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Newsletter Nº 159 / 14 de Abril de 2020
Direcção Mafalda Ferro Edição Fundação António Quadros
 ÍNDICE

 

01 Lembrando Augusto Cunha, por Mafalda Ferro.
02  Morreu Augusto Cunha, por Raul Feio.

03 Estranhos dias..., por José Almeida.

04 Subsídios para o estudo da vida e obra de Fernanda de Castro, 120 anos depois. Divulgação.

05 Esboço de uma carta de António Telmo para António Quadros, transcrição de Pedro Martins.

06  Agostinho da Silva e António Quadros: Saudades do Futuro, por Maurícia Teles da Silva.

07  Livraria António Quadros, promoção do mês: Portugal, Razão e Mistério – A Trilogia.

 

EDITORIAL,
por Mafalda Ferro


Durante o período recomendado pela CMRM, pela DGS e pelo Governo, as iniciativas da Fundação António Quadros que envolvem contacto directo com o público e/ou deslocações para outras localidades continuam suspensas.

No entanto, sempre que possível, o atendimento a investigadores, outras entidades e clientes da Livraria António Quadros continuará activo embora apenas via telefone e/ou Internet. Solicita-se, durante este período a utilização exclusiva do número 965552247 (todos os dias úteis entre as 10h e as 18h) e do e-mail mafaldaferro.faq@gmail.com

 

Pela sua, pela nossa saúde, mantenha-se em segurança.
Não corra riscos.
Quando 
se deslocar a espaços comerciais 
como, por exemplo, supermercados, correios, farmácias, 
ou locais onde vai estar com outras pessoas
USE LUVAS E MÁSCARA. 

A presente newsletter, é dedicada a Augusto Cunha cujo período de vida aconteceu entre 10 de ABRIL de 1894 e 18 de ABRIL de 1947 e cujo espólio foi integrado em 2018 no acervo da Fundação António Quadros e, também, permitam-me uma nota mais pessoal, ao seu trisneto, Pedro Manuel Rosado Fernandes MacCarthy da Cunha que, também ele, nasceu no dia 10 de ABRIL, mas de 2020, para que um dia melhor venha a conhecer o seu trisavô.

 

Escritor, cronista, novelista, humorista, conferencista, dramaturgo e amante profundo do teatro em todas as suas vertentes, poeta, modernista, autor de textos de crítica literária e de espectáculo, de textos de divulgação turística, Augusto Cunha publicou obras literárias e marcou presença constante na imprensa portuguesa, colaborando assiduamente em inúmeros periódicos da época dos quais se destaca «Portugal Colonial», «Portugal Cine Revista», «Ilustração Portuguesa», «A Voz», «Gazeta dos Caminhos de Ferro», «Domingo Ilustrado», «Notícias Ilustrado», «Sempre Fixe», «Diário de Notícias», «Diário da Manhã», «Diário de Lisboa», «Notícias de Lourenço Marques», «Primeiro de Janeiro», «Comércio do Porto», «Atlântico», «Panorama», «Acção», entre muitos outros.


Augusto Cunha fez parte daquela que ficou conhecida como a Geração d'Orpheu e a que também pertenceram Fernando Pessoa, Almada-Negreiros, Cortes Rodrigues, Montalvor, Alfredo Guisado (que lhe escreve amiúde: Dá saudades ao Ferro, Ponce [de Leão], Simões, Sá-Carneiro e Pessoa;), entre tantos outros.

 

O 25.º número da «NOVA ÁGUIA» já se encontra disponível. Por favor, considerem apoiar este projecto, único no panorama cultural nacional, através da compra ou assinatura desta revista e sua respectiva divulgação. O vosso apoio é fundamental. Para adquirir os seus exemplares, ou assinar a «NOVA ÁGUIA», recebendo a revista no conforto da sua casa, basta contactar a direcção através dos seguintes endereços de correio electrónico: novaaguia@gmail.com ou info@movimentolusofono.org

 

Lembramos hoje Agostinho da Silva (1906–1994), Filósofo, Ensaísta, Poeta, Professor, Pedagogo... 26 Anos depois da sua morte a 3 de Abril de 1994.

 
01  LEMBRANDO AUGUSTO CUNHA,
por Mafalda Ferro.

 

Augusto Henrique Roberto da Cunha (1894-1947), conhecido familiar e literariamente por Augusto Cunha, nasceu em Lisboa na freguesia dos Anjos no dia 10 de Abril de 1894, filho de Henrique Roberto da Cunha e de Carolina Teresa Galvão da Cunha.

 

O percurso de Augusto da Cunha esteve sempre profundamente ligado ao de António Ferro, tantos foram os projectos que trabalharam em conjunto, os amigos que partilharam, o bairro onde nasceram e cresceram e a família que, fruto do casamento de Cunha com a irmã de Ferro, passou a ser a mesma. Aos filhos de ambos, primos direitos (António Gabriel e Fernando Manuel de Castro e Quadros Ferro + Maria Helena e Pedro Henrique Tavares Ferro da Cunha, todos nascidos no mesmo quarto em casa dos avós comuns António Joaquim Ferro e Helena Tavares Afonso Ferro), uniu-os sempre uma profunda amizade e constante convivência, assim como aconteceu com os seus netos (António, Mafalda e Rita Roquette Ferro + Pedro, Patrícia e Filipe MacCarthy da Cunha).

 

Este percurso inicia-se quando a família Ferro, depois do incêndio da Rua da Madalena, em 1907, se muda para a Rua dos Anjos, para a Casa dos Anjos (como gosto de lhe chamar) já que Augusto Cunha nasce e mora na mesma freguesia, mais precisamente na Rua Palmira e, como Ferro, frequenta o Liceu Camões onde ambos privam com Mário de Sá Carneiro, personalidade que desde logo lhes cria um enorme fascínio pelo modernismo.


Desde então, encontram-se em casa de António Ferro que viria a ser também a de Augusto Cunha e frequentam tertúlias nas duas Brasileiras (a do Chiado e a do Rossio), no Martinho e no restaurante «Irmãos Unidos» propriedade da família de Alfredo Guisado (Pedro Menezes).

 

Cunha e Ferro, escrevem em 1912 "Missal de Trovas. Quadras dos 17 e 18 anos" e a estima adensa-se quando, em 1919, no dia 28 de Agosto, Cunha casa com Umbelina Ferro. A festa é celebrada na Casa dos Anjos e o matrimónio na Igreja dos Anjos na presença da família mais chegada e de alguns amigos como Filomeno da Câmara, Alfredo Guisado, Azeredo Perdigão, Alice Dantas, Raul Feio e outros. O casal Cunha vive desde então, e até 1938, na Casa dos Anjos, que viria a ser palco de tempos felizes e empolgantes.

 

Em 1913, Augusto Cunha, António Ferro, Azeredo Perdigão e Alice Dantas, entre outros, estreiam o primeiro Curso de Direito da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. A amizade entre eles era tão forte que, em 1918, já no final do 5.º ano, tendo já alcançado elevadíssimas classificações, Azeredo Perdigão acusa os professores de grave injustiça na classificação do seu amigo Augusto Cunha e, empunhando a bengala, parte o vidro do quadro onde estavam expostas as classificações que acaba por rasgar em bocados; é-lhe, então, instaurado um processo disciplinar na sequência do qual acaba por ser expulso, vindo a concluir o curso em Coimbra com a classificação de “Muito Bom”, 18 valores.

 

No ano seguinte, Augusto Cunha assina com Alfredo Guisado o texto “O Elogio Fúnebre da Revista Fulmen á la Broche” ao qual foi acrescentada uma nota manuscrita: “Lida no dia 13 de Janeiro de 1914 no Restaurante dos irmãos Unidos, …uma ceia de rapazes”.


Depois de Fernando Pessoa escrever o poema "Os Paúis, nasceu um movimento a que o grupo de jovens amigos chama "O Paúlismo". Nesse contexto, Augusto escreveu «No Tempo do Paúlismo e do “Orfeu”. Odisseia de um artigo. Página de Memórias» ao qual acrescentou no fim do texto: “No Ano do Orfeu, Um Serão Paúlista”. A crónica, lida e relida primeiro a António Ferro em sua casa, depois no Martinho a Fernando Pessoa e a Mário de Sá-Carneiro que a escutaram repetidamente e, depois, aos habituais frequentadores do "Martinho", viria a ser publicada n'«A Capital - Diário Republicano da Noite», n.º 263, ano IV, no dia 17 de Abril de 1915.

 

Até terminar o Curso de Direito, mais precisamente entre 1915 e 1919, para fazer face aos custos inerentes aos seus estudos académicos, Augusto Cunha trabalha no Ministério da Justiça.

 

Durante o seu tempo de estudante, e ao longo da vida, escreve artigos humorísticos e de crítica, crónicas, espectáculos de revista, peças de teatro nas quais também participa como actor e publica uma vasta obra literária. Salientam-se ainda as suas entrevistas a figuras de teatro como Lucília Simões, Irene Isidro, Luísa Satanela, Ausenda de Oliveira, Georgina Cordeiro, Maria Helena, Adelina Abranches, Ilda Stichini, Ester Leão, Maria Sampaio, Fernanda de Sousa, Maria Alvarez, Maria Matos, Aura Abranches e Adelina Campos. Destaca-se ainda como conferencista.

 

Terminado, em 1919, o Curso de Direito, Cunha inicia funções no Ministério das Colónias e casa na Igreja Paroquial dos Anjos com a irmã de António Ferro, Umbelina Raquel Tavares Ferro. Como referido no «Século da Noite», 28.08.1919, estiveram presentes, além da família e de outros amigos, Filomeno da Câmara, Alfredo Guisado, Azeredo Perdigão e Raul Feio. O casal vive desde então na Casa dos Anjos (Rua do Registo Civil) n.º 26 em Lisboa, mesmo depois do nascimento dos filhos.

 

Em 1920, abre o seu primeiro escritório de advogado, profissão que viria a exercer mais assiduamente até 1935, na Rua Nova do Almada, 81, 1.º D em Lisboa e, mais tarde, na Rua de S. Nicolau 23, 2.º, também em Lisboa, partilhando este espaço com Azeredo Perdigão.
No mesmo ano, no dia 10 de Maio, nasce a sua filha Maria Helena Tavares Ferro da Cunha que viria a licenciar-se em Ciências Matemáticas na Faculdade de Ciências de Lisboa e, no ano seguinte, no dia 9 de Dezembro de 1921, o seu filho Pedro Henrique Tavares Ferro da Cunha que viria a licenciar-se em História e Filosofia e a dirigir o Serviço Internacional da Fundação Calouste Gulbenkian. Sabe-se que teve uma filha mais nova, Raquel, que morreu com 6 meses.


Enquanto profissional de Direito e fruto de uma empenhada especialização, recebe a licença de notário (1922); inaugura e dirige com Tavares Alves a Sociedade Forense Portuguesa e, em Maio, integra com Leitão de Barros, a Comissão de Festas de Lisboa (1926); integra com António Ferro, Fernanda de Castro, Leitão de Barros, Martins Barata, Luzia, Teresa Leitão de Barros, entre outros, o primeiro número d'«O Notícias Ilustrado» (1928); é nomeado presidente (1928) do Tribunal de Árbitros Avindores (Tribunal que julga questões entre patrões e assalariados); a pedido de Fernanda de Castro (1930), escreve "O exame do meu menino. Teatro de trazer por casa (Entreacto)", peça destinada a ser representada numa récita a favor dos seus Parques Infantis; a peça foi levada à cena no dia 23 de Novembro numa matinée infantil do Teatro da Trindade, sob a direcção técnica de Fernanda de Castro sendo "o meu menino" interpretado por Vasco Santana que passa a incluí-la nas suas tournées pelo Ultramar e pelo Brasil; e é, posteriormente, representada em teatros e em escolas públicas e privadas. A publicação de "O exame do Meu Menino", numa edição em miniatura, com capa de Maria Adelaide Lima Cruz, viria a ser reeditada, dando origem às famosas "Lições do Menino Tonecas".

 

Em 1932 e até 1934, ocupa o cargo de Secretário de Armindo Monteiro, Ministro das Colónias; em 1934 funda e dirige até 1947, ano da sua morte, a revista «O Mundo Português – revista oficial de Arte, Literatura e Propaganda Colonial», edição de Agência Geral das Colónias e do SPN/SNI. Todos os números são ricamente ilustrados com reproduções fotográficas e de arte, de grande qualidade. No primeiro número desta revista, Augusto Cunha publica colaborações de Gago Coutinho, Alberto Osório de Castro, João de Azevedo Coutinho, Camilo Pessanha, Teófilo Duarte, José Ferreira Martins e Diogo de Macedo; entre 1935 e 1940, exerce a função de Secretário do Conselho Superior da Disciplina das Colónias; organiza, realiza e dirige o I Cruzeiro de Férias às Colónias de Cabo Verde, Guiné, S. Tomé e Príncipe e Angola (1935), o Cruzeiro dos Estudantes Coloniais à Metrópole (1937) e o I Cruzeiro Oficial dos Velhos Colonos (1939).

 

Augusto Cunha escreve artigos para grande parte dos 43 números do periódico «Bandarra - Semanário da Vida Portuguesa», fundado por António Ferro (1935); em 1936, é nomeado Chefe de Secção da Direcção-geral de Administração Política e Civil do Ministério das Colónias e, no mesmo ano, a convite de Eduardo Neves, Luís Pastor de Macedo e Leitão de Barros, associa-se aos "Amigos de Lisboa".

 

Segundo António Quadros no seu prefácio a "Os Meninos de Oiro", Cunha, dirige a organização das publicações da Secção Portuguesa da Exposição de Paris e integra o grupo de colaboradores intelectuais dos pavilhões portugueses das exposições de Paris (1937), Nova Iorque (1939) e Mundo Português (1940).

 

Abandona a Casa dos Anjos e instala-se com a família na Avenida da Republica 91, 3.º, Lisboa (1938); participa activamente na estruturação do "Círculo Eça de Queiroz" do qual foi o Sócio Fundador n.º 6 (1940); é nomeado Delegado da Agência Geral das Colónias junto do S.P.N. e director administrativo da Revista «Panorama» (1942); assume a presidência da Assembleia Geral da Lutuosa do Ministério das Colónias e é nomeado Sócio Efectivo da Sociedade de Geografia de Lisboa (1944); assume a direcção do Jornal Radiofónico do Império e Emissora Nacional (1945).

 

No dia 18 de Abril de 1947, mês que também o viu nascer, Augusto Cunha morre, vítima de doença dolorosa e prolongada deixando inconsoláveis a mulher, filhos, sogro, sobrinhos, os cunhados António Ferro e Fernanda de Castro, restante família e muitos amigos dos quais se destaca Raul Feio e Azeredo Perdigão.

 
Umbelina Ferro da Cunha,
mulher de Augusto Cunha,
irmã de António Ferro.


AUGUSTO CUNHA – OBRA PUBLICADA

 

1912

- Missal de Trovas. Quadras dos 17 e 18 anos com António Ferro.

 

1930

- Quasi de Graça com capa de Jorge Barradas, que inicia com "Uma carta para António Ferro" e "A resposta" a Augusto Cunha.

- O exame do Meu Menino, peça de teatro infantil, humorística, edição em miniatura, com capa de Maria Adelaide Lima Cruz, que viria a ser reeditada, dando origem às famosas "Lições do Menino Tonecas".

 

1931

- Os Meninos d'oiro. Vaudeville que começou a ser ensaiada por Lucília Simões, Brunilde Júdice, Irene Isidro, Teresa Gomes, Erico Braga, Samwell Diniz e José Gamboa mas, por razões desconhecidas, a peça não subiu à cena nem foi publicada em vida do seu autor.

- Mais um, com capa de Cottinelli Telmo em duas versões da mesma edição, uma com capa em tons de azul e, outra, em tons de verde.

 

1932

- O processo de Mário Dâmaso (1 acto de comédia), escrita a pedido expresso de Lucília Simões, com desenho de capa por Bernardo Marques. A capa final patenteia uma caricatura do autor por Teixeira Cabral. A peça é representada pela Companhia Lucília Simões-Erico Braga no Teatro da Trindade, protagonizada por Palmira Bastos, Amélia Rey Colaço, Ester Leão, Nascimento Fernandes, Alves da Cunha e outros.

- Mais outro, com capa de Bernardo Marques.

 

1934

- PBX: diálogos ao telefone, com capa de Francisco Valença e uma caricatura sua, por Eduardo Malta.

 

1939

- Contos sem cotação, com capa de Stuart de Carvalhais, ilustrações de Abel Manta, Bernardo Marques, Carlos Botelho, Castanhé, Eduardo Malta, Estrela Faria, Francisco Valença, Jorge Barradas, Lino António, Manoel Lima, Martins Barata, Mesquita, Paulo Roberto Araújo, Sarah Afonso e Stuart, como gesto de amizade destes artistas modernistas.


1944

- O exame do meu menino. Teatro de trazer por casa (Entreacto), 3.ª edição revista e aumentada com capa de Amarelhe.

 

1946

- O Homem que salvou o mundo, com capa de Cottinelli Telmo.

 

1957

Dez anos depois da sua morte, a Livraria Bertrand edita postumamente, para uma projectada Antologia dos Humoristas Portugueses, a sua obra Contos Escolhidos com prefácio de António Ferro e capa de Bernardo Marques. A publicação, fruto da iniciativa da família em especial do cunhado António Ferro (em fim de vida) e do filho Pedro Ferro da Cunha, teve a colaboração do seu grande amigo, o escritor e jornalista António Folgado da Silveira. Depois do prefácio, pode ler-se "Uma carta para António Ferro" pedindo um prefácio para o seu livro Quasi de Graça (1930) e, também, a resposta do cunhado publicada na referida obra, datada de Maio de 1930.

 

1988

- Os Meninos d'oiro. Vaudeville, terminada em 1931, é publicada. Com uma caricatura do autor por Francisco Valença e prefácio de António Quadros que se lhe refere como uma das personalidades mais singulares do grupo modernista que abalou o ambiente cultural de Lisboa e do país […]. E, adiante, Complexa, mas rara personalidade, a de Augusto Cunha, homem consciencioso, meticuloso, sério, com um semblante muitas vezes melancólico, por um lado; mas havia também nele um outro eu que observava o mundo com um olhar malicioso e que se ria à socapa não só dos podres ou das futilidades da vida social do seu tempo, mas até de si próprio, expressando-o por uma ironia que nunca chegava à dureza do sarcasmo, pois era essencialmente um homem bom, sem sombra de azedume ou de despeito.


Saiba mais em
www.fundacaoantonioquadros.pt

 
02  MORREU AUGUSTO CUNHA,
por Raul Feio.


Quando soube do que se tinha passado, fiquei de todo indiferente. Naquele momento, a meio da noite, aquilo não passava duma notícia, apenas uma seca e rápida noticia, apenas qualquer coisa a juntar às muitas outras que me tinham sucedido durante o dia. Na sua força brutal, na sua grandeza medonha, aquilo que se passara segundos antes, ia, em inconsciência, parar à sua oposta, planificando-se com a pequenez das tais outras coisas sucedidas. Depois, quando comecei a pensar, quando vi o que se tinha passado ir, a pouco e pouco, individualizando-se, ganhando terreno, tomando conta de mim, mais e mais, nem sei que senti. Lembro-me que aquela morte me transcendeu e me fez agir e sofrer independentemente de mim. Isto, afinal, é de resto uma coisa comum na dor autêntica, e bem difícil de explicar. Mas não há dúvida de que qualquer coisa me ia empolgando devagar, num domínio lento mas seguro. E dentro da minha cabeça, apenas aquela ideia: o meu velho amigo morreu, o meu velho amigo morreu... Dizia e sentia o que outras pessoas sentiam e diziam, porque nós, na dor, somos todos iguais. E lembrava-me que nunca mais o ouviria conversar, que nunca mais ouviria dizer aquelas suas (e já tão nossas!) graças e trocadilhos, que nunca mais o veria acender o cigarro daquela maneira tão sua, que nunca mais o veria sacudir a cinza do fato com aquele gesto tão seu… Assim, é exactamente assim. Só coisas pequenas me vieram à cabeça. Não pensei sequer que tinha morrido um artista, que tinha desaparecido um homem bom, profundamente bom, um homem como poucos! Foram apenas aquelas simples recordações que me vieram à ideia. Estive depois sozinho no seu escritório, sentado na sua cadeira, diante daquela grande secretária. E em tudo estava o ar das coisas sucedidas de repente; sucedidas de repente e inacreditavelmente definitivas. Os livros e as caricaturas, a caneta, os jornais, os papéis em desordem, viviam como eu exactamente o espanto daquele momento. Vi cartas para responder e senti problemas a decidir. Mas tudo tinha parado. Nunca mais ouviria o meu velho amigo ler-me o rascunho duma crónica, expor-me a ideia do novo livro e interessar-se como só ele sabia, interessar-se de alma e coração pelas minhas pequenas tragédias.

A última vez que o vi estava ele sentado na cama, completamente esgotado e já sem um bocadinho, ao menos, de esperança. Era essa a sua grande e verdadeira tragédia, o drama tremendo dum homem prodigioso de actividade, a sentir cada vez mais as forças a fugirem-lhe. E dizia-me com um sorriso tristíssimo, que me aflige recordar: - Já tudo me cansa, Raul, tudo me cansa. Isto também está por pouco! Eu, então, fazia o mesmo que toda a gente. Falava logo de outra coisa e ia-o atraindo, devagarinho, para os seus velhos sonhos. E era certo ele transformar-se imediatamente, e expor de pronto a ideia, naquele seu desejo contínuo de criar, de fazer de novo. Foi assim a sua vida toda: um permanente sacrifício. E mal sentia um bocadinho mais de saúde, lá o tínhamos na rua outra vez, naquele seu passo rápido, as costas curvadas, a eterna pasta preta debaixo do braço, a organizar, a emendar, a esquecer-se sempre de si…

Poucos podem avaliar exactamente o seu espantoso sacrifício! Já todos os jornais falaram da sua morte e da sua obra. Por isso eu para aqui estou a falar apenas dele e do seu coração, grande a valer! Sempre que uma pessoa morre, ela passa a ter apenas virtudes, quanto mais não seja nos primeiros momentos. E então repetem-se mil vezes aquelas cansadas frases, todo aquele fingido e rnacabro estribilho. Eu estarei talvez a dizer coisas bem vulgares, mas isso apenas porque não sou capaz de exprimir doutro modo a verdade. Se as minhas palavras forem já gastas e regastas, creio que lendo-as a frio ninguém as compreenderá. Ele era bom; pois quando digo que ele era bom e Amigo, sinto que estou a escrever duas palavras absolutamente novas, inventadas mesmo agora, só para o explicarem melhor. Mas afinal, talvez tivesse sido preferível eu citar mais uma vez ainda a sua vicia e a sua obra. No entanto creio que vale a pena correr o risco, porque «0 Mundo Português», que tinha nele o seu maior amigo, merece com certeza mais. E por isso pois que eu tenho estado a vê-lo assim. Eu e «0 Mundo Português» conhecíamo-lo demais, para que nos soubesse bem recordá-lo doutro modo. Neste momento não nos interessa o homem em destaque, o artista sequer. Agora, ambos, recordamos somente o Amigo cuja presença real nos deixou. E é estranho! Sinto a revista tão ligada a ele, tão próxima, tão sua sempre, que quando vejo por ai algum número, também esse número me parece um corpo morto, um corpo de onde se escapou já a alma! Mas eu sinto muitas vezes com egoísmo e sem justiça. O meu velho amigo morreu! Morreu como deve morrer um homem: farto de fazer bem; farto de trabalhar e até, talvez, farto também de desculpar o mal que lhe fizeram. Dizem que a sua obra ficou, que o seu espírito continua e que só o seu corpo morreu. Será assim realmente.

Mas o certo é que o nosso velho Amigo desapareceu e que nós temos saudades!

 

Em «O Mundo Português»,
num dos dois únicos números publicados depois da morte do seu director,
o n.º 8 da 2.ª série, 1947, Ano XIV.

 
03  ESTRANHOS DIAS...
por José Almeida.

 

Estranhos dias...

Após uma auspiciosa sessão inaugural do ciclo de 2020 das Tertúlias de Cultura Portuguesa, em que tivemos a oportunidade de assistir a três belíssimas intervenções por parte de Joaquim Domingues, José Carlos Seabra Pereira e Paulo Samuel, deveríamos ter prosseguido com a nossa programação no passado Sábado. Infelizmente, pelos motivos que todos sabemos, não foi possível fazê-lo, ficando suspensos os nossos encontros mensais até que seja retomada a normalidade da vida pública.

 

Assim, para o passado dia 28 de Março tínhamos programado uma tarde dedicada a António Quadros, autor e pensador prolixo, considerado «o rosto mais visível da Filosofia Portuguesa». Uma figura ímpar da cultura nacional e europeia da segunda metade do século XX que muito contribuiu para o estudo e entendimento de Portugal e da cultura lusíada. Entre os oradores convidados estavam confirmados Mafalda Ferro (Presidente da Fundação António Quadros), José Almeida e Paulo Samuel, a quem caberiam as honras de apresentação da mais recente edição da obra “Portugal, Razão e Mistério”, de António Quadros. Livro agora editado num único tomo, reunindo os dois volumes já publicados, bem como um terceiro, inédito até agora. 

 

Não obstante todas as contrariedades causadas pelo actual momento, a organização das Tertúlias de Cultura Portuguesa assegura a sua vontade, bem como de todos os intervenientes, de conduzir este ciclo a bom porto, independentemente do tempo de espera necessário à concretização desse desiderato. Afinal, conforme tem ficado provado, sessão após sessão, a actualidade e importância dos temas, assuntos e autores tratados nestes encontros não se circunscrevem a uma actualidade situada na espuma dos tempos, ligando-se antes a uma intemporalidade análoga ao que é perene e eterno.

 

Este é o sexto ano consecutivo em que o Porto acolhe as Tertúlias de Cultura Portuguesa, organizadas pelo MIL - Movimento Internacional Lusófono e a revista Nova Águia, em parceria com a Fundação Lusíada, Fundação António Quadros, MPMP - Movimento Patrimonial pela Música Portuguesa, Câmara Municipal do Porto, entre outras entidades.

Estamos cientes da importância destes encontros para a vida cultural portuense e portuguesa. A partir desta iniciativa tem sido fomentado o debate público e a discussão em torno de figuras notáveis, ou momentos altos da cultura nacional e da espiritualidade pátria. Um trabalho que se tem revelado fecundo e de onde têm surgido outras iniciativas, bem como nascido ou renascido ideias feitas acção, dando origem a livros, revistas, exposições, recitais, concertos, apresentações várias, entre outros. Por todos esses motivos, o nosso destino é continuar.

 

Entretanto, manteremos o contacto por esta via, bem como através da nossa página de Facebook e Tumblr. Por favor, mantenham-se a salvo e aproveitem estes tempos de confinamento forçado para ler e reflectir sobre aquilo que mais importa. Até breve!

 
04 SUBSÍDIOS PARA O ESTUDO DA VIDA E OBRA DE FERNANDA DE CASTRO, 120 ANOS DEPOIS. Divulgação. 

No ano do 120.º Aniversário do nascimento de Fernanda de Castro, com o incontornável apoio da Revista «Nova Águia», na pessoa de Renato Epifânio, a Fundação António Quadros está a recolher testemunhos e textos sobre as diversas facetas e actividades de Fernanda de Castro, para publicação num número temático da referida revista em homenagem a Fernanda de Castro.

 

Os temas em tratamento têm a ver com as suas amizades, a família, a produção literária em geral e para crianças, as Memórias, a relação com a Música, as acções ligadas ao turismo, os Parques Infantis, a Poesia, o Romance, a amizade com artistas que a retrataram, o teatro e o cinema, a personalidade.

A publicação inclui ainda uma sequência de testemunhos, uma bibliografia e um conjunto inédito de imagens.

 
Os temas estão a ser tratados por:

António Roquette Ferro; Carmen Dolores; Eduardo Pitta; Fernando Dacosta; Helena Marinho; Joana Leitão de Barros; José Carlos Seabra Pereira; Madalena Ferreira Jordão; Mafalda Ferro; Manuela Dâmaso; Margarida Magalhães Ramalho; Paula Morão; Rita Ferro; Rosário Baptista; Vasco Rosa.

 

Se pretender reservar/encomendar um exemplar deste (a publicar no último semestre do ano) ou de qualquer outro número da revista,  por favor, contacte info@movimentolusofono.org

 
05 ESBOÇO DE UMA CARTA DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO QUADROS,
transcrição de Pedro Martins.

 

Esboço de uma carta para António Quadros (texto encontrado num bloco do autor e transcrito por Pedro Martins, com data provável de 1981, face ao conteúdo:

 

Dirijo-me a si, com quem são raríssimas as ocasiões de conversar, a si pela nossa homónima afinidade, para lhe perguntar se por acaso não recebeu o meu último livro Gramática Secreta da Língua Portuguesa e, se o recebeu e leu, o que é que pensa dele. Eu acreditava nesse livro. Todavia, embora não me surpreenda a sua desclassificação no concurso ao Grande Prémio da Sociedade de Língua Portuguesa, intriga-me o silêncio do grupo de Filosofia Portuguesa. Com excepção do Agostinho da Silva e do Álvaro Ribeiro, dos quais possuo cartas, todos os outros se comportam como se ignorassem a sua publicação. Devem ter feito o mesmo com o seu último livro sobre o Fernando Pessoa, mas o António Quadros, pelo que vejo com o exemplo dos magníficos artigos no jornal Tempo, continua a escrever consciente de que a nossa missão é só essa: dizer o que há para dizer e conforme nos é concedido dizer. “Tudo o mais é com Deus”.


Eu sei que, não propriamente o livro, mas a científica determinação dos vinte e dois esquemas consonânticos, dos dez grupos ou conjuntos de consoantes afins, das quatro espécies em que se subdivide a voz, das três medidas verticais, das sete vozes puras, determinação que é a própria forma da balança sephirótica na sua complexa estrutura, constitui a mais importante descoberta linguística que se fez desde os gregos até hoje. Enquanto tal, há-de no futuro vir revolucionar a linguística europeia. É possível que, sendo o meu livro um livro de ciência e não de filosofia, isso explique a indiferença do grupo de filosofia portuguesa.


Li o seu artigo onde defende que se passa por uma Escola, e ali se recebe a iniciação, para depois não se ficar preso a ela e fazer a sua própria obra. Inteiramente de acordo, lembro-me contudo do José Marinho e do Álvaro Ribeiro. Sinto que nos olham e esperam mais do Pinharanda Gomes, de si, de mim, do Orlando, do Braz Teixeira, do Sottomayor, do Guerra, do que a divisão religiosa. O próprio António Quadros mostra bem nitidamente no seu último livro como a profissão de fé católica não exclui a atenção à gnose e até a valorização do que nela se aprofunda para levantar o catolicismo até ao limiar da Igreja Invisível.               

 

06  AGOSTINHO DA SILVA E ANTÓNIO QUADROS: SAUDADES DO FUTURO,
por Maurícia Teles da Silva.                                                                                          

 

Na perspectiva do encontro entre Agostinho da Silva e António Quadros, não obstante os diferentes modos que alicerçam obras peculiares, orientamos a atenção para percursos que se cruzam, por vezes divergindo, mas sobretudo complementando-se na confluência de horizontes.

 

Do magistério de Leonardo Coimbra, da Faculdade de Letras do Porto frequentada por Agostinho da Silva, no companheirismo de Álvaro Ribeiro e José Marinho entre outros, esboçam-se vias de pensamento na senda do criacionismo leonardino, em que “o homem não é uma inutilidade num mundo feito, mas o obreiro dum mundo a fazer”.


Agostinho afirma, no seu Caderno de Lembranças: “Discípulo de Leonardo Coimbra o queria eu ser em sua bondade humana”.


Também, António Quadros vindo da Faculdade de Letras de Lisboa, em relação com Afonso Botelho, continua os antecessores erguendo o seu caminho firmado na história e filosofia portuguesas, procurando entender e agregar os seus mais elevados valores culturais. Do ideário de “57” à publicação da Espiral - Cadernos Culturais, na Primavera de 1964, teve António Quadros o elevado mérito de director e editor, no propósito de encetar o Movimento das áreas culturais de Língua Portuguesa, reunindo textos de importantes pensadores portugueses, num eclectismo estabelecedor de pontos de aproximação.

 

No n.º 1 da revista Espiral (1964) publica-se, pela primeira vez, o texto Ecúmena no qual Agostinho da Silva declara: “foi o Espírito quem me trouxe Cristo e quem a outros trouxe Buda, Maomé e Lao-Tseu; foi o Espírito quem me deu Eckhart e quem me deu a geometria analítica; nele se reconciliam Aristóteles e Platão, nele se acabam as geografias, ou políticas, que separam Ocidente de Oriente”. Abordando as temáticas de religião, política, economia, educação, Agostinho vislumbra o Reino do Espírito Santo, esse Quinto Império, atendendo a que, “Se queremos uma religião que seja verdadeiramente de eternidade e de unidade, se queremos uma economia que seja de generosidade e de desprendimento, convém que nos instalemos quanto possível desde já no uno, no eterno, no generoso e no humano”.

 

É o testemunho de António Quadros, que declara a amizade e convívio com Agostinho da Silva, aquando do convite que este lhe dirigiu, em 1965, para proferir conferências sobre filosofia portuguesa, no Centro Brasileiro de Estudos Portugueses fundado pelo Prof. Agostinho, tendo sido realizada uma exposição bibliográfica na Universidade de Brasília. No Inverno de 65, a Espiral (número duplo 8/9) inclui o inédito “Quinze Princípios Portugueses”, de Agostinho da Silva.

 

António Quadros, digníssimo investigador das origens arcaicas da cultura portuguesa, nas suas obras Portugal Razão e Mistério (vol. I e II), e Memória das Origens, Saudades do Futuro, analisa os fundamentos da identidade nacional: encontra na memória ancestral, o conhecimento do nosso ser colectivo, numa consciência que se projecta ao futuro, “apelo da alma à reparação num amanhã”; identifica Saudade enquanto “enlace entre as origens e os fins últimos”, esperança no “reino da primazia do Espírito e dos seus valores, para o qual, consciente ou inconscientemente, trabalha tudo o que em cada um de nós é altruísta, dadivoso, generoso, visionário”.

 

António Quadros referindo-se a “Agostinho da Silva, profeta do terceiro milénio, franciscano espiritual”, enquanto continuador da tradição que, desde finais do séc. XIII, ecoou em Portugal no Culto do Espírito Santo, abraça a mesma via em Espírito da Verdade concedida ao futuro em fraternidade universal.

 

07 LIVRARIA ANTÓNIO QUADROS,
Promoção do mês.

 

TÍTULO: Portugal, Razão e Mistério – A Trilogia.

AUTORIA:
António Quadros.

COORDENAÇÃO:
 Mafalda Ferro.

EDIÇÃO
- Lisboa: Fundação António Quadros e Alma dos Livros, 2020.

PVP até 14 de Maio de 2020
: 22.50€


RESUMO
: Portugal, Razão e Mistério, a trilogia, não é apenas uma terceira edição dos volumes anteriormente publicados, já que às duas obras iniciais se adicionou o inédito Livro III "O Cálice da Última Tule", embora incompleto.


Enriquecida com uma Nota Prévia de Joaquim Domingues e um posfácio de Pedro Martins, a Trilogia exibe ainda a entrevista que António Quadros concedeu a Antónia de Sousa em Março de 1993, entrevista essa que viria a ser publicada no
Diário de Notícias no dia 11 de Março de 1993, 10 dias antes da sua morte. 
 
 
     
 
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