à mão um Nijinski ou uma Pavlova para levar a cabo um empreendimento dessa natureza, mas sabia também que tínhamos um folclore riquíssimo, um dos mais puros da Europa, usos e costumes com raízes profundas, lendas que vinham do fundo dos séculos, e, além disso, todo o material humano necessário: compositores, artistas plásticos, etnógrafos. Não tínhamos, é certo, uma tradição balética, nem escolas de bailado, nem bailarinos, mas também a ideia de António não era pôr de pé uma companhia de bailados clássicos mas de bailados portugueses” .
A falta de comparação, ou seja, de companhias concorrentes, fizeram vida fácil ao Verde Gaio durante os primeiros anos e a política cultural de mera aparência que subsistiu depois da saída de António Ferro, relegou o Verde Gaio para uma actividade ornamental da ópera, numa instrumentalização cultural que havia de se encaminhar noutras direcções e preocupações que não a dança.
No fundo, o Verde Gaio constituiu uma representação simbólica de um Portugal idealizado pelo Estado Novo e gizado por António Ferro mas que mal sobreviveu ao afastamento do seu mentor. A sua reanimação ao longo das décadas seguintes, foi mal sucedida e culminou já nos anos 90 numa iniciativa do Ministério da Cultura quando este o pretendeu reinventar .
Verde Gaio, os “Bailados russos portugueses” induz na ideia de que a companhia de Diaghilev foi criada a partir de uma raiz folclórica o que não é de todo verdade. Apesar dos Ballets Russes incorporarem no seu repertório temáticas folclóricas, o fundamento da companhia encontra-se na escola clássica dos teatros imperiais, que ao longo de séculos tinha vindo a aperfeiçoar a arte balética. Ora em Portugal não existia esta escola clássica: inventou-se então uma, baseada no folclore estilizado que depois, como já referi, aspirou a criações clássicas.
O Verde Gaio ao elevar a dança a uma arte maior constituiu em si um gesto moderno mas raras vezes ultrapassou a sua temática histórico-folclórica; como objecto de propaganda, a companhia educou o espírito (segundo os valores instituídos) e serviu de veículo de prestígio no estrangeiro, projectando a imagem da nação que pretendia valorizar. Por detrás destes dois aspectos está sem dúvida uma certa ascendência e uma notória influência da companhia de Diaghilev; mas por não se saber, não se querer ou não se poder, o Verde Gaio não se efectivou na arte nacional e internacional da maneira que Ferro desejara, e ainda não foi com esta experiência que se estabeleceria uma efectiva companhia nacional.
Maria João Castro
19 de Maio de 2009
 

PROBLEMÁTICA CONCRETA DA CULTURA PORTUGUESA (I)

Prólogo

Fomos, recentemente, à Fundação António Quadros para analisar e apreciar, Ainda que ao de leve, a correspondência e aspectos afins entre António Quadros e algumas figuras insignes da política e da cultura portuguesa, entre elas Oliveira Salazar, Henrique Veiga de Macedo, Álvaro Ribeiro e Orlando Vitorino. A Fundação, na pessoa de Mafalda Ferro, pôde assim facultar-nos testemunhos de ordem histórica susceptíveis de novos elementos para a compreensão psicológica, cultural, artística e filosófica dos diferentes entre os semelhantes. E nisto nada melhor que a referida correspondência que esperemos seja o mais breve possível divulgada ao público interessado na relação objectiva e actuante entre o passado e o porvir da cultura portuguesa.

Conversando com Mafalda Ferro e António Quadros neto, não pudemos deixar de aflorar as relações entre António Ferro e Oliveira Salazar, assim como as relações entre António Quadros e a filosofia portuguesa. Dois mundos diferentes e distintos que figuras como Eduardo Lourenço e seus epígonos propositada e ideologicamente confundem, assim participando ex professo de uma historiografia oficial que é toda ela, como não podia deixar de ser, a história simplesmente contada pelos vencedores da organização revolucionária e marxista que se apoderou de facto, mas não de direito, de Portugal. A Fundação António Quadros pode, entrementes, contribuir, por via da cultura e da filosofia portuguesa, para que assim não seja, disponibilizando testemunhos e elementos valiosíssimos que levem pensadores e investigadores livres e independentes a pensarem e a descobrirem novos e supernos horizontes.

Não por acaso António Quadros neto nos indicara um livro significativo do avô, intitulado Problemática Concreta da Cultura Portuguesa. Datado de 1961, aí se espelha a decisão, não tanto histórica ou, sequer mesmo, passadista, mas filosófica quanto ao património económico, político e essencialmente cultural do povo e do Ultramar português. Daí que, ao contrário do que falsamente aventam as figuras labirínticas da cultura universitária em Portugal, tal decisão não teve por significado uma adesão ao regime de então, pelo facto de significar antes e, sobretudo, a consciência multissecular de uma missão teleológica de Portugal no mundo.

Por conseguinte, António Quadros, ainda que não perfilhando das razões históricas enquanto fundamento único e exclusivo da cultura nacional, compreendia que estava em questão a existência de Portugal enquanto Estado, Nação, Pátria e República. Por outras palavras, já sabia e compreendia, não obstante as contradições do regime em vigor, que o mais importante e vital, que é a autonomia cultural de Portugal, sem a qual não é possível a verdadeira independência política, não implicava a desistência e muito menos o abandono da missão universal e teleológica de Portugal na Europa, na África, na Ásia, na Oceânia e na América Latina.

Na verdade, reconhecemos que não é fácil a lídima percepção dessa missão universal e futurante de Portugal no mundo, até mesmo entre portugueses. E também não nos admiramos que se tenha escrito, por entre vicissitudes que atravessam a filosofia luso-brasileira, que António Quadros tenha sido «o primeiro a empreender a tentativa de instrumentalizar a filosofia», tal como a «Escolástica fez o mesmo a seu modo, atribuindo-lhe [à filosofia] a função de difundir o cristianismo» (cf. António Paim, As Filosofias Nacionais, 3.ª edição revisada e ampliada, 2007, p.148). Neste passo revela-se, pois, incompreensão no preciso sentido em que a filosofia, ao invés de ser instrumento para o que quer que seja, é antes, nos termos apropriados de Leonardo Coimbra, órgão de liberdade relativo ao sentir e à visão de um povo cuja feição atlântica nunca se pautou, nem mesmo para Oliveira Salazar, por simples imposição de factores geográficos ou, se quisermos, meramente territoriais (cf. A Política Imperial e a Crise Europeia, Discurso pronunciado pelo Presidente do Conselho na sessão extraordinária da Assembleia Nacional, de 22 de Maio de 1939, reunida para dar o seu assentimento à viagem do Chefe do Estado [Óscar Carmona], Edições SPN, p. 27).

Todo este processo implica uma intuição dirigida à capacidade distintiva que foge e escapa à maioria das pessoas, ao passo que outros, mais ladinos, se têm aproveitado disso para lançar ardilosamente a confusão preconceituosa e ideológica sobre a filosofia portuguesa, sendo já esse o caso potencial de Eduardo Lourenço em 1946, ao procurar reduzir a mesma a questões menores, tão filosóficas quanto podem ser, diga-se de passagem, «camisas ou água de colónia», ou ainda a «importação de batatas da Dinamarca e automóveis de Detroit» (cf. Vértice, Vol. II, f. 7, 1946, p. 157). Seja como for, a filosofia portuguesa lá seguiu o seu rumo até culminar na concepção da ideia de Pátria enquanto ideia distinta da imagem veiculada pelo território, pelo país ou pela paisagem, ou até mesmo da ideia militar de Pátria, confinada, eventualmente, à guerra e à destruição do inimigo (cf. «Ainda temos Pátria», in Escola Formal, n.º 4, 1977, pp. 11-12). Todavia, tal concepção tanto mais se impôs quanto Portugal deixou de existir historicamente com a revolução comuno-socialista de 74, confinado, em consequência de premeditada traição política e militar, ao território da primitiva nacionalidade.

Hoje, lançado num abismo político-económico, como fora, aliás, previsto desde há muito, Portugal, tendo até aqui vivido de esmola alheia e administrativamente dirigido por potências, organismos e organizações estrangeiras e internacionais, só é Portugal de nome e enquanto ideia. Desse ponto de vista está vivo, embora em termos patrimoniais esteja pura e completamente depauperado e hipotecado por uma oligarquia política que se apoderou dos poderes do Estado ao mesmo tempo que se mantém e reserva para si os privilégios do fisco republicano à custa da existência económica, política e cultural dos Portugueses. Prova disso são as mesmas figuras, sempre as mesmas, a quem se dá, no maior desrespeito pelo povo português, direito de antena nos órgãos radiofónicos e televisivos, como por exemplo os Medina Carreira, os Silva Lopes e toda essa cangalhada de socialistas que hoje vivem a sua reforma choruda apontando o dedo a tudo e a todos menos a eles próprios, como se fossem cidadãos de primeira água e sem culpas num passado bastante próximo.

Além disso, também é verdade que António Quadros, pese embora a sua obra crítica e antevisora do nosso trágico quão dramático destino, não imaginara até que ponto lastímavel e degradante os Portugueses haveriam de chegar. Ainda assim, o Liceu procurará dar ao leitor o conhecimento de algumas passagens da Problemática Concreta da Cultura Portuguesa, numa época em que a esperança era ainda mais viva em virtude, não de um regime largamente situacionista, mas de um Portugal que, para todos os efeitos, e com todos os problemas ora acrescidos, era, apesar de tudo, um Portugal histórica e politicamente existente. Logo, numa linha bastante divergente no que respeita a António Ferro, o autor do livro supracitado deixa, porém, transparecer o respeito quer pela posição assumida pelo pai quer para com Oliveira Salazar, a quem, efectivamente, cita em epígrafe do mesmo livro, a saber: «Estudar com dúvida e realizar com fé».

Entretanto, algo de curioso resulta dessa mesma epígrafe, quanto mais não seja porque também nós sabemos que Álvaro Ribeiro a apreciava enquanto tal, sem que isso, por si só, signifique que o filósofo português solidarizasse a filosofia portuguesa com o salazarismo, coisa que nunca fez e só a perfídia ideológica de um Eduardo Lourenço e outros que tais pode sugerir e academicamente fazer parecer o que não é. Aliás, já que falamos de filosofia portuguesa, o próprio José Marinho não deixava de se referir a Oliveira Salazar como «esse teimoso universitário», qual eco do influxo mental que o filósofo portuense também, em certa medida, recebera da figura altiva e ilustre que fora, sem dúvida, Jaime Cortesão, porquanto, já de si, um forte e contumaz opositor a Salazar, nomeadamente aquando da Guerra Civil Espanhola, chegando mesmo, ao lado de Armando Cortesão, a publicar «na imprensa estrangeira protestos contra a intervenção de Lisboa em favor dos nacionalistas» (cf. Franco Nogueira, Salazar, Livraria Civilização Editora, Vol. III, p. 44). E mais adianta o biógrafo do último monarca perante a respectiva oposição de ordem ideológica e política:

«Mas correm boatos alarmantes: organizada pelo Grupo de Buda, sob o impulso de Moura Pinto, Jaime de Morais e Jaime Cortesão, e com desconhecimento dos exércitos nacionalistas, estava sendo preparada algures em Espanha uma invasão de Portugal; e na fronteira estariam mesmo alguns tanques. Roque de Aguiar escrevia ao chefe do governo, exprimindo as suas preocupações perante a ofensiva comunista; e, de Paris, Virgínia e Castro e Almeida informa Salazar das actividades dos budistas, que seriam coadjuvados pelos serviços secretos britânicos (Efectivamente - anota Franco Nogueira -, a Inteligence inglesa seguia as actividades dos emigrados portugueses em França, para junto dos quais destacara um agente de nome Wilkins; mas não encontrei documento ou indício de que Wilkins, além de colher informações, prestasse ao Grupo de Buda qualquer auxílio contra o governo de Lisboa» – in ob. cit., p. 179).

Dir-se-ia que o permite distinguir, mais fundo e perspicazmente, Oliveira Salazar das insignes figuras da cultura portuguesa foi a singular intuição norteadora da sua acção pragmática que o levou, inclusivamente, a dizer, quando entrevistado por António Ferro, que o professor universitário não é, por natureza, um homem de acção. Ora, uma resposta deste teor de quem fora professor universitário durante uma parte considerável da sua vida poderá parecer uma flagrante contradição, e, no entanto, compreensível se observada à luz das circunstâncias do caminho tomado por quem igualmente se vira no dever de substituir a leitura dos livros pela compreensão dos homens e da vida (Oliveira Salazar, O Meu Depoimento, Edições SNI, 1949, p. 7). E mesmo quando, sabendo o alcance de tudo isso, talvez não o aplicasse tão escrupulosamente na predilecção que manifestava aristocraticamente pelos professores universitários a quem incumbia de constituírem a hierarquia civil do Estado.

Por outro lado, há ainda a questão da “Política do Espírito”, em relação à qual António Quadros tece algumas considerações na Problemática Concreta da Cultura Portuguesa. Como tal, por respeito e reconhecimento pela obra cultural do pai, considera, no entanto, que uma nova fase da cultura nacional, sem desdenho e indiferença para com as vicissitudes pretéritas, se deve traduzir na criação filosófica que caminhe a par da cultura popular espelhada no folclore e na poesia tradicional portuguesa. Nesse sentido, António Quadros reformula, pois, uma restauração da mentalidade lusa segundo directrizes científicas, artísticas e filosóficas que vão, significativamente, além das preocupações de ordem económica, política e cultural do Estado Novo. E embora fale em «centralização cultural», não deve ser esta entendida no sentido de uma planificação centralizadora por parte do Estado, em certos aspectos presentes no regime de então, mas no sentido de uma presença salutar e irradiante do Génio português em todas as actividades, leis e instituições relativas ao carácter fisionómico e espiritual do povo português.

Na sua obra intitulada Prémios Literários, António Ferro define a «Política do Espírito» como fundamental e estruturalmente oposta à política da matéria. Não se trata simplesmente de fomentar o desenvolvimento literário, artístico e científico do povo português, já que, no seguimento de Paul Bourget, em Le Disciple, a questão primacial reside em «estabelecer e organizar o combate contra tudo o que suja o espírito, fazer o necessário para evitar certas pinturas viciosas do vício que prejudicam a beleza, a felicidade da beleza, como certos crimes e taras ofendem a humanidade, a felicidade do homem» Enfim, defender «a Política do Espírito é combater sistematicamente, obra da vida ou obra da arte, tudo o que é feio, grosseiro, bestial, tudo o que é maléfico, doentio, por simples volúpia ou satanismo!» (in Prémios Literários (1934-1947), Edições SNI, 1950, p. 19).

Oliveira Salazar, naturalmente, comungava desta definição, conforme se adianta:

«Quando Bourget pôs em Le Disciple a tese da responsabilidade do escritor pelos efeitos da sua obra na inteligência e na moral dos seus admiradores ou sequazes, parece ter-se operado um movimento de espanto, sobretudo nos que tendiam a formar da literatura e da arte mundos à parte, bastando-se a si próprios, tendo em si mesmos a sua finalidade e razão de ser, e não viam nelas manifestações humanas, integradas na vida e susceptíveis de a embelezar, de a melhorar, de ajudar o homem na conquista dos seus fins superiores. Estes desconheciam as profundas realidades humanas, perderam a rota das grandes certezas morais, criaram o amoralismo e a arte pela arte, como frutos lindos de ver-se mas inaproveitáveis ou nocivos. Na melhor das hipóteses desperdiçou-se o génio, em prejuízo da humanidade.

A tese da responsabilidade pode continuar a discutir-se teoricamente, abstractamente; mas aos homens que sentem sobre os ombros o peso da direcção dos povos ensinou-lhes a História, quando não a observação própria, coincidir a decadência com certas manifestações mórbidas das inteligências e das vontades, com a pretensa emancipação do jugo de regras superiores, impostas ao homem e oriundos da sua natureza e dos seus fins. Para elevar, robustecer, engrandecer as nações, é preciso alimentar na alma colectiva as grandes certezas a contrapor às tendências de dissolução propósitos fortes, nobres exemplos, morigerados.

É impossível, nesta concepção da vida e da sociedade, a indiferença pela formação mental e moral do escritor ou do artista, e pelo carácter da sua obra; é impossível valer socialmente tanto o que edifica como o que destrói, o que educa como o que desmoraliza, os criadores de energias cívica ou morais e os sonhadores nostálgicos do abatimento e da decadência.

As literaturas costuma dizer-se que são o espelho das diferentes épocas; mas se tão fielmente as reflectem, é que ajudaram a criá-las. Neste momento histórico, em que determinados objectivos foram propostos à vontade nacional, não há remédio senão levar às últimas consequências as bases ideológicas sobre as quais se constrói o novo Portugal. Cremos que existe a verdade, a justiça, o belo e o bom; cremos que pelo seu culto os indivíduos e os povos se elevam, enobrecem, dignificam; cremos que ao alto sacerdócio de buscar e transmitir a virtude, é inerente a responsabilidade pelas devastações acumuladas nas almas e até pela inutilidade da obra produzida» (in Prémios Literários, pp. 11-12).

Nisto, poder-se-á objectar, invocando as palavras de José Régio, que há uma tendência para o «sectarismo voluntarioso, o dogmatismo sufocante, o propagandismo brutal, o simplismo sistematizado (…) inculcados aos novos como virtudes indispensáveis e modernas» (cf. Em Torno da Expressão Artística, Editorial Inquérito, p. 9). Talvez assim seja, pese embora seja de distinguir, em termos conceituais e até de oposição ideológica, a «Política do Espírito» da infraliteratura comunista ou, como então se designava, de neo-realista. Aliás, como dizia, para além disso, José Régio, «não faço o mínimo empenho em ser do meu tempo».

Fiquemos então, sem nos alongarmos mais, com algumas passagens da Problemática Concreta da Cultura Portuguesa, desejando, sincera e honestamente, que a Fundação e a Família Quadros enriqueçam a pobre mas providencial cultura portuguesa.
 

Miguel Bruno Duarte
in "Liceu Aristotélico"


 Mensagem e a sua circunstância

O que nós gostamos de comemorar! Ainda se isso correspondesse, no caso de Pessoa, a um esforço para preservar o seu legado, a edições mais correctas...Mas desde que a sua obra reentrou no domínio público, em 2006, assistimos a uma enxurrada de publicações não fiáveis, feitas, em geral, a partir de textos da Ática (a editora dos primeiros livros de Pessoa) que temos obrigação de saber (os que de Pessoa tratam) que são incorrectos e incompletos.
A última novidade é uma Mensagem “clonada” –assim é designada pelo seu editor – obtida a partir do original dactilografado que Pessoa entregou para ser composto. Objecto curioso, sim senhor, certamente um regalo para fetichistas. Mas seria preciso informar os incautos compradores de que se trata de um texto que Pessoa foi modificando: nas provas tipográficas, com numerosos acrescentos e emendas e, depois, num exemplar do livro impresso, adicionando-lhe uma errata, novas correcções e datas para quase todos os poemas. O actual texto circulante da Mensagem é a etapa final desse percurso.
O menino de pais abastados que agora pelo Natal seja contemplado com essa Mensagem
“clonada” aperceber-se-á, quando comparar o texto do seu importante livro com o dos exemplares pelintras dos seus camaradas de escola, que não é o mesmo: diferem alguns versos, palavras e pontuação, e até uma estrofe inteira: a última do poema “D.Tareja”, por exemplo. Como, provavelmente, não é fetichista, ficará decepcionado e, o que é pior, desorientado. Não resisto a acrescentar que fetichismo, sim, devíamos ter em relação aos pertences de Pessoa que deixámos abalar, em recente leilão, para as mãos de quem deu mais – inclusive a mítica arca que vamos passar pela vergonha de saber, um destes dias, nalgum museu do mundo (na melhor das hipóteses!) Que jeito ela faria nessa Casa Pessoa que os visitantes acham tão despovoada da presença do nosso Poeta!
Quanto aos documentos vendidos nesse leilão e aos outros, muito mais numerosos, prontos para ser vendidos em futuros próximos leilões, não seria só por fetichismo que deveriam ser adquiridos pelas entidades responsáveis mas porque são verdadeiros documentos, indispensáveis para ajudar a entrever a esfacelada arquitectura da obra pessoana.
Esperemos que estas comemorações nos tragam novos conhecimentos. Mas não no género da afirmação recentemente feita de que o deslavado livro Lusitânia, do não menos insípido Mário Beirão – que já ninguém precisa de saber quem é – foi imitado por Pessoa, na Mensagem! Seria sinal de ignorância se não fosse, como é, provocatória extravagância. E falta de respeito pelo grande público que não sabe destas coisas: nós, os que sabemos, senhor doutor, não podemos desfrutar assim quem não sabe.
Dirão os que quiserem dizer (fiquem à vontade!) que lá estou eu a embalar a minha criancinha, a defendê-la dos papões. Mas então agora pasmem que eu vou fazer-vos algumas confidências sobre a  Mensagem, como me pediram, em que parece que estou a acusar Pessoa de ter pactuado com o Estado Novo e o Director do seu Secretariado de Propaganda Nacional, António Ferro. Apertem os cintos.
A verdade, verdadinha, é que se não tivesse havido Estado Novo não teria havido Mensagem porque sem o dito Estado não teria havido Secretariado Nacional de Propaganda e, sem ele, não teria existido um António Ferro, amigo de Pessoa desde os tempos do Orpheu, que inventou um prémio para galardoar esse amigo de que ele conhecia a permanente penúria económica e os inúmeros talentos – entre eles o de compor definitivamente um livro de cariz nacionalista (por isso redigiu nesse sentido o regulamento do prémio).
Dir-me-ão que teria havido Mensagem, embora tivesse ficado, como tudo o mais, por publicar. Não, insisto, não teria ficado o livro que temos porque só em 1934, seguramente pressionado pelo amigo Ferro, Pessoa não só lhe deu a estrutura que tem
como também fez, para isso, os poemas necessários: há nove datados desse ano mas estou convicta de que, entre os não datados, se contarão alguns mais deste ano. Até então o livro era sobretudo constituído pelos poemas da série “Mar Português”, publicada em 1922 na revista Contemporânea  mais os que tinha composto na mesma altura que “Interregno”, em 1928, movido pelo mesmo impulso. Os poemas da Terceira Parte, “O Encoberto”, foram em grande parte feitos de propósito para compor o livro: todos os de 1934, nove, e talvez também os de 1933, três (deve haver entre os não datados outros redigidos com o mesmo fim). A índole dos poemas de “Mar Português” é diferente , eufórica, solar, destinada a celebrar os “navegadores e criadores de impérios” de que Pessoa se orgulhava de descender.  A parte acrescentada é crepuscular: cultua um herói vencido, mas de que se anuncia a ressurreição. Pessoa nela se aplica a fazer desejar o Desejado e a tornar presente esse Quinto Império paradisíaco da nossa redenção.
 Fartei-me de ouvir dizer na minha juventude que Pessoa tinha sido –hélas! – salazarista, bastava ler Interregno, um folheto em defesa da Ditadura militar instaurada a seguir ao golpe de 28 de Maio de 1926. Quando o li com olhos de perceber entendi que esse folheto não provava nada disso e que, aliás, não era escrito pelo Fernando António Nogueira Pessoa mas pela “personagem literária” autora da Mensagem, do poema ao “Presidente-Rei Sidónio Pais” e de outros poemas com o mesmo cariz épico
( cujo sujeito não é um eu, dramático ou lírico, mas um nós). O estilo profético do folheto era aquele com que, em 1912, Pessoa anunciara o “supra-Camões” nas páginas da Águia ou aquele em que, imitando o canto de um cego bandarrista, anunciava, depois da morte de Sidónio, “um dia o Sidónio torna”. Convém não esquecer que o último verso da Mensagem, “É a hora!”, foi escrito em 10-12-1928. Assim como em 1918 acreditara e, sobretudo, queria que acreditassem que Sidónio seria, simbolicamente, um D.Sebastião regressado, o autor épico que  habitava Pessoa quis estremunhar o seu Portugal , adormecido desde Camões, fazê-lo ressuscitar para uma outra “República Nova”, já que a de Sidónio não tinha vingado.  Significativo que em 1928 tenha escrito onze poemas de Mensagem,  ( atendendo aos datados)  número não atingido em mais nenhum outro ano: escreveu nove em 1934, três em 1933, um em 1930, um em 1929, outro em 1922, dois em 1918 e um em 1913.
Recordemos que a maioria dos portugueses recebeu o golpe militar de 28 de Maio de 1926 com alívio e esperança. Inicialmente, Pessoa nada tinha contra Salazar – que se lhe afigurava um homem íntegro e de cultura. E o que Pessoa  verdadeiramente queria era mobilizar os portugueses para uma vida cultural intensa, que equivalesse, em grandeza e projecção,  à das Descobertas.
É possível que o criador de ficções sebastianistas que o habitava tivesse achado profética a coincidência entre o S inicial de Sebastião, de Sidónio e de Salazar...Mas também nunca devemos esquecer as afirmações de Fernando Pessoa segundo as quais o seu sebastianismo era pura “propaganda” (termo seu), pura “estratégia”.  Como para o seu venerado Mestre António Vieira, o que contava era despertar nas gentes o desejo mobilizador do Desejado – o desejo era mais importante que o Desejado...   Ao dar-nos conta do seu afã a escrever uma gramática para aperfeiçoar a nossa língua, que seria a do tal Quinto Império – outro mito que tentava alimentar – concluía que se esse Império não acontecesse sempre ficávamos escrevendo melhor...

Em 1914 Pessoa prefaciara um livro de quadras populares do jovem António Ferrro, Missal de Trovas, em que dizia: “Quem faz quadras populares comunga a alma do povo”. Curiosamente é também em 1934 que Pessoa compõe quase todas as quadras que hoje lhe conhecemos. Teria Ferro, tão empenhado na cultura de índole popular, incentivado o amigo a retomar um projecto dos primeiros tempos: um livro de quadras com o título de Cantares? Mas em Fevereiro de 1935 algo acontece que fará de Pessoa um feroz detractor do Estado Novo e de Salazar: um projecto-lei para proibir as associações secretas , visando sobretudo a Maçonaria, contra o qual Pessoa se insurge violentamente na imprensa e a sessão de distribuição dos prémios do Secretariado de Propaganda Nacional em que Salazar discursa sobre a necessidade de impor aos intelectuais portugueses certas “directrizes”.Nos meses que lhe restaram de vida, nove, Pessoa vai aplicar-se a denunciar o Estado Novo e Salazar , um “seminarista da contabilidade”, “aldeão letrado”, “tiraninho” que nem vinho bebia..., como escreveu, em prosa e em verso. Redigiu uma longa carta ao Presidente da República a pedir o afastamento do Presidente do Conselho por incompetência para o cargo (apontava as razões) e outros textos , até em francês, para denunciar o ditador além-fronteiras. Estou certa de que se Pessoa tivesse durado mais, Salazar teria durado menos,
 Teresa Rita Lopes


O Estado Novo, a Etnografia Portuguesa e o Museu de Arte Popular


I - OS CONTEXTOS DO MAP
Começo esta comunicação por relembrar uma ideia que esteve sempre presente nas discussões que antecederam a recente reabertura do Museu de Arte Popular: a ideia de que este museu deve parte da sua relevância actual ao facto de ser um museu datado, produto dos valores, ideias e políticas de um determinado tempo. Como já escreveu João Leal a esse propósito, podemos dizer que “por uma mistura ironicamente feliz de incúria e de inércia, [o MAP] sobreviveu ao seu tempo e é hoje um testemunho (…) de um estado de espírito que, quer se goste quer não, participou na formatação do gosto moderno pelo popular” (Leal 2009: 474)
O facto de o MAP testemunhar um conjunto de ideias próprias de uma época pretérita, e de essa ser uma marca indelével da sua configuração e identidades actuais, condena-o, a meu ver, a pensar-se a si próprio e à sua história. Sendo assim, é importante começar por relembrar alguns momentos de um caminho que foi sendo feito por vários investigadores ao longo das últimas décadas e que permitiu ir conhecendo diferentes facetas desse percurso. Este caminho começou a ser trilhado pela História de Arte, campo em que se destacam os contributos de José-Augusto França (1980, 1991a e 1991b) e, mais recentemente, os de Margarida Acciaiuoli (1998) ou de Rui Afonso Santos (1995). Na área da historiografia propriamente dita, há também a referir um conjunto de autores que se debruçaram sobre a política do espírito, e cuja investigação é de consulta obrigatória: falo em particular de Jorge Ramos do Ó (1999), de Heloísa Paulo (1994) e de Daniel Melo (1997).
Eu diria que é, todavia, no âmbito da Antropologia portuguesa que podemos encontrar as análises mais aprofundadas acerca daquela que foi a principal motivação por detrás do aparecimento do Museu de Arte Popular, ou seja, a construção de uma determinada ideia de nação a partir da apropriação altamente selectiva dos elementos da cultura popular portuguesa das primeiras décadas do século XX; nessa medida, e para continuar a pensar a história do museu, tem de se ter em conta o contributo decisivo de alguns antropólogos: o de Joaquim Pais de Brito que, logo em 1982, publica um texto sobre o Concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal; sobre este mesma iniciativa Pedro Félix viria a escrever um artigo de relevo publicado em Vozes de Povo. A Folclorização em Portugal (2003), obra que integra outros ensaios importantes para perceber as políticas folcloristas promovidas pelo Estado Novo e pelo SNI em particular.
Destaco, ainda, os trabalhos de João de Pina-Cabral (1991), Jorge Freitas Branco (1995 e 1999) e João Leal (2000 e 2002) em torno da história da Antropologia em Portugal, imprescindíveis para uma análise contextualizada das aproximações estado-novistas à cultura popular. É, aliás, através do trabalho de João Leal, que se percebe a importância da etnografia, e em particular da etnografia que se desenvolveu durante a I República, na construção de uma certa ideia da cultura demótica portuguesa centrada quase em absoluto naquilo que se passou então a designar como “arte popular” e que está na base de todo o programa de celebração do povo português desenvolvido pelo SPN.
Por fim, menciono o meu próprio trabalho, que deu origem a uma tese de doutoramento intitulada Camponeses Estetas no Estado Novo. Arte Popular e Nação na Política Folclorista do Secretariado da Propaganda Nacional (no prelo), e onde identifico um conjunto de factores que explicam a política folclorista promovida por António Ferro, assim como o próprio aparecimento do Museu de Arte Popular. Retomo agora algumas conclusões da minha dissertação de modo a chamar a atenção para aquilo que podem ser os quadros de interrogação a ter em conta no aprofundamento da história do museu.
Na celebração que faz do Portugal rural, pacífico e harmonioso, o MAP vai desde logo ao encontro de elementos-chave da matriz ideológica do regime de Salazar. No entanto, o Estado Novo e o seu quadro de valores não é um factor que só por si explique a campanha etnográfica promovida pelo SPN. Tal campanha apresenta, aliás, características próprias face a projectos folcloristas desenvolvidos por outras figuras do regime, nomeadamente por Henrique Galvão -- em concorrência com Ferro pelo domínio da política oficial de folclorização até 1940 (cf. Alves [no prelo]).
Assim, ao mesmo tempo que há que tomar em consideração a eficácia política do MAP no contexto da ideologia salazarista, é necessário, também, promover um outro exercício com duas vertentes: por um lado, olhar para fora das fronteiras nacionais e analisar o que estava acontecer no campo das práticas etnográficas da primeira metade do século XX noutras partes do mundo e em particular na Europa (e não apenas na Europa das ditaduras, mas também em países como a Inglaterra ou a França); por outro lado, recuar a períodos anteriores à própria emergência do regime, para perceber de que modo é que as práticas e os discursos etnográficos que estão em plena manifestação durante o Estado Novo, se relacionam com quadros de representações que nascem e se desenvolvem anteriormente ao 28 de Maio de 1926.
Entre os temas que interessa examinar está, desde logo, o percurso e o pensamento de António Ferro desde finais dos anos 10. No desenho da sua campanha de promoção da arte popular portuguesa, Ferro inspirou-se claramente em manifestações de índole modernista que acompanhou de perto: nos Ballets Russes, por exemplo, que actuaram em Lisboa em 1917 e que como se sabe trabalharam abundantemente a partir de fontes etnográficas;1 nas ideias dos modernistas brasileiros que, como Oswald de Andrade ou Mário de Andrade, defenderam nos anos 20 a conjugação da estética de vanguarda com a procura das raízes da cultura nacional;2 ou ainda no trabalho dos muralistas mexicanos, cujos trabalhos Ferro pôde apreciar no pavilhão que o México ergueu na Exposição Internacional do Rio de Janeiro de 1922 (cf. Alves 2010).
1 Sobre as fontes etnográficas dos Ballets Russes ver Misler 2009.
2 Canclini (1997 (1989)) é um dos vários autores que presta especial atenção a esta faceta do movimento modernista brasileiro.
E todas estas influências serão basilares numa política folclorista que utilizará a celebração da arte popular como meio de afirmação de Portugal enquanto comunidade supostamente marcada por uma cultura única e exclusiva, mas também enquanto nação que se quer afirmar no presente.
O percurso de Ferro é entretanto, testemunho de um fenómeno mais abrangente: o panorama da grande vulgarização dos usos identitários da arte popular na Europa, e no continente americano da primeira metade de Novecentos, contexto sem o qual não se pode explicar correctamente os traços da intervenção folclorista do SPN. Como já expliquei noutras ocasiões (Alves 2008 e 2010; Almeida e Alves 2009), o projecto de fazer da arte rústica um emblema de afirmação nacional não foi de facto moldado apenas em função das dinâmicas internas de Portugal. Inspirou-se também num modelo de construção da nação que circulou entre as elites e os intelectuais dos mais diversos países até à segunda guerra mundial. E a confirmar a importância do contexto internacional enquanto factor determinante para a concepção da campanha etnográfica do SPN está a enorme importância que António Ferro conferiu ao envio de exposições de arte popular ao estrangeiro – a Genebra em 1935, a Paris em 1937, a Nova Iorque e a São Francisco em 1939 e a Espanha, em 1943 e 1944.


II – A ETNOGRAFIA
Estes dois vectores de análise foram durante muito tempo ignorados. Isto devido ao pressuposto de que o Museu de Arte Popular e toda a política de celebração da cultura demótica que o antecedeu não eram senão um epifenómeno da ideologia ruralista do regime. E foi também este o pressuposto que levou a que, até há poucos anos, se falasse abundantemente de uma etnografia do regime ou de etnografia do Estado Novo sem a submeter a qualquer tipo de análise; nas aproximações a tal etnografia, os investigadores apenas procuravam a ilustração dos traços básicos dos valores do regime, acabando por apresentá-la como dispositivo de formatação ideológica que o Salazarismo teria criado à sua imagem. Como resultado de tal postura metodológica, durante muito tempo não se analisou as representações etnográficas associadas ao SPN em si mesmas, nem se tentou percebê-las, como diriam os antropólogos, nos seus próprios termos.
Os próprios antropólogos protelaram durante algum tempo a análise dos estudos etnográficos desenvolvidos entre o princípio do século XX e os anos 40, abrindo como que um parêntesis para esse período; como se o mesmo – e apesar de todas as lacunas de cariz científico que o caracterizam -- não fizesse parte do percurso da Antropologia em Portugal. Classificando amiúde os agentes dessa etnografia como amadores ou curiosos, a antropologia contemporânea foi incapaz de captar o modo como vários desses etnógrafos se olhavam a si próprios, projectando neles e na sua prática as categorias e os cânones da ciência actual, e não contribuindo em nada para conhecer as suas representações.
Consideremos, por exemplo, Luís Chaves. Chaves foi o etnógrafo que mais colaborou com o SPN. Organizou várias exposições e edições de teor folclorista no âmbito da acção do Secretariado e foi o autor da maior parte das brochuras sobre arte popular editadas pelo mesmo organismo. Luís Chaves é, ao mesmo tempo, um dos etnógrafos que mais vezes surge associado a essa ideia de uma etnografia feita por diletantes e curiosos: mas em 1935, no mesmo ano em que organiza o catálogo da exposição de arte popular que o Secretariado leva a Genebra, ele vai a Bruxelas apresentar uma comunicação ao XVI Congresso de Antropologia afirmando exactamente o contrário: aí defende que os estudos etnográficos estariam na fase mais elevada do seu percurso; que depois de uma fase de amadorismo, tinham atingido a “idade da sistematização” orientada por directrizes e métodos de cariz científico. O pilar desse desenvolvimento, ainda segundo Chaves, seria Leite de Vasconcelos e o marco inicial desta nova era teria sido a criação do Museu Etnográfico (depois Museu Etnológico). Em 1933, o próprio Leite de Vasconcelos afirmava que os textos de Luís Chaves eram “detentores da “orientação científica que hoje se exige em assuntos desta espécie” (1994 (1933):287).
Muito antes da instauração do Estado Novo, já Luís Chaves se destacara enquanto etnógrafo, ocupando, junto de Leite Vasconcelos, entre 1912 e 1919, o lugar de preparador e conservador no Museu Etnológico, e ingressando novamente no museu em 1931. Paralelamente a essa actividade, edita livros e monografias e inúmeros artigos em revistas científicas e literárias. Outros etnógrafos que colaboraram com o SPN/SNI, como Sebastião Pessanha ou Cardoso Marta, tinham igualmente um percurso feito na etnografia à data da instauração do regime. Na realidade, quando o SPN é criado, António Ferro pode contar com uma pequena comunidade de etnógrafos já constituída. Tratava-se, é claro, de uma comunidade com características distintas daquela que encontraremos mais tarde na Antropologia portuguesa. Era desde logo uma comunidade sem cátedra, afastada da Universidade. Estabeleceu-se através do efeito aglutinador de algumas sociedades científicas, mas sobretudo pela circulação dos estudiosos entre vários grupos e revistas: e aqui cabe falar da Revista Lusitana, fundada por Leite Vasconcelos em 1887 e publicada até 1943; da Lusa, revista de Viana do Castelo que publica artigos de Leite Vasconcelos, Cláudio Basto e Cardoso Marta; ou da mais ambiciosa Terra Portuguesa, dirigida por Vergílio Correia e onde aparecem textos assinados por Pessanha, Cardoso Marta e pelo próprio Francisco Lage.
Particularmente reveladora da existência de uma comunidade de etnógrafos, de cujo saber e colaboração a política do SPN iria beneficiar directamente, é a revista Feira da Ladra, que Cardoso Marta funda em 1929. Marta não foi um nome de primeira linha no que diz respeito ao seu contributo para o saber etnográfico da época -- sobre Cardoso Marta, Leite de Vasconcelos afirmou: «… dispõe de livraria própria e de muitos materiais produzidos por ele; é pois capaz de continuar a bem servir a Etnografia, mas às vezes tem desfalecimentos de actividade e de método» (1994 [1933]: 273). No entanto, desde os anos 10 que participa activamente num largo conjunto de revistas, quer em periódicos de cariz etnográfico a que já fizemos referência, quer em publicações de relevo na cena cultural portuguesa, como a Águia, a Athena, dirigida por Fernando Pessoa, a revista Arte e Vida, ou a Contemporânea (cf. Pires 1996).
No seu primeiro número, a Feira da Ladra anuncia as colaborações futuras de Alberto de Sousa, Rocha Madahil, Armando de Matos, Augusto Pinto, Cláudio Basto, Emanuel Ribeiro, Hipólito Raposo, Leite de Vasconcelos, Luís Chaves, Manuel de Sousa Pinto, Matos Sequeira, Pedro Vitorino, Pinto de Carvalho, Raul Brandão e Vergílio Correia. Ao lado de figuras destacadas do panorama cultural de então, a revista congregava, assim, os principais nomes que estiveram associados à Lusa e à Terra Portuguesa, contemplando também os potenciais contributos de Rocha Madahil, Armando Matos ou Luís Chaves. Guilherme Felgueiras, Armado Leça e Sebastião Pessanha, que não eram mencionados nesta primeira lista, também publicariam aí artigos. Ora, este acaba por ser, precisamente, o quadro de autores da maior parte dos textos publicados pelo SPN em Vida e Arte do Povo Português -- um livro através do qual se pretendia mostrar a ligação da acção folclorista do Secretariado ao saber etnográfico já constituído -- aos quais se juntaram os contributos de Luís de Pina, Santos Júnior e Tude de Sousa.
Ao mesmo tempo que o SPN beneficia da existência deste grupo de especialistas, tem acesso a um corpo de conhecimentos já consolidado que permite a António Ferro começar a conceber algumas das suas iniciativas. Aqui reside talvez a dimensão mais importante da relação entre o Secretariado e o saber etnográfico: em 1933, o quadro dos artefactos que constituiriam aquilo a que então se chamava a arte popular portuguesa estava já plenamente estabelecido. Como já demonstrou João Leal (2000; 2002), esse quadro começara por ser constituído nos anos 80 do século XIX por estudiosos como Joaquim de Vasconcelos e afirmou-se já nos primeiros anos de Novecentos, com Rocha Peixoto, no âmbito da antropologia propriamente dita. Foi, no entanto, a etnografia da I República -- que se constituíra em «etnografia artística» --, que mais contribuiu para a inventariação dos elementos da arte popular portuguesa, sendo fácil ver, em textos etnográficos dos anos 20, um domínio já bastante amplo da variedade das manifestações da arte rústica nacional. No início dos anos 30, a arte popular era assim um campo de estudo e celebração consagrado, com fronteiras relativamente bem definidas, congregando diferentes tipos de objectos ligados entre si através da sua qualidade ornamental – dos jugos aos potes de barro, das rocas e da arte pastoril ao mobiliário, das rendas e do papel recortado às embarcações. Simultaneamente, a arte popular portuguesa assim definida apresentava-se já como a manifestação das alegadas qualidades artísticas do povo português e nessa medida era já um signo pronto a usar na construção de uma certa imagem da nação.
Foi a partir do trabalho destes etnógrafos, que o SPN conferiu um relevo particular aos objectos que se caracterizavam pela forte carga decorativa e exploração do pormenor, pela minúcia e delicadeza das suas formas, bem como pelo trabalho de miniaturização a que estavam submetidos. No discurso veiculado pelo Secretariado, a arte popular seria um mundo mágico e maravilhoso de preciosas insignificâncias. Mediante esta aproximação altamente selectiva à cultura material do mundo rural, os artefactos populares transformavam-se em objectos de afecto e desejo e através deles era também a nação que se constituía em matéria de adesão amorosa. Os significados políticos e culturais desta construção foram de vária ordem e ganharam grande alcance ao tempo do Estado Novo. Nessa medida, uma atenção fina e aprofundada à etnografia da primeira metade do século XX, bem como a outros momentos, anteriores e mais recentes, do que foi a construção da ideia de uma “arte popular”portuguesa é essencial para compreender a história e a configuração do Museu de Arte Popular. Será também a via através da qual se evitará que a ligação indelével do museu a tempos pretéritos dê lugar a um mero exercício de comprazimento nostálgico, erigindo-a, pelo contrário, em instrumento de um olhar sempre analítico e crítico sobre o passado e a história.


REFERÊNCIAS
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Vera Marques Alves (CRIA – Centro em Rede de Investigação em Antropologia)
Comunicação apresentada no I CICLO DE CONFERÊNCIAS DO MAP -“MEMÓRIAS E ACTIVAÇÕES PATRIMONIAIS”
Museu de Arte Popular, Lisboa
20 e 21 de Janeiro de 2011