01 – Lembrando Maria Germana Tânger, três anos depois da sua morte e 101 anos depois do seu nascimento,
por Mafalda Ferro.
Maria Germana Tânger nasceu em Lisboa no dia 16 de Janeiro de 1920, filha de um segundo casamento de sua mãe Palmira Antonieta Dias (1876/1945) com Elmino Alberto da Silva Moreira (1876/1929) em Março de 1919. Palmira Antonieta, natural de Macau, tinha três filhos (António Herculano, Maria Antonieta e Herculano Eurico Dias Barbosa) fruto do seu casamento com João Maria Barbosa. Palmira Antonieta e Elmino eram ambos professores primários sendo que, além disso, Palmira era directora de uma escola e Elmino, inspector escolar.
Depois da morte de Elmino (1929), devido ao grau de parentesco de sua mulher Elvira de Macedo Dias com Palmira Antonieta Dias (primas), António Egas Moniz (futuro Prémio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1949) assumiu a responsabilidade de apoiar a educação de Maria Germana. Egas Moniz almoçava com a "sobrinha" todas as quintas-feiras, acompanhando desta forma os seus estudos, aconselhando e ensinando.
Já no Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho quando desde 1932 recitava poemas de sua preferência, era evidente o talento de Maria Germana para a interpretação da poesia (o termo é de sua autoria).
Com 15 anos, ingressou nas “Guias de Portugal", movimento baseado no método criado por Baden-Powell ao qual esteve ligada e apoiou durante toda a vida.
A sua actividade profissional iniciou em 1940 para ajudar nas contas da família, no escritório da empresa petrolífera SACOR onde permaneceu até à morte da mãe (1945). Foi aí que escreveu o poema «Escritório» que viria a partilhar no Teatro da Trindade em 1999: Tudo certo, certo / Relógios certos / Nas cabeças certas. / Tudo certo, certo /... e eu tão errada / Tão longe nas certezas certas.
No ano seguinte (1946), frequentando a Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,conheceu Manuel Tânger Correia, estudante, investigador e director do Grupo de Teatro Moderno da Faculdade. Uniu-os de imediato o amor pelo Teatro, pela Poesia, pela Literatura e, um pelo outro. Casaram em 1948 e Maria Germana não terminou o curso. No entanto, continuou, com o marido, ligada ao Teatro Moderno, interpretando poesia e colaborando em diversas peças de teatro como actriz, encenadora, directora artística, professora e, até, dramaturga.
A pedido de Amélia Rey Colaço, com base na versão inglesa de Robinson Jeffers, traduziu a peça «Medeia» de Eurípedes (1950), depois de negociar e registar os direitos da tradução em seu nome. A peça viria a ser representada em 1970 pelos seus alunos do Conservatório Nacional.
Em 1952, depois do nascimento do seu filho António, começou a trabalhar na RARET (RAdio RETransmissão), estação de Radio, posto emissor da Rádio Europa Livre americana. Permaneceu na Empresa até 1955, ano em que o casal partiu para Paris.
Em Paris, cursou na Escola de Arte de Dizer dirigida pelo professor Bimont (1955/1956), no «Curso de Dicção» de George Le Roy (1957) e estudou Arte Dramática no Conservatório de Paris (1964).
Em 1962, o Sindicato Nacional dos Artistas Teatrais, não existindo a classificação de «declamadora, atribuiu-lhe, a título excepcional, a mudança de categoria de "artista de variedades" para "artista de género dramático" e, em 1966, a «Sociedade de Escritores e Compositores Teatrais Portugueses» aprovou a sua adesão enquanto «Autora de Textos Radiofónicos».
Depois de um extenso período entrando e saindo de hospitais, Manuel Tânger Correia foi diagnosticado com tuberculose pulmonar e internado no Sanatório do Caramulo (1963) onde permaneceu cerca de dois anos (quatro anos em hospitais e outros tantos em sanatórios). A relação epistolar entre ambos durante esse período, bem como durante as futuras estadias de um ou de outro no estrangeiro, era quase diária.
Maria Germana dedicou grande parte da sua vida profissional ao ensino. Além de Professora de Teatro, Dicção, Arte de Dizer e no «Curso para Formação de Actores e Encenadores» no Conservatório Nacional durante vinte cinco anos (1963/1987), criou cursos e foi pioneira na forma de representar e de interpretar a poesia, sem o tom teatral característico da época. Além disso, ensinou «Interpretação e Voz» às crianças d'«O Pássaro Azul» fundado por Fernanda de Castro (1957/1962); organizou e participou em cursos de «Formação de Quadros Políticos» (1978/1979); aperfeiçoou a dicção dos cantores da ópera de «A Trilogia das Barcas» contratada pelo Teatro Nacional de S. Carlos (1979); participou no «Curso de Iniciação Teatral para trabalhadores», no Teatro da Trindade (1981); leccionou, em vários cursos, as disciplinas «Comunicação Oral» e «Noções de Dicção» e «Projecção de Voz» (1981/1985); criou o «Curso de Dicção para Futuros Locutores» no Centro de Formação da RTP (1988).
No Conservatório Nacional, ensinou centenas de alunos dos quais se destaca José Carlos e Diogo Ary dos Santos, José Walenstein, Carlos Fogaça, João Lagarto, Maria Emília Arriaga, Maria Alberta Menéres, João Grosso, Graça Lobo, Leonor Poeira, Rita Blanco, São José Lapa, Maria Guinot, Alexandra Lencastre, Rui Vieira Nery.
As grandes paixões de Maria Germana, a nível profissional, foram o Teatro e a Poesia Portuguesa cuja divulgação através da interpretação se transformou numa missão notavelmente cumprida, tendo para isso utilizado todos as oportunidades ao seu dispor. Os Saraus e Momentos Poéticos que realizou presencialmente, a convite de Particulares e Instituições, como profissional ou por amizade, ao longo de um período temporal superior a sessenta anos, foram tantos que só é possível referir apenas alguns, a título de curiosidade: Sessão Poética evocativa dos autoras da Revista «Orpheu» organizada por Alfredo Guisado no restaurante «Irmãos Unidos», 122 anos depois da sua inauguração (1954); entre 1957/1977, percorreu o país dando a conhecer a Poesia através dos Recitais «Pró-Arte» de sua autoria sendo acompanhada por grandes artistas musicais; no 24.º aniversário da morte de Fernando Pessoa, no Teatro da Trindade, interpretou pela primeira vez na íntegra e de cor os quase mil versos da «Ode Marítima» de Álvaro de Campos (1959), proeza que repetiu várias vezes; no Recital "Poesia e Verdade" de poemas publicados nos últimos livros da colecção com o mesmo nome (1963) realizado na Feira do Livro de Lisboa, confessou á imprensa Gostei deste contacto com o público da rua, parava o operário, parava o ardina, parava o curioso… Depois desta tarde, sinto-me capaz de dizer poemas na Praça do Campo Pequeno.
No entanto, não se limitou a recitais presenciais para um público restrito. Determinada a expandir a sua acção, levando o Teatro e a Poesia a casa de cada português, utilizou veículos como a Emissora Nacional (EN), os espectáculos de LUZ e SOM (inspirada em Pierre Robert Houdain) mas a maior oportunidade surgiu depois da inauguração da Televisão em Portugal e, durante cerca de 20 anos, disse Poesia no pequeno ecrã. Referem-se alguns momentos desta sua profícua actividade:
1957, RTP: «Passatempos Infantis – Era uma vez…» com textos, poemas e contos que adaptou e leu ou interpretou; 1957/1958, RTP: «Vida Feminina», com diferentes temáticas direccionadas a um público feminino; 1960: Em «Romagem», cerimónia concebida por Adolfo Simões Muller, evocativa da epopeia dos portugueses no mundo, realizada na Torre de Belém a 10 de Junho, interpreta as vozes com Eunice Muñoz e Catarina Avelar; 1963, RTP: «Passatempo Infantil – Pequena História de Natal», escrito e gravado no Sanatório de Caramulo; 1964/1965, RTP: «Ronda Poética» - 26 Programas, interpretando cerca de 50 Poetas em 1964 e 51 Programas (Janeiro/Junho), interpretando 75 Poetas em 1965; 1964: Na inauguração do Teatro de Câmara António Ferro, sob a direcção artística de Fernanda de Castro, no Tivoli, disse Mário de Sá-Carneiro em «3 modos de poesia»; 1965/1967, RTP: «Roteiro Poético» (15 Programas), interpretando 57 Poetas; 1966, EN: «O Mundo a Cantar», Programa de Variedades de sua autoria; 1971/1973, RTP: «Um Poeta… Um livro» (colaboração de Lurdes Norberto) 28 Programas sendo que cada um era dedicado a um único Poeta; 1973, EN: «Poesia de um só Poeta», 17 Programas dedicados a um Poeta por programa e «Tempo de Poesia»; 1980: Concebe e escreve o roteiro para o programa «Luz e Som» evocação Camoneana na Torre de Belém; 1983/1985: Na Comissão organizadora dos XVIII, XIX, XX Festivais de Sintra, promovidos pelo «Instituto de Sintra», organiza com Luís Eduardo Santos Ferro, Olga Cadaval e outros, os Festivais que também dirige e encena; 1985: Sob a sua direcção artística, produção, texto e voz, realizou-se o espectáculo de «Luz e Som» em Sintra; 1987/1988: escreveu os argumentos para os espectáculos de Luz e Som «Alguma História, Alguma Lenda» realizados no Palácio Nacional de Sintra e, em 1988: para «Noites de Queluz – Les Nuits de Queluz – The Nights of Queluz»; 1993: No âmbito do centenário do nascimento de Almada Negreiros, adaptou para teatro o romance «Nome de Guerra: Judite» levada à cena no Teatro S. Luís, sob a sua direcção artística e encenação.
Entretanto, seu marido é considerado curado e, não tendo conseguido recuperar o cargo que ocupava na RTP antes do seu internamento no Caramulo, aceita o cargo de adido cultural junto à Embaixada de Portugal no Brasil (1966).
A 20 de Janeiro de 1975, sofreu um rude golpe, Manuel Tânger Correia, marido, amigo, confidente, parceiro nos bons e maus momentos, pai do seu filho, morre num desastre de automóvel em Espanha.
No mesmo ano, num esforço para equilibrar a sua situação financeira, bastante comprometida devido às despesas efectuadas com a saúde de seu marido, vendeu a casa de Queluz, voltando para Lisboa.
Depois da Revolução de Abril, principalmente em 1975, a sua posição no Conservatória tornou-se bastante difícil. Rebelde, habituada a lutar pelas suas convicções, a ser leal aos seus amigos e a trabalhar em prol do que acreditava, tornou-se para muitos uma persona non grata e muitos lhe viraram as costas ou pior. Resistiu, havia situações que não aceitava e com as quais não conseguia pactuar.
Em Maio desse ano, escreveu um «Comunicado sobre a exclusão da Escola Superior de Teatro (EST) da Direcção do Conservatório Nacional», alertando para a situação anti-democrática que se vivia onde impera a lei da força e do golpismo e, no final do ano lectivo, recebeu uma carta da Comissão Directiva, informando sobre a intensão de terminar a sua colaboração no corpo docente da EST, a partir do dia 1 de Outubro seguinte. Em Agosto, escreveu e publicou «Basta, Senhor Ministro!», carta aberta ao Ministro da Educação e Cultura sobre a EST, face à acusação de ser fascista que hoje é a arma dos inferiores e também sobre a situação do Conservatório. A carta é completada por um abaixo-assinado de alunos e um testemunho de José Carlos Ary dos Santos.
Em Agosto de 1975, partiu para o Brasil com equiparação a bolseira pelo Instituto de Alta Cultura enquanto intérprete da Poesia Portuguesa. No Real Gabinete de Leitura do Rio de Janeiro (RJ), o seu "Curso de Interpretação de Poesia", com a duração de 3 meses, mereceu-lhe no ano seguinte o título de «Conferencista Honorária».
Em Setembro, ainda de 1975, a Comissão de Moradores de Queluz escreveu-lhe pra o RJ, depois de uma denúncia, acusando-a de ter vendido a sua casa de Queluz para por o dinheiro no Brasil. Maria Germana respondeu informando sobre as suas estadias no Brasil, previamente programadas, e sobre a sua situação financeira depois da morte do marido.
Em 1977, sob o pseudónimo «Viriato», concorre ao «I Grande Prémio de Teatro da RTP», com a sua peça "É Tempo de ser livre". Sobre isto, escreveria dois anos depois nos seus apontamentos: Espantoso! Entreguei oficialmente esta peça para concurso da televisão. Depois de serem atribuídos os prémios, verifiquei que nenhum membro do júri a tinha recebido! e, adiante, Tudo bem. Concorri com esta peça. Não chegou ao júri…. E, no ano seguinte, escreve o «Registo dos acontecimentos ocorridos na Escola de Teatro no Conservatório Nacional de Abril de 1974 até Janeiro de 1978».
Adorava viajar e fazia-o, profissionalmente divulgando a Poesia Portuguesa: na Dinamarca (1993), em Goa, China e Macau (1982), no Brasil (1967 e 1975), ou particularmente fazendo cruzeiros como «Festival de Teatro no Mar» (XIX e XX), a bordo do «Mermoz» em que travou amizade com artista estrangeiros e assistiu ou participou em diversas peças de teatro e outras actividades relacionadas (1994, 1995).
Foi homenageada em 1998, pela Câmara Municipal de Almada pela sua participação no Festival de Teatro de Almada; em 1999, pelo Teatro da Trindade e pela «Assírio e Alvim» por ocasião da sua «Despedida Artística (1959-1999)»; em 2010, pela Câmara Municipal de Lisboa com a Medalha Municipal de Mérito Grau Ouro, durante o mandato de António Costa; em 2013, pelo Teatro Nacional D. Maria II que, assinalando o Dia Mundial da Poesia, celebrou a sua carreira com uma placa junto ao Salão Nobre.
Com 84 anos, a convite da «Assírio & Alvim», organizou e gravou um 'Audio-livro' com poemas de Almada Negreiros, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa.
Com 96 anos, publicou as suas memórias em «Vidas numa Vida»; o seu lançamento foi um dos últimos actos públicos em que participou. No final da obra, escreveu:
Por último, assim resumo a minha vida, tanta surpresa, tanta dedicação, tanto amor,
tanta amizade, tanta desilusão, tanta força, tanta alegria, tanta esperança, tanta rebeldia,
tanto desgosto, tanta saudade.
No dia 22 de Janeiro de 2018, partiu.
Foi a derradeira viagem.
Tinha 98 anos.
Seu filho António Tânger Correia faz a doação do espólio dos seus pais à Fundação António Quadros, cumprindo assim a vontade de sua mãe. |